Opção cultural

Se à princípio a luz servia para iluminar, dar perspectiva e melhorar a imagem, o cinema, ao longo de seu caminho, encontrou outros sentidos mais profundos para aperfeiçoar suas técnicas
A fotografia e o cinema nasceram praticamente juntos, lá por meados de 1890, e tinham como premissa básica de iluminação a naturalidade, a luz solar. Por essa razão, o cinema foi transportado de Nova York para Los Angeles, nos anos 20 do século passado, como explica o teórico do cinema Richard Blank em seu livro "Cinema e luz. A história da luz no cinema é a história do cinema". Em Los Angeles, a luz é mais clara, mais contundente e mais dourada, o que possibilita uma iluminação frontal e uniforme nas personagens.
Enquanto as tecnologias para aperfeiçoar a iluminação se desenvolviam, outros padrões do cinema hollywoodiano também começavam a se delinear, como os perfis de suas estrelas, de suas personagens, sonoridades e roteiro e todo um pot-pourri de regras que fortaleciam sua posição no establishment. Hollywood se tornava uma das indústrias mais poderosas do mundo.
Do outro lado do Oceano Atlântico, na Europa os cineastas quebravam os paradigmas e faziam exceção à regra, se inspirando na estética de movimentos artísticos, se adaptando às adversidades (guerras, falta de recursos, clima, política) e buscando uma substância mais subliminar e filosófica para a iluminação de seus filmes, como ocorreu com o Expressionismo Alemão, o Realismo Italiano, a Nouvelle Vague e, também aqui nos Trópicos, o Cinema Novo Brasileiro.
Na pintura, a brincadeira com luzes e sombras permitem os olhos humanos a identificarem a perspectiva dos objetos. Pessoalmente, nós não precisamos exatamente que as luzes e sombras nos ajudem a determinar a distância entre os objetos e nós ou dos objetos com outros objetos, porque temos dois olhos que capturam a imagem de ângulos diferentes, mesmo que sutilmente. Apesar de pequeno, o deslocamento proporcionado pelos dois olhos nos dão a percepção tridimensional.
Como na pintura, a fotografia e o cinema também tiveram de desenvolver estilos de iluminação capazes de dar noção de profundidade para o público. Para além disso, também de transmitir mensagens subliminares ou sensações com um propósito específico. Agora, a iluminação não apenas proporciona luz e sombra, perspectiva e melhora a qualidade da imagem, como ela também cria no fantástico mundo da imaginação e das sensações a dramaticidade.
Um dos efeitos de iluminação mais famosos da Sétima Arte foi criado há cerca de 400 anos pelo pintor holandês Rembrandt Van Rijn. Dentre as características mais marcantes deste artista está a forte marcação das linhas de expressão dos rostos, o dramático chiaroscuro herdado de Caravaggio (claro-escuro: um contraste forte entre luzes e sombras) e a luz triangular carimbada sob os olhos de seus retratados. Essa última é hoje uma das mais utilizadas artimanhas do cinema, frequentemente usada para fazer o espectador acreditar que este é um momento emocional para a personagem.
Em filmes de suspense ou thriller, já é mais comum ver o efeito Top Down Lighting, que é uma técnica de iluminação desenvolvida para tornar determinados rostos da história assustadores. Geralmente a iluminação também é low-key, ou seja, o fundo é bastante escuro e a luz se concentra na personagem, reforçando a protuberância da face. O rosto é iluminado diretamente de cima para baixo e, com isso, é possível criar uma luz no formato de uma caveira sobre o rosto, o tornando mais ameaçador ou intimidador. A sensação no público é de medo.
Já o Far Side Key é uma luz quase poética e que dá às personagens um ar mais intrigante. Uma sombra mais endurecida deixa encoberto o lado da face que está voltado para a câmera, enquanto a luz ilumina o lado do rosto que quase não mostra. O efeito tem o poder de romantizar, dramatizar ou dar um ar heroico à personagem.

Considerações sobre o documentário “Indústria Americana”, que concorre ao Oscar 2020
Everaldo Leite
Em agosto de 2019 a Netflix disponibilizou para seus assinantes o documentário “Indústria Americana” (American Factory), dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, que mostra a difícil síntese produzida a partir do encontro entre culturas de trabalho diferentes. No filme, uma empresa chinesa adquire o que restou de uma montadora da GM em Ohio, no centro-oeste americano, e lá começa um processo de fabricação de vidros, com objetivo de atender a produção mundial de automóveis. Trabalhadores americanos são contratados e submetidos ao modelo chinês de manufatura, que abrange um mínimo de doze horas de trabalho diários e que não se detém para o descanso semanal. Trabalhadores chineses são contratados e trazidos da Ásia para impor o ritmo e suprir as “deficiências” americanas. Sem aceitar que hajam ingerências do sindicato, começa aí uma batalha entre a obstinação asiática e a “predeterminação” do sonho americano. Desde o início, a velha questão: O que um americano médio quer? Sua cultura de vencedores, como mostra o documentário, fala em bons empregos, excelentes investimentos, casas, família típica, carros, crianças na escola e jovens na faculdade. Há lugar para os perdedores, é claro, mas na imagem das más consequências individuais nascidas das péssimas decisões. Existe, para tanto, desde o seu nascimento, um ideal de liberdade pelo qual todos podem correr atrás de seus sonhos, lançando mão da racionalidade e, não raramente, da certeza de que “Deus” os ajudará. No folclore geral a visão correta é a de que os EUA conseguiram a liderança econômica mundial e construíram a sua colossal força militar em função desse sonho, e, por isso, nunca serão pisoteados por quaisquer circunstâncias externas ou sabotados por uns poucos interesses egoístas internos. O filme “Indústria Americana”, insistentemente, mostra que o contrário pode ser a verdadeira realidade de grande parte do país. A meritocracia é um valor da democracia dos EUA, pois é o que dá significado às vitórias e às derrotas individuais. Cada um americano tem o que merece, segundo a ética do mérito. Não parece, portanto, na mentalidade americana, que as circunstâncias adversas podem ser a verdadeira causa do fracasso de muitos. O valor do mérito próprio, muito mais relevante, acaba por se impor como uma baliza entre o que o indivíduo consegue realizar e o que ele efetivamente sonhou para si. Por isso, a frustração consigo mesmo é clara e fica estampada na cara de cada um trabalhador – que aparece no filme – após a crise de 2008 ter colapsado o setor industrial de toda aquela região. Aliás, essa frustração quanto à fragmentação de seus sonhos, de terem nada em mãos apesar de atribuir mérito ao que realizavam até então, foi a única coisa que restou de uma complexa equação política e econômica cujo trabalhador nunca tem acesso e compreensão. Obviamente, o documentário não consegue aprofundar o espantoso contexto político-econômico no qual subjaz os interessantes fatos que apresenta. Seriam muitas horas a mais de filme. Sua meta é contar uma história e dar voz àqueles que comumente servem apenas às estatísticas. Não deixa de ser um ponto de vista americano, mas a oportunidade de fala também se estende aos trabalhadores e gestores chineses, que a utilizam conforme acham pertinente. O produto final, o filme, é bastante franco nesse sentido, não destaca um vilão ou uma vítima, aparentemente todos ali se movem por intenções apropriadas ao que requer sua própria cultura de trabalho. Se os diretores de “Indústria Americana” deixaram de fora da narrativa algo essencial – talvez propositalmente – foi a possibilidade de um sonho chinês ser tão respeitável quanto o sonho americano. O que os americanos perderam de vista é que outros países também têm indivíduos com desejos. O sonho chinês, diferentemente do sonho americano, é um ideal que, apesar de atender ao indivíduo, precisa primeiramente satisfazer aos interesses coletivos de sua nação. A empresa chinesa precisa ser extremamente produtiva, muito lucrativa, impressionar o ocidente e atender todo o planeta, em honra da China. No documentário esse espírito coletivista fica bastante evidente na postura militarizada dos seus trabalhadores e na forma arrogante como estes se colocam frente aos “preguiçosos” e “piores” trabalhadores americanos. Essa característica parece ofensiva e traz uma ideia de superioridade étnica nada insignificante. Ao cair o véu da polidez chinesa – seus forçados gestos de simpatia e de tolerância – o que se exibe no documentário é a face mais radical e rigorosa da ética da meritocracia. O mérito, para o chinês, é praticamente um estatuto religioso e sua total dedicação ao trabalho é a realização do sonho em si, tendo a casa, o carro e a família – tão caros aos americanos – como consequências secundárias. Não, os chineses não são desalmados, são na verdade uma nação cuja economia de mercado e o ativismo do Estado lhes restituiu o orgulho imperialista. Não prometem guerra contra nenhum povo, mas querem enriquecer rapidamente ocupando o espaço dos “perdedores” com sua tecnologia inovadora e, como mostra o documentário, com sua carga horária quase suicida de trabalho. Na China, especialmente nas grandes cidades empresariais, se vê muito claramente que a riqueza e a mudança dos hábitos estão criando uma nova civilização asiática. Há chineses ricos, de classe média e chineses pobres, mas o que se deve ressaltar é que a mobilidade social por lá é impressionantemente forte vis à vis à sua crescente produtividade. No documentário, uma equipe americana é levada à China para conhecer esse novo mundo e suas expressões não deixam dúvida sobre o impacto dessa realidade. Meritocracia, mérito, os estadunidenses quase dizem: “eles merecem ser ricos, nós, sindicalizados preguiçosos, não!”. Os EUA ainda são os grandes representantes econômicos do ocidente, não há dúvida. Sua expansão tecnológica e seu potencial financeiro são admiráveis, sendo pioneiros e hegemônicos em vários segmentos produtivos. O seu setor de serviços é sofisticado e o grau de complexidade de sua produção surpreende o mundo competitivo. Sua supremacia política, com o fim da União Soviética, foi a mola propulsora da globalização, que fez crescer colossalmente o comércio internacional e gerou oportunidades em todos os países que aderiram rapidamente ao novo modelo de negócios, especialmente os países asiáticos. A Coreia do Sul, Cingapura e a própria China lançaram mão de todas as boas ideias do mundo corporativo e, não raras vezes influenciados pelos objetivos de seus governos, sofisticaram a sua indústria e desenvolveram segmentos complexos para atender as demandas mundiais. O que o documentário “Indústria Americana” revela é apenas mais um capítulo de um momento histórico que se iniciou lá atrás, bem antes da eclosão da crise de 2008. Ou seja, a narrativa somente aponta para mais um processo pragmático de “destruição criativa” – conceito criado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (que não é da chamada Escola Austríaca de Economia) –, que se segue de modo incontornável na esteira deste novo momento do liberalismo. A China transnacional, hoje com melhor eficácia produtiva, melhor tecnologia industrial e enorme ambição por parcelas maiores de mercado, quer destruir o modelo americano e transformar seus trabalhadores, criando novos paradigmas a serem seguidos. O documentário mostra justamente isso, a destruição criativa do trabalho, com a inédita substituição do sonho americano por satisfações materiais e afetivas pelo sonho do trabalho incansável. O documentário “Indústria Americana” concorre ao Oscar 2020 de melhor documentário, vamos ver que efeito terá essa difícil história nos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na hora do voto. Everaldo Leite é economista.
Obra do jornalista e escritor Henrique Morgatini conta as peripécias de Mark Days no mundo do rock da Califórnia, na década de 1990
Mariza Santana
O mundo dos astros do rock é basicamente composto por música, sexo e drogas. Além é claro, atualmente, de milhões e milhões de dólares. Até aí, nenhuma novidade, é somente um lugar comum. Todos sabem como funciona a engrenagem desta indústria cultural que influencia a vida de milhares de jovens em todo o planeta, ditando moda e consumo, enfim toda uma forma de viver. Alguns ídolos do rock foram embora cedo, como Jimmy Hendrix e Janis Joplin, e mais recentemente, Kurt Cobain. Outros astros sobrevivem nos palcos até hoje, para o delírio dos fãs, com Axl Rose. Entre eles, alguns já são chamados de dinossauros do rock, como Ozzy Osborne (e sua lendária mordida em um morcego em pleno palco, durante um show) e o setentão Mick Jagger, só para citar uma pequena parcela dessas celebridades. O leitor vai perceber que, embora roqueira de coração, meus conhecimentos sobre o mundo do rock se resumem a algumas bandas e artistas mais antigos (Pink Floy é um dos meus favoritos). Estes astros, entretanto, ainda arrastam multidões em festivais como o Lollapalooza e o Rock in Rio. Por isso, senti um pouco de dificuldade para identificar todos os personagens deste meio musical em Terras do Tio Sam, na década de 1990, ao me embrenhar no livro “Coma Branco”, do jornalista e escritor Henrique Morgatini. Este detalhe pode limitar o número de leitores da obra, que acaba apresentando uma narrativa destinada a um público específico: os roqueiros de carteirinha, mais conhecedores do gênero, incluindo os músicos, pois muitos são os detalhes citados sobre equipamentos. Mas isso não impede de se apreciar as aventuras e desventuras de um guitarrista anapolino no mundo do rock na Califórnia. O protagonista de “Coma Branco” passa por uma transformação. Antes era Marcos Dias, um jovem apaixonado por rock and roll e morador do Centro-Oeste brasileiro. Depois se torna Mark Days, inicialmente mais um músico em busca de um lugar ao sol no meio musical das cidades de San Francisco e Los Angeles. Nosso herói, depois de muitas peripécias, sexo e drogas (afinal esta é uma história sobre o rock, baby!) acaba tocando guitarra na banda do músico norte-americano Marilyn Manson, conhecido por sua personalidade escandalosa. O artista em questão é líder e vocalista de uma banda epônima (defensora do não-conformismo, que usa conteúdos líricos polêmicos e imagens controversas.). A transformação de Marcos Dias em Mark Days, e sua mudança de Anápolis para a Califórnia, ocorrem devido a uma decepção amorosa. Sim, elas sempre são as causadoras de mudanças drásticas na vida de muitos jovens de coração despedaçado. A responsável pela desilusão em questão se chama Sandra. Nos States, para esquecer Sandra, Mark Days vai se impondo sobre Marcos Dias, pois o personagem passa a adotar um novo modo de vida. Sua história vai virando uma roda-viva, até que ele se depara um novo amor, Sabrina. A atuação dela será decisiva para que Mark finalmente consiga conquistar seu lugar nesse disputadíssimo círculo de músicos roqueiros. Henrique Morgatini adota uma linguagem dinâmica para que o leitor possa sentir o clima efervescente daquela última década do século passado, demonstrando como é vibrante e louco o mundo dos artistas que enveredam pelo rock. No caminho, Mark conhece o líder do Nivarna, (sim Kurt Cobain em carne e osso!), simplesmente um de seus maiores ídolos. Nosso herói vive aqueles alucinados anos 1990 em toda a sua plenitude, até começar a se questionar o que estava fazendo ali. Nesse momento, ele repensa sua trajetória. O desfecho da história talvez seja o melhor momento de toda a narrativa. Mark Days versus Marcos Dias, de fato um bom duelo. Nesse ponto, é melhor não adiantar mais nada, para não dar spoiler, como costumamos falar hoje, em tempos de Netiflix e outras produtoras de conteúdo oferecido pelo serviço de streaming. “Coma Branco” é um livro sobre as aventuras de um guitarrista acidental nos Estados Unidos, escrito para outros jovens. O grande desafio é fazer com que esse público se interesse pela leitura, nesses tempos de redes sociais e textos telegráficos. Quem aceitar o desafio e, principalmente se tiver um coração repleto de rock in roll (vale lembrar que Goiânia é também a cidade do rock alternativo), certamente vai gostar de acompanhar a trajetória desse goiano que, de forma acidental, conviveu com celebridades roqueiras em um passado recente. Pode ser ficção, mas quem não gostaria de ter vivido em sua juventude o que Mark Days viveu?
Grupos goianos de vertentes diferentes do rock independente lançaram discos que merecem a sua atenção. O primeiro deles saiu em outubro. O segundo há nove dias

Primeiros atletas desembarcaram em Goiânia para início dos treinos na nova casa do time Rensga Esports. Diretor executivo do grupo garante que equipe CS:GO será 100% goiana

de Soninha dos Santos
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De Evaldo Pereira de Sousa, estudante da Pós-Graduação em Ensino de Humanidades e Linguagens no Instituto Federal de Brasília (IFB)





Filme “Mar de Rosas”, dirigido por brasileira durante a ditadura, aborda questões sociopolíticas, psicanálise e rompe com valores da família tradicional

Em sua provável melhor atuação no cinema, Robert Pattinson é a cereja do bolo, mesmo contracenando com o experiente Willem Dafoe
Como uma pintura expressionista sobre a tela, Robert Eggers projeta seu monocromático, sombrio e enigmático “O Farol” no ecrã à frente de nossos olhos. A fotografia onírica é propositalmente precária, já que por se passar nos anos de 1890, o diretor escolheu filmar o longa-metragem em celuloide Double-X 5222 preto e branco de 35mm. A película proporciona uma imagem tão escurecida que a produção teve de usar iluminação bem além do que normalmente é utilizado no cinema. Lâmpadas de halogênio de 500 a 800 watts piscavam a poucos metros de distância dos protagonistas, Robert Pattinson (Ephraim Winslow) e Willem Dafoe (Thomas Wake), que mal se enxergavam durante algumas cenas, enquanto a equipe de produção trabalhava com óculos de sol.
Embora não seja um terror com criaturas satânicas e sonoridade hitchcockiana (vozes ciciosas interrompidas abruptamente por estampidos), Eggers quer contagiar seu espectador com a atmosfera enlouquecedora da misteriosa ilha na Nova Inglaterra. Confinados na inóspita ilhota, os dois faroleiros são incumbidos do óbvio, cuidar do Farol, por quatro semanas. No entanto, eles perdem o barco de resgate e ficam presos por mais tempo em uma tempestade.
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Willem Dafoe é Thomas Wake, um marinheiro caricato e desprezível[/caption]
Wake é o chefe da operação, supostamente um marinheiro experiente, com uma perna de pau e todas as características folclóricas, incluindo os jargões. Praticamente uma caricatura. Winslow é o lacônico e soturno novato que vem para substituir o antecessor, que enlouqueceu e morreu por razões desconhecidas no lugar. Sujeitado às piores funções (a ele resta a limpeza das latrinas, transportar rochas e esfregar o chão), cada minuto é suficiente para expandir o ódio que ele sente por seu superior. O farol é exclusivo de Wake, uma função protegida como um segredo precioso.
Pattinson e Dafoe carregam o filme inteiro, já que são as únicas personagens de toda a história. Eles atuam de maneira tão intensa que somos carregados para dentro dessa relação turbulenta entre ambos, que se vêem obrigados a dividir um espaço bastante limitado. Wake, interpretado por Dafoe, é terrivelmente irritante, arrogante e solta gases nojentos em várias cenas. É quase possível sentir o odor de tão envolvidos que ficamos por sua atuação. Winslow, personagem de Pattinson, é cheio de segredos. Cada segundo ao lado de Wake parece uma tortura. Mesmo assim, ele precisa do trabalho para fugir do que seja lá que transformou sua vida em algo tão terrível. Desta vez, com uma atuação tão boa quanto devastadora, ele é a estrela que brilha mais forte neste filme.
Além da insuportável convivência com Wake, Winslow odeia as gaivotas que sobrevoam a todo tempo a ilha e acaba matando uma delas. Com isso, deixa transtornado o chefe, que acredita que as aves carregam as almas dos marinheiros perdidos. Um spoiler pouco nocivo é que em uma cena, Winslow vê uma gaivota caolha. Em outra, ele encontra um crânio com apenas um dos olhos. Poderiam eles, a gaivota e o esqueleto, serem a mesma pessoa? Existe essa interpretação.
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Robert Pattinson surpreende em atuação como Ephraim Winslow[/caption]
Para expressar o sentimento de claustrofobia das personagens, o cineasta escolheu capturar as cenas na proporção de 1:19:1, em que a tela é quase um quadrado. Além disso, podemos perceber muitas cenas em close up, quando o enquadramento é mais fechado.
Apesar de toda a imagética do longa-metragem parecer muito importante, pela responsabilidade que carrega em transportar quem assiste, não se pode deixar passar batido as entrelinhas. O que Eggers não conta no roteiro, e seria difícil de adivinhar se ele próprio não tivesse revelado em entrevistas, é a relação do filme com a mitologia grega. Wake faz alusão a Proteu, uma deidade marinha, conhecedora de todas as artimanhas e mistérios do mar, capaz de prever acontecimentos vindouros, mas que odiava compartilhar seus conhecimentos com outrem. Em “O Farol”, o cineasta realiza esse inusitado encontro de Proteu com Prometeu, que seria Winslow.
Na mitologia, Prometeu roubou o fogo (uma espécie de conhecimento) dos deuses e deu aos homens, o que os tornou superiores aos outros animais. Como punição, Zeus o mantém acorrentado às pedras do Monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia devora suas entranhas, que se regeneram durante a noite, para que sejam comidas novamente no dia seguinte. Uma tortura eterna.
E, da mesma forma como Prometeu roubou o fogo, Winslow deseja roubar a luz do farol de Wake, que exerce algum encantamento inexplicável e é tratada como “she”, ou “ela” em português. No idioma inglês, diferentemente do nosso, coisas não são tratadas como “ele” ou “ela”, mas por um pronome específico, o “it”. Há diversas outras alusões que, se narradas aqui, dariam spoilers muito incisivos e, por isso, melhor encerrarmos por aqui.
Na lista de esnobados pelo Oscar, “O Farol” concorre apenas à categoria de melhor fotografia. Pouco comercial, complexo e sujeito a rejeições mais que a paixões, o filme é distribuído pela Vitrine Filmes, no Brasil, e pela A24, nos Estados Unidos. Aqui, são poucas as salas que projetam a película, limitando sua exibição aos cinemas voltados para o Cult.

Realidade virtualmente polarizada leva parte da população a acreditar que só é possível uma narrativa dos fatos, em que outra visão dos acontecimentos recentes seria um delírio

O livro aborda o que sempre atormenta o homem: suas fragilidades e impotência diante do vazio, do mistério e do insondável

Sonhador, sem um objetivo concreto, o protagonista perambula pelas ruas sem esperança de encontrar respostas para seus questionamentos

“Carcará… não vai morrer de fome, Carcará… mais coragem do que homem”
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Confira a interpretação pioneira de Maria Bethânia para "Carcará"
https://www.youtube.com/watch?v=Mw6uxqmHBNY
Carlos Fico diz que livro de Paulo César Gomes “é grande contribuição para a historiografia sobre as relações internacionais da ditadura militar”
Carlos Augusto Silva
Especial para o Jornal Opção
Doutor em História, Paulo César Gomes escreveu um notável livro, fartamente baseado em documentação inédita e dialogando de maneira enriquecedora com a bibliografia que discute a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Foram 21 anos de arbítrio. Trata-se de “Liberdade Vigiada – As Relações Entre a Ditadura Militar Brasileira e o Governo Francês: do Golpe à Anistia” (Record, 559 páginas). A obra, escoimada de amplas citações teóricas – típicas de trabalhos que devem ser apresentados a uma banca examinadora, que cobra as raízes das interpretações –, resulta de sua tese de doutorado apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro. A pesquisa, mais do que revisar, inova e avanço pontos – melhorando a bibliografia.
No prefácio do livro, Carlos Fico, um dos mais categorizados historiadores do país e orientador da tese de Paulo César Gomes, assinala: “A versão segundo a qual, durante a ditadura militar, o Ministério das Relações Exteriores não se contaminou com a repressão – essa, infelizmente, não se sustenta. Não foram apenas alguns poucos diplomatas que auxiliaram o regime militar: a instituição como um todo rodava nesse sentido, e ‘Liberdade Vigiada’ não deixa dúvida sobre isso. Do mesmo modo, a imagem da França como país que acolheu tantos brasileiros fica um pouco chamuscada quando vemos que o governo francês os mantinha sob vigilância e chegou a colaborar com as autoridades brasileiras”.
Carlos Fico sublinha que o livro “é grande contribuição para a historiografia sobre as relações internacionais da ditadura militar brasileira”. Quem diz isto é um dos mais importantes pesquisadores do tema ditadura.
Paulo César Gomes também é autor do livro "Os Bispos Católicos e a Ditadura Militar Brasileira -- A Visão da Espionagem" (Record).
Um historiador jovem, com duas obras densas, que lançam luzes novas sobre a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). Qual é a motivação íntima de seu interesse em compreender o período e a ser um historiador da ditadura?
Há mais de dez anos venho pesquisando temas relacionados à ditadura militar brasileira. Desde o início, interessei-me por analisar a perspectiva do Estado ao longo desses anos, por isso a constante utilização de documentos oficiais como fonte de pesquisa, incluindo aqueles produzidos de modo clandestino por órgãos governamentais. Nunca me atraiu estudar as memórias das esquerdas sobre esse período da história brasileira, mesmo porque o que era apenas uma suspeita, tornou-se uma evidência histórica, isto é, o que era possível ser descoberto a partir de fontes dessa natureza já se esgotou. Não há mais quase nada de novo a ser dito a partir do ponto de vista dos movimentos de esquerda – democráticos ou revolucionários. Para que eu não seja mal compreendido, explico melhor: do ponto de vista historiográfico, ainda há muito a ser descoberto sobre a ditadura, no entanto, essas descobertas não virão das memórias cristalizadas das esquerdas. Isso não significa que a história das esquerdas durante o regime não possua temas a serem aprofundados, como é o caso dos justiçamentos praticados por militantes de grupos armados.
Em diversos momentos, fui questionado a respeito das possíveis novidades que podem ser reveladas acerca do período ditatorial. Venho afirmando que há, fundamentalmente, cinco grandes possibilidades de pesquisa: arquivos estrangeiros, sobretudo provenientes das democracias europeias e dos países outrora comunistas; entidades internacionais, como aquelas ligadas à Organização das Nações Unidas; acervos de órgãos de segurança e informações militares, que até hoje as Forças Armadas insistem em manter sob sigilo; memórias de indivíduos ou grupos que atuaram direta ou indiretamente no complexo aparato repressivo da ditadura (polícia política, espionagem, censura política, censura da moral e dos bons costumes, propaganda e órgãos especializados em perseguir pretensos corruptos); e, talvez o campo mais desconhecido para os pesquisadores, a vida das pessoas comuns, que muitas vezes nem tinham consciência de estarem vivendo sob um regime de exceção. Ainda assim, ressalto, avanços no âmbito da historiografia não se equivalem necessariamente à divulgação do conhecimento histórico para um público mais amplo, o que está inserido na chamada história pública. Não há dúvida de que deve fazer parte da função social dos historiadores o esforço para que a História, produzida no âmbito acadêmico por profissionais sérios e bem qualificados, seja difundida para a sociedade de maneira geral. Esse movimento, por óbvio, não deve ignorar as memórias dos militantes dos grupos de esquerda, que têm um forte e importante aspecto de denúncia de violações aos direitos humanos, bem como o conhecimento histórico produzido por meio da análise das diversas outras fontes as quais temos acesso.
Fale sobre seus dois livros....
Apesar de tratarem de temas distintos, meus dois livros têm ao menos um ponto em comum: ambos buscam analisar os mecanismos construídos paulatinamente pelo Estado brasileiro para buscar controlar indivíduos considerados nocivos para a segurança nacional, tanto no Brasil como no exterior. Um controle que ultrapassava as questões estritamente políticas, mas que se preocupava sobremaneira com aspectos morais e comportamentais. Assim, posso dizer que minha principal motivação para pesquisar a ditadura militar brasileira é buscar compreender de que modo um Estado composto por grupos sociais extremamente conservadores colocou em prática políticas autoritárias que, em certa medida, eram legitimadas por parte significativa de sua população. Então, fica cada vez mais claro que meu principal interesse vem se tornando menos a ditadura militar e mais as práticas autoritárias do Estado brasileiro, em uma duração mais longa, com relação a determinadas parcelas de nossa sociedade, bem como o autoritarismo existente nas relações entre diferentes grupos sociais. Decerto, quando penso em termos de construção de uma trajetória de pesquisador a longo prazo, meu próximo passo será analisar práticas autoritárias contemporâneas em perspectiva global. Pretendo ir abandonando, aos poucos, os temas estritamente ligados à ditadura brasileira, assim como uma perspectiva analítica de cunho nacional, e aprofundar meus estudos do autoritarismo como uma categoria que ultrapassa fronteiras políticas tanto do ponto de vista geográfico, como ideológico – levando em consideração a tradicional divisão entre direita e esquerda.
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Paulo César Gomes, doutor em História pela UFRJ | Foto: Rodrigo Benatti[/caption]
Comente um pouco de sua trajetória pessoal. Construiu sua carreira acadêmica e profissional no Rio de Janeiro, mas é de Brasília. O que o fez deixar a capital federal e vir para o Rio de Janeiro?
Minha trajetória pessoal não é, digamos, muito ortodoxa. Eu iniciei a graduação em História aos 18 anos na UnB. No entanto, naquela época eu estudava ballet clássico com Heloísa Almeida e Gisèle Santoro, viúva do maestro e compositor Cláudio Santoro. Eu já havia decidido que iria me profissionalizar como bailarino, por isso recebi recomendações para que continuasse meus estudos no Rio, já que em Brasília, até hoje, não há um mercado profissional de dança. Foi quando fiz o exame para a Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Ao ser aprovado, passei a ter uma formação muito completa, pois a escola sempre teve preocupação em oferecer o ensino de diferentes estilos de dança, mas também de disciplinas teóricas e metodológicas. Essa fase não durou muito. Logo percebi que não tinha talento suficiente para construir uma carreira profissional consistente no mundo da dança. Então resolvi voltar para a universidade. Prestei vestibular e reiniciei a graduação em História, dessa vez na UFRJ. A paixão pela História começou nesse momento, sobretudo quando comecei a ser orientado pelo professor Carlos Fico, no segundo período do curso. A ele devo a percepção de que poderia fazer um bom trabalho como historiador. A orientação durou até o final do doutorado e foi muito definidora para meus direcionamentos profissionais. Hoje, embora continue a visitar frequentemente minha cidade natal, tenho relações muito mais fortes com o Rio do que com Brasília, até mesmo por ter começado a construir minha carreira profissional aqui.
Ainda é necessário, para os intelectuais, artistas e pensadores brasileiros, deslocarem-se para o eixo Rio-São Paulo para melhor divulgarem seus trabalhos, encontrarem maior/melhor horizonte de diálogo, infraestrutura, bibliotecas, arquivos e todas as necessidades que cercam o cotidiano de um pesquisador, incluindo a visibilidade e o fato de que elas podem repercutir, deste eixo, com maior facilidade, em território nacional?
Infelizmente, a realidade predominante ainda é esta. Do ponto de vista da historiografia sobre a ditadura, bem como da produção de outros profissionais que trabalham com esse tema, há trabalhos muito importantes sendo produzidos em diferentes regiões do Brasil e mesmo no exterior. No entanto, essa produção, com raras exceções, acaba tendo uma circulação restrita, mesmo que a internet venha mudando esse cenário. Além disso, observo que há pouco diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento. Quando entrevisto, para meu site História da Ditadura, um artista visual ou um escritor de ficção, por exemplo, cujos trabalhos dialogam com autoritarismo e repressão, é muito comum que os estudantes, professores e pesquisadores de História que acessam o site desconheçam essas pessoas. Esse é um aspecto que considero importante em minha perspectiva da divulgação do conhecimento histórico, isto é, procuro subverter as tradicionais divisões entre os campos disciplinares científicos ou artísticos. Interessa-me sobremodo mapear as diferentes narrativas que são produzidas acerca da ditadura brasileira, principalmente em se tratando de práticas autoritárias e repressivas.
Alguns dos princípios fundamentais do trabalho que venho fazendo na área da divulgação científica são tanto levar o que vem sendo produzido nas universidades, em linguagem e em formatos mais acessíveis, para um público mais amplo, como promover diálogos entre as diferentes áreas que estão lidando com as temáticas ligadas à ditadura. Procuro, ainda, divulgar trabalhos produzidos em regiões do país que estejam foram do centro Sul-Sudeste. Reconheço que é uma tarefa ambiciosa e, em certa medida, irrealizável por um projeto tão pequeno como o meu, que, ademais, não conta com nenhuma fonte externa de financiamento.
Da mesma forma, é preciso ressaltar que a infraestrutura de trabalho para a produção de conhecimento é precária, em diferentes níveis, em todo o Brasil, com exceção, talvez, de algumas cidades no estado de São Paulo. Mesmo o Rio de Janeiro tem falhas gritantes nesse quesito. Não há dúvidas de que a maioria das cidades brasileiras, mesmo nos estados mais ricos, não possuem bibliotecas e arquivos. Lamentavelmente, a tendência é que a situação se agrave, já que temos um governo de extrema-direita que despreza a educação, a ciência e a cultura. O crescimento dos polos de produção de conhecimento, que vínhamos experimentando nos governos anteriores, já está sendo revertido. Certamente, quem mais sofrerá prejuízos são as pequenas universidades e os campi acadêmicos criados em lugares distantes dos grandes centros urbanos. Esse processo de desmantelamento amplo da produção do conhecimento está em pleno andamento e a perspectiva para os próximos anos não é nada alentadora.
A opção e a valorização maior dada aos documentos oficiais do que aos relatos de memória e depoimentos dão um tônus superior na busca do status de verdade que o texto historiográfico deseja oferecer ao leitor? Os documentos, por mais objetivos que sejam, são examinados, são produzidos, e sabem que resistirão ao tempo; une-se a isso o fato de que, ao serem “entrevistados” pelo historiador, não fogem das crenças e paixões daquele que faz as perguntas. Por que documentos oficiais recebem, como o sr. afirma no seu trabalho, um destaque maior do que outros tipos de fontes consultadas?
Discordo veemente da perspectiva de que os documentos oficiais possuam qualquer tipo de privilégio heurístico quando se busca a verdade histórica. Não há hierarquia entre as fontes utilizadas para se produzir conhecimento histórico acadêmico. Há muito os historiadores abandonaram a pretensão de apreender o passado tal qual ocorreu, bem como os documentos oficiais não são mais vistos como superiores a outros tipos de fontes históricas. Qualquer tipo de vestígio sobre o passado, consideradas suas especificidades, deve ser analisado com grande rigor metodológico. As respostas oferecidas por documentos escritos, oficiais ou não, fontes iconográficas e audiovisuais, mapas, depoimentos, textos ficcionais, entre outros, estão sempre sujeitas à subjetividade do pesquisador. Certamente, continuamos buscando produzir um conhecimento o mais objetivo possível, mas com a consciência de que a narrativa histórica é temporal e instável e, portanto, o status de verdade em História deve ser analisado com muito cuidado. Ao contrário do que certas correntes historiográficas tendem a afirmar, a revisão acadêmica do conhecimento histórico faz parte da prática cotidiana dos historiadores e contribui para que tenhamos visões mais aprofundadas e sofisticadas do passado. Isso não significa negar os fatos históricos que, mesmo podendo ser objeto de múltiplas interpretações, representam os fios que nos ligam ao passado e nos permitem alcançar a verdade histórica. Lembrando que qualquer tipo de representação sobre o passado jamais conseguirá apreender a história tal qual ocorreu. A lógica do discurso, por meio do qual buscamos acessar o passado, é diferente da lógica do real que, por limitações ontológicas, jamais conseguiremos reproduzir. Esse posicionamento historiográfico nada tem a ver com os movimentos negacionistas que observamos acontecer no mundo contemporâneo, incluindo o Brasil. A produção historiográfica é uma prática coletiva. Assim, há certos consensos alcançados por pesquisas metodologicamente rigorosas produzidas por historiadores cuja competência deve ser necessariamente reconhecida por seus pares, além dos princípios éticos que regem a profissão, que não nos permitem simplesmente inventar ou refutar fatos históricos, sem que demonstremos evidências fundamentadas em fontes fidedignas.
A produção historiográfica é sempre uma atividade complexa. Portanto, para que se alcance um trabalho de qualidade é fundamental que haja um cotejamento de diferentes tipos de fontes. A minha escolha por utilizar principalmente fontes produzidas por órgãos governamentais ocorreu em decorrência das questões que conduziram minha pesquisa. Meu problema central era compreender se as práticas autoritárias da ditadura brasileira teriam afetado de alguma forma as relações franco-brasileiras em suas variadas dimensões. Essa escolha nada tem a ver com uma valorização dos documentos oficiais em detrimento, por exemplo, das fontes orais. O privilégio dado aos documentos oficiais está em desuso na historiografia ao menos desde o início do século XX. Mesmo porque, embora meu corpus documental preponderante tenha sido composto por fontes escritas originadas em órgãos governamentais, a utilização de depoimentos e de livros memorialísticos de personagens do período foram fundamentais para que eu respondesse às perguntas que eu colocava ainda no meu projeto de pesquisa, bem como para trabalhar com minhas hipóteses.
O Ministério das Relações Exteriores gozou, nos últimos anos, de muito prestígio junto à sociedade. Seja pelo nível intelectual que os profissionais que lá atuam devem apresentar, haja vista se tratar de funcionários que passam por um concurso extremamente concorrido; seja pela pompa que ronda o imaginário coletivo diante da figura do diplomata. O sr. acha que um lado surpreendente da diplomacia brasileira, e também da compreensão do que é a diplomacia, aparece em seu livro?
A identidade que o Itamaraty construiu para si ao longo dos anos é fundamentada em muitas camadas de memória, o que é comum em se tratando tanto de instituições como de indivíduos. O trabalho do historiador é avaliar até que ponto essas memórias são míticas e não correspondem à realidade. No caso do Itamaraty, o órgão sempre defendeu que sua atuação esteve constantemente atrelada aos interesses primordiais do Estado e, portanto, imune às mudanças ideológicas dos sucessivos governos que passaram pelo poder ao longo do século XX. Assim, durante a ditadura, o ministério não teria sido contaminado pelas práticas autoritárias típicas do regime de exceção.
Quando surgiram os primeiros indícios da existência do Centro de Informações do Exterior (CIEX), órgão de segurança ligado ao SNI, o Itamaraty se defendeu afirmando que se tratava de um corpo estranho imposto pelos militares e que sua existência não teria atingido a autonomia do ministério. Em meu livro, com base em farta documentação, busquei demonstrar que o Ministério das Relações Exteriores, ao longo de toda ditadura militar, atuou de acordo com a lógica do arbítrio. Os temas da segurança nacional e do anticomunismo passaram a fazer parte do cotidiano do órgão e essa evidência é facilmente comprovada quando analisamos as trocas de informações entre o ministério e suas representações no exterior durante todo o período. Além disso, houve um evidente esforço por parte da diplomacia para preservar a imagem externa do Brasil, buscando evitar que o país fosse caracterizado como uma ditadura. Sem esquecer das ações coordenadas de diversas instâncias governamentais que atuavam para promover uma imagem positiva do país no exterior.
Não vejo com grande surpresa a atuação do Itamaraty dentro da lógica autoritária e repressiva da ditadura, já que a administração pública como um todo passou a funcionar dessa maneira. O que mais me surpreende é observar o empenho da instituição para se desvincular desse passado, reiterando insistentemente seus vínculos com os valores democráticos. Essa atitude, embora compreensível em um primeiro momento, não possui qualquer embasamento histórico. No mais, esse movimento de negar qualquer possível ligação com os governos militares foi comum a diversas instituições públicas e privadas, bem como a muitos grupos sociais, que, no período da redemocratização, procuraram reconstruir suas histórias com base em narrativas falseadas acerca de seu passado.
Como historiador, acredita que lançar luzes novas sobre essas instituições das quais por anos nos orgulhamos, talvez demasiadamente com ingenuidade, contribui para que tipo de modificação dessa imagem construída ao longo de tantos anos? É objetivo do sr. mudar a visão que se tem do Ministério das Relações Exteriores, dos diplomatas e de todo o elã que cerca esses altos funcionários e o prestígio de que goza a instituição?
É sempre importante desmitificar construções memorialísticas que distorcem o passado e levam a uma compreensão equivocada da História. Essa é uma das funções primordiais dos historiadores. No entanto, o alcance desse tipo de análise é muito restrito. Como afirmei anteriormente, a história é sempre complexa e, para ter validade, deve ser construída coletivamente e, além disso, precisa ser validada pelos pares. Assim, ainda são necessários muitos estudos para que haja um movimento de mudança acerca da visão que a sociedade brasileira possui acerca do Ministério das Relações Exteriores, assim como de outras instituições. Portanto, não tenho a ilusão de que meu trabalho vá ter um impacto dessa monta. Meu objetivo é muito modesto. O que pretendo com essa pesquisa é contribuir para que o passado ditatorial brasileiro seja conhecido com mais abrangência e profundidade, contrapondo-se a visões superficiais e, em alguns casos, falsas difundidas pelo senso comum e propagadas por autoridades políticas mal-intencionadas. Nesse sentido, reforço a importância da divulgação do conhecimento histórico produzido por profissionais sérios, equilibrados e qualificados.
Estado e elites sempre trataram movimentos sociais com desprezo
Qual a sua responsabilidade, como historiador especializado no período da ditadura militar instituída com o golpe de 1964, de estimular a reflexão a respeito dos direitos civis, da defesa das liberdades individuais, de imprensa, de informação? No contexto atual do Brasil, em que as instituições de produção de conhecimento são abertamente atacadas por um governo de extrema direita, penso que uma forma de sobrevivência para a disciplina histórica, talvez a mais importante, está no diálogo com um público mais amplo. É preciso mostrar abertamente nosso trabalho para o maior número possível de pessoas. Deixar evidente para a sociedade o que é feito nas universidades pode ajudar a demonstrar a importância da produção de conhecimento. Essa afirmação vale para todas as áreas da academia.

Extensão do conteúdo produzido pela FX foi divulgado durante um evento da Television Critics Association nesta quinta-feira, 9