De Evaldo Pereira de Sousa, estudante da Pós-Graduação em Ensino de Humanidades e Linguagens no Instituto Federal de Brasília (IFB)

O processo de mudança do indivíduo é, certamente, indeterminado, considerando os inúmeros acontecimentos necessários para o alcance da plenitude do ser. Semelhante afirmativa é baseada no documentário Laerte-se, dirigido por Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum.

Trata-se de uma obra sobre o cotidiano e a vida de Laerte Coutinho, mulher trans, cartunista e chargista brasileira, de notória importância no Brasil devido aos trabalhos desenvolvidos em grandes editoriais, como as revistas Veja e ISTOÉ e os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo.

Laerte decidiu assumir sua transição em 2010 — e falar publicamente sobre ela — e, atualmente, tem promovido discurso de representatividade em defesa dos direitos da pessoa trans no Brasil, por meio das mídias e do seu trabalho no campo artístico.

O filme é marcado pelo cotidiano da protagonista e o processo de reforma de sua residência, sugerindo os processos de (des)construção pelos quais a artista passa em relação à sua imagem, sua narrativa, aceitação, discursos, vida pessoal, familiar e profissional, bem como aos percalços, aflições e reflexões sobre seu corpo e espaços sociais.

Na primeira parte, a artista revela como assumiu para a família a identidade com a qual se identifica. A história é parecida com a de tantas outras pessoas que descobrem a transexualidade na vida adulta, após constituírem família e terem filhos. Quanto a isso, é possível evidenciar os desafios em estabelecerem-se acordos enunciativos entre esses sujeitos. No que tange ao aspecto linguístico — com o marcador de gênero da língua portuguesa (a para o feminino e o para o masculino) —, carece cada vez mais de diálogo entre os agentes do enunciado, já que o tratamento devido nem sempre condiz com a identidade assumida pelas pessoas transexuais, tendo em vista o estranhamento em comparação à identidade praticada pelo indivíduo até a transição.

Ainda acerca da linguagem, a protagonista vincula o aprendizado de ser mulher à assimilação de uma nova língua. Em sua experiência, as relações de tal aprendizado pessoal estabelecem-se entre a mente, o corpo natural e suas transformações — marcadas ora pela assunção do vestuário feminino, ora pelo desvestir para o feminino, com a retirada dos pelos corporais, por exemplo —, bem como pela aceitação do sexo biológico, com o marcador genital masculino, convertendo o cotidiano e as relações interpessoais em aprendizagem.

O valor simbólico dos traços identitários dos corpos traduzem-se num drama para as pessoas trans. Frequentemente, há cobranças acerca de transformações físicas voltadas para o que acrescentar e/ou tirar. Refletir sobre tais cobranças e assumir os corpos da forma como são também é sinal de resistência dos indivíduos trans, tanto quanto naqueles casos em que há alterações físicas, que incluem intervenção e procedimentos cirúrgicos, como próteses mamárias.

Com isso, observa-se uma linha significativa no percurso da artista durante a narrativa do filme. A inquietação da reforma da casa e as modificações geradas no processo de transição refletem uma preocupação profissional. Na visão estética da cartunista, há pontas soltas de suas obras, imperfeições devidas ao processo do qual ela é fruto. Cabe aqui questionar se as inadequações existentes, físicas e profissionais, não decorrem do ser inadequado que Laerte representa no contexto social, subjugado pela alteridade do seu discurso e do seu existir. Isso porque tal forma de existir não é do jeito certo, baseado em modelos binários, como amplamente difundido e aceito, cujas concepções de identidade e de gênero dos seres assentam-se em feminino e masculino.

Outra observação é em relação à orientação sexual, que diz respeito à atração física e/ou emocional entre as pessoas. Como mulher trans, heterossexual – isto é, atraída sexualmente por homens —, desde sua juventude, como socialmente homem, Laerte conviveu com a ideia de que seria mais aceito tornar-se mulher para relacionar-se com homem do que ser um homem que se relaciona afetivamente com outro homem. Isso traz a narrativa pessoal e associada exclusivamente à orientação sexual e à identidade de gênero da Laerte. Não deve ser entendido, pois, como o modelo de comportamento de homens homossexuais, por exemplo, uma vez que estes, em virtude de relacionarem-se com pessoas do mesmo sexo (masculino), não necessariamente se identificam físico e mentalmente com pessoas do sexo oposto (feminino).

As questões de gênero e de identidade propostas no documentário valem-se da problematização e da visão empática de cada eu-espectador, já que o processo abordado expõe a vivência do outro. Ainda assim, as análises devem ser fomentadas dentro da comunidade, pautadas em métodos de tolerância, solidariedade e aceitação dos envolvidos, vez que as questões de gênero e de identidade são construções sociais, que, muitas vezes, são incapazes de refletir os anseios, os corpos e as narrativas de cada indivíduo.

Desse modo, Laerte, que se fez verbo conjugado no nome do documentário, em referência à libertação pessoal, reivindica o direito de ser mulher, tanto quanto o de ser homem. Sendo processo de mudança e constituição física, seu corpo é eternamente inacabado e, dificilmente, estará resolvido.