Romance de Whisner Fraga: quando a morte dirige a vida

12 janeiro 2020 às 00h01

COMPARTILHAR
O livro aborda o que sempre atormenta o homem: suas fragilidades e impotência diante do vazio, do mistério e do insondável
“É preciso matar os mortos, outra vez, os mortos.” – Herberto Helder
Ronaldo Cagiano
Especial para o Jornal Opção
Em “O Privilégio dos Mortos” (Patuá), Whisner Fraga contabiliza os passivos emocionais, as inquietações existenciais e os questionamentos filosóficos de um personagem emaranhado no cipoal de suas perplexidades, ao mesmo tempo em que faz o registro contundente das mazelas, déficits e contradições da história recente do País.
Tendo como pano de fundo a visita ao túmulo de Heitor, o amigo que conheceu nos tempos da faculdade e que morreu precocemente vitimado por um insidioso câncer pulmonar, esse personagem que não se identifica, mas nomeia um repertório de angústias e pequenos dramas, enceta um denso e tenso diálogo com Helena. Numa interlocução visceral e reflexiva, desnuda-se não apenas o percurso que o levará a uma ancestral Tejuco, onde ele está sepultado, mas toda uma trajetória de vida que atravessa os diversos tempos e ocorrências da cidade, da família, dos convívios e das mudanças de um Brasil que viveu rápido escalonamento de valores e sofre os rescaldos pós-ditadura.
Em um mergulho profundo que emerge de sua relação conflituosa com o meio e seus contrastes, um narrador angustiado vai deslindando perfis, escarafunchando segredos, especulando dilemas, dissecando crises, analisando momentos distintos da vida pessoal e coletiva, sempre com um tom de escrutínio do desconforto e do deslocamento que sempre o perseguiram, seja no cerne familiar, na ambiência escolar ou nas relações sociais e afetivas.
Ao chacoalhar o passado e remover os entulhos e contingências de um presente cada vez mais consumido pela fumaça de seu desalento, em que os mortos governam os vivos, o narrador expõe as fragilidades, fissuras, desencontros e desencantos do ser que ao longo do tempo vem presenciando um contínuo digladiar com seus contenciosos. No rol labiríntico das lembranças, os miasmas dos cadáveres psicológicos e os esqueletos dos desmoronamentos íntimos trazem à tona um tempo de perdas & danos. Estigmas vão sendo clarificados pelo farol das próprias experiências e num movimento alternante entre o ontem e o agora, o embate é contra a inegável transitoriedade (ou finitude) de tudo, a violência do tempo e a inexorabilidade da morte.

Eis uma obra, em todos os sentidos, que esmera os ritos de passagem num contexto catártico de deambulações com a confidente Helena, essa que se converte no receptáculo do estranhamento de um narrador deduzindo seus trajetos e percalços, numa autêntica prosa sobre os dilaceramento do próprio indivíduo, da sociedade e do mundo de que é testemunha. Sob a tutela de um defunto com o qual se quer reconciliar, removem-se camadas que revelam a vida modorrenta do interior, com seus mitos, totens e figuras indeléveis numa arquetípica Tejuco marcada pelo provincianismo, a mediocridade e a alienação, com seus seres insularizados, um retrato crucial e rodrigueano da vida como ela é, a exemplo da varredora de rua, motivo de chacota e execração dos transeuntes. Nesse périplo de vivências atalham-se tantos (e improváveis) caminhos, inscrevendo essa obra num autêntico bildungsroman, que pormenoriza as etapas de desenvolvimento, em todos os seus aspectos, de um personagem que denuncia os rastros de destruição física, mental e moral, no transcurso de suas traumáticas metamorfoses.
Helena exerce no romance dupla funcionalidade: mais do que entidade dialógica por onde flui uma intimidade desveladora, impõe-se verdadeiramente como o sustentáculo do narrador (esse que aspira a um não-lugar no universo). Na medida em que seu nome e atenção vão sendo evocados – como se fora um vocativo-mantra a induzir o leitor a um clímax final –, um gatilho emocional dispara um monólogo interior e exerce o poder de um rio caudaloso, uma espécie de terceira margem do leito metafísico de um personagem onisciente e submerso em suas memórias. É por ele que e(s)coa um discurso povoado referências pessoais e coletivas, onde vai-se construindo um flerte enigmático, simbólico, muitas vezes delirante e permeado de idiossincrasias, em que os flashbacks, a fusão de tempos cronológico e psicológico, a interpolação de territórios físicos e interiores, os recursos da intertextualidade e da metalinguagem, o monólogo interior e o fluxo de consciência agigantam a potência emulatória e crítica do texto. Essa atmosfera conduz a uma expansão multifacética de um olhar sobre tantas fatalidades que transcorrem íntima ou exteriormente, no terreno pantanoso de realidades que não se revogam.
A morte de Heitor metaforiza um certo desejo de resgate daquela vida (ou de sonhos e utopias) não alcançados, de déficits morais e políticos, pois nos confrontos com um mundo distópico – e essa desordem reflete-se na própria estrutura formal da obra, em sua arquitetura ousada e impactante – autor, narrador, personagens e cenários se interpenetram como num sistema de vasos comunicantes. Um trânsito em que predomina a tênue fronteira entre o delírio e a lucidez, a fantasia e a realidade, o tangível e o onírico, percebendo-se uma dicotômica simbiose entre o que se vive com o que se (re)inventa, como se o suprarreal viesse acudir cada um de seu naufrágio nesse tempo e nesse mundo cão em que o que importa não é exumar o cadáver de Heitor, mas a matéria putrefata que denuncia a decomposição dos tantos tecidos de um ser em permanente desassossego, numa constante refrega com suas sombras e obsessões e dolorosa convivência com litígios.
Muitos são os referenciais estéticos, culturais e históricos do próprio autor que ganham força na comunicação que narrador e personagens vão desfiando nesse novelo de inquirições: da música à política, da literatura à cultura pop, do teatro aos universos científicos, ambientes, geografias, territórios, sensações e outros reflexos de uma multifacética bagagem comparecem nesse romance de elevada carga semântica e sofisticados recursos estilísticos, revelando a sintaxe peculiar de um autor no pleno domínio de seu ofício.
O privilégio dos mortos é um livro intimista, escatológico e humano, pois aborda o que sempre desafia e atormenta o homem desde o primeiro sopro: as nossas fragilidade e impotência diante do vazio, do mistério e do insondável. Por isso, talvez tenham mais sorte (ou privilégio) os mortos, que não precisam passar novamente pelo corredor derradeiro das provações. Whisner incita-nos com seu olhar cirúrgico a penetrar a carne débil de nossas convicções, e essa prosa refinada e inventiva, que abdicou de qualquer linearidade ou convencionalismo, optando por uma linguagem desconcertante, espelho do próprio desatino dos que protagonizam a história.
Escrito sem maiúsculas, como a sugerir as minúsculas vivências que retrata, mas pontuado de requintes formais, vasto repertório verbal e um harmônico jogo de palavras e adjetivações que culminam numa prosa poética, O privilégio dos mortos lança farol sobre a vida, para poder purgar suas chagas e exorcizar fantasmas acumulados, na esteira do que já nos disseram os poetas portugueses Rui Nunes (“Escrevo para continuar a morrer, para não acabar de morrer: eis a eternidade: a da voz que me usa e se distancia de mim”) e Zetho Cunha Gonçalves (“Os meus mortos deram-me versos, assombros – um rio acampado na memória!”).
Ronaldo Cagiano é escritor e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção.
Trecho de “O Privilégio dos Mortos”
“… uma perturbação se achega novamente, helena, quando heitor revela que não teme a morte, que está preparado para ela, como helena? como?, como uma pessoa pode ficar assim passiva diante da própria desgraça, mesmo que aparentemente inevitável?, então, ele cita novamente o eclesiastes, talvez porque fosse o único livro sagrado pelo qual eu até mesmo conservava certa admiração: pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos não sabem coisa nenhuma….”