A destruição criativa do trabalho americano
26 janeiro 2020 às 00h00
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Considerações sobre o documentário “Indústria Americana”, que concorre ao Oscar 2020
Everaldo Leite
Em agosto de 2019 a Netflix disponibilizou para seus assinantes o documentário “Indústria Americana” (American Factory), dirigido por Steven Bognar e Julia Reichert, que mostra a difícil síntese produzida a partir do encontro entre culturas de trabalho diferentes. No filme, uma empresa chinesa adquire o que restou de uma montadora da GM em Ohio, no centro-oeste americano, e lá começa um processo de fabricação de vidros, com objetivo de atender a produção mundial de automóveis. Trabalhadores americanos são contratados e submetidos ao modelo chinês de manufatura, que abrange um mínimo de doze horas de trabalho diários e que não se detém para o descanso semanal. Trabalhadores chineses são contratados e trazidos da Ásia para impor o ritmo e suprir as “deficiências” americanas. Sem aceitar que hajam ingerências do sindicato, começa aí uma batalha entre a obstinação asiática e a “predeterminação” do sonho americano.
Desde o início, a velha questão: O que um americano médio quer? Sua cultura de vencedores, como mostra o documentário, fala em bons empregos, excelentes investimentos, casas, família típica, carros, crianças na escola e jovens na faculdade. Há lugar para os perdedores, é claro, mas na imagem das más consequências individuais nascidas das péssimas decisões. Existe, para tanto, desde o seu nascimento, um ideal de liberdade pelo qual todos podem correr atrás de seus sonhos, lançando mão da racionalidade e, não raramente, da certeza de que “Deus” os ajudará. No folclore geral a visão correta é a de que os EUA conseguiram a liderança econômica mundial e construíram a sua colossal força militar em função desse sonho, e, por isso, nunca serão pisoteados por quaisquer circunstâncias externas ou sabotados por uns poucos interesses egoístas internos. O filme “Indústria Americana”, insistentemente, mostra que o contrário pode ser a verdadeira realidade de grande parte do país.
A meritocracia é um valor da democracia dos EUA, pois é o que dá significado às vitórias e às derrotas individuais. Cada um americano tem o que merece, segundo a ética do mérito. Não parece, portanto, na mentalidade americana, que as circunstâncias adversas podem ser a verdadeira causa do fracasso de muitos. O valor do mérito próprio, muito mais relevante, acaba por se impor como uma baliza entre o que o indivíduo consegue realizar e o que ele efetivamente sonhou para si. Por isso, a frustração consigo mesmo é clara e fica estampada na cara de cada um trabalhador – que aparece no filme – após a crise de 2008 ter colapsado o setor industrial de toda aquela região. Aliás, essa frustração quanto à fragmentação de seus sonhos, de terem nada em mãos apesar de atribuir mérito ao que realizavam até então, foi a única coisa que restou de uma complexa equação política e econômica cujo trabalhador nunca tem acesso e compreensão.
Obviamente, o documentário não consegue aprofundar o espantoso contexto político-econômico no qual subjaz os interessantes fatos que apresenta. Seriam muitas horas a mais de filme. Sua meta é contar uma história e dar voz àqueles que comumente servem apenas às estatísticas. Não deixa de ser um ponto de vista americano, mas a oportunidade de fala também se estende aos trabalhadores e gestores chineses, que a utilizam conforme acham pertinente. O produto final, o filme, é bastante franco nesse sentido, não destaca um vilão ou uma vítima, aparentemente todos ali se movem por intenções apropriadas ao que requer sua própria cultura de trabalho. Se os diretores de “Indústria Americana” deixaram de fora da narrativa algo essencial – talvez propositalmente – foi a possibilidade de um sonho chinês ser tão respeitável quanto o sonho americano.
O que os americanos perderam de vista é que outros países também têm indivíduos com desejos. O sonho chinês, diferentemente do sonho americano, é um ideal que, apesar de atender ao indivíduo, precisa primeiramente satisfazer aos interesses coletivos de sua nação. A empresa chinesa precisa ser extremamente produtiva, muito lucrativa, impressionar o ocidente e atender todo o planeta, em honra da China. No documentário esse espírito coletivista fica bastante evidente na postura militarizada dos seus trabalhadores e na forma arrogante como estes se colocam frente aos “preguiçosos” e “piores” trabalhadores americanos. Essa característica parece ofensiva e traz uma ideia de superioridade étnica nada insignificante. Ao cair o véu da polidez chinesa – seus forçados gestos de simpatia e de tolerância – o que se exibe no documentário é a face mais radical e rigorosa da ética da meritocracia. O mérito, para o chinês, é praticamente um estatuto religioso e sua total dedicação ao trabalho é a realização do sonho em si, tendo a casa, o carro e a família – tão caros aos americanos – como consequências secundárias.
Não, os chineses não são desalmados, são na verdade uma nação cuja economia de mercado e o ativismo do Estado lhes restituiu o orgulho imperialista. Não prometem guerra contra nenhum povo, mas querem enriquecer rapidamente ocupando o espaço dos “perdedores” com sua tecnologia inovadora e, como mostra o documentário, com sua carga horária quase suicida de trabalho. Na China, especialmente nas grandes cidades empresariais, se vê muito claramente que a riqueza e a mudança dos hábitos estão criando uma nova civilização asiática. Há chineses ricos, de classe média e chineses pobres, mas o que se deve ressaltar é que a mobilidade social por lá é impressionantemente forte vis à vis à sua crescente produtividade. No documentário, uma equipe americana é levada à China para conhecer esse novo mundo e suas expressões não deixam dúvida sobre o impacto dessa realidade. Meritocracia, mérito, os estadunidenses quase dizem: “eles merecem ser ricos, nós, sindicalizados preguiçosos, não!”.
Os EUA ainda são os grandes representantes econômicos do ocidente, não há dúvida. Sua expansão tecnológica e seu potencial financeiro são admiráveis, sendo pioneiros e hegemônicos em vários segmentos produtivos. O seu setor de serviços é sofisticado e o grau de complexidade de sua produção surpreende o mundo competitivo. Sua supremacia política, com o fim da União Soviética, foi a mola propulsora da globalização, que fez crescer colossalmente o comércio internacional e gerou oportunidades em todos os países que aderiram rapidamente ao novo modelo de negócios, especialmente os países asiáticos. A Coreia do Sul, Cingapura e a própria China lançaram mão de todas as boas ideias do mundo corporativo e, não raras vezes influenciados pelos objetivos de seus governos, sofisticaram a sua indústria e desenvolveram segmentos complexos para atender as demandas mundiais.
O que o documentário “Indústria Americana” revela é apenas mais um capítulo de um momento histórico que se iniciou lá atrás, bem antes da eclosão da crise de 2008. Ou seja, a narrativa somente aponta para mais um processo pragmático de “destruição criativa” – conceito criado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (que não é da chamada Escola Austríaca de Economia) –, que se segue de modo incontornável na esteira deste novo momento do liberalismo. A China transnacional, hoje com melhor eficácia produtiva, melhor tecnologia industrial e enorme ambição por parcelas maiores de mercado, quer destruir o modelo americano e transformar seus trabalhadores, criando novos paradigmas a serem seguidos. O documentário mostra justamente isso, a destruição criativa do trabalho, com a inédita substituição do sonho americano por satisfações materiais e afetivas pelo sonho do trabalho incansável.
O documentário “Indústria Americana” concorre ao Oscar 2020 de melhor documentário, vamos ver que efeito terá essa difícil história nos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na hora do voto.
Everaldo Leite é economista.