Bacurau e Parasita: narrativas que se pautam pela luta de classes
12 janeiro 2020 às 00h00
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“Carcará… não vai morrer de fome, Carcará… mais coragem do que homem”
Coréia do Sul e Brasil, quem diria que produções de países tão distantes fisicamente um do outro poderiam abordar temas tão semelhantes. Não dá para falar pelo sul-coreanos, mas é fato que é difícil não enxergar ao menos um pouco de Brasil na temática de “Parasita” — filme que vem sendo aclamado pela crítica e pela temporada de premiações do cinema.
Por outro lado, aqui, se tem “Bacurau” que, se pensarmos que se trata de uma história passada no sertão nordestino, as semelhanças temáticas com “Parasita” se tornam poucos óbvias. Mas não é isso que ocorre. Bem, vamos para as sinopses (com spoilers).
A produção nacional, dirigida pelos pernambucanos Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, aborda um pequeno povoado localizado no sertão brasileiro, chamado Bacurau. Após a morte de dona Carmelita, aos 94 anos, os moradores descobrem que a comunidade não consta mais em qualquer mapa.
Aos poucos, a população percebe algo estranho na região: enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam à cidade pela primeira vez. Ao mesmo tempo, carros se tornam alvos de tiros e cadáveres começam a aparecer. Chega-se, então, à conclusão de que estão sendo atacados. Falta identificar o inimigo e criar coletivamente um meio de defesa.
O inimigo, como é visto ao longo do filme, é um grupo de estrangeiros que aparentemente escolheram o povoado para realizar uma espécie de jogo em que ganha o que matar mais pessoas. Ao fazer essa escolha, os vilões, em sua maioria estadunidenses, demonstram ter uma visão completamente desumanizada dessa população pobre e não branca do Brasil.
Aí temos o primeiro ponto em comum com “Parasita”. A produção do diretor Bong Joon-ho trata da família Ki-taek, que está desempregada, vivendo em um porão sujo e apertado. Uma obra do acaso faz com que o filho adolescente da família comece a dar aulas de inglês à garota de uma família rica. Fascinados com a vida luxuosa destas pessoas, pai, mãe, filho e filha bolam um plano para se infiltrarem também na família burguesa. No entanto, os segredos e mentiras necessários à ascensão social custarão caro a todos.
Ao longo da narrativa observamos, para além das “pilantragens” da família Ki-taek, a visão que o núcleo rico tem de seus empregados pobres. Não uma, mas em diversas cenas, personagens ricos criticam o cheiro dos mais pobres de maneira mais que depreciativa. Uma forma, um pouco mais subjetiva, de desumanizar os subalternos.
Mas o ápice da semelhança se dá nos plot twists, isto é, nas reviravoltas de ambas as histórias. Na primeira, a matança iniciada pelos gringos se volta contra eles e a população local se une contra os forasteiros utilizando de armamentos e do saber herdado dos cangaceiros da região. Na segunda, em um momento em que ricos fazem pensar que um menino assustado é pior do que a morte dos pobres, os últimos se rebelam e se voltam contra a classe alta em uma cena sangrenta.
Aliás sangue é o que marca e simboliza, em “Bacurau” e em “Parasita”, a vingança de oprimidos contra opressores. No filme brasileiro com um fim mais bem-sucedido que no segundo. Mas o ponto aqui não é este.
Ambos aclamados pela crítica, dadas as devidas proporções, os filmes provocam uma empatia controversa por mirar numa suposta justiça social baseada na vingança. Em uma visão quase anárquica, no sentido revolucionário da palavra, com takes que lembram os sangrentos enfrentamentos de Quentin Tarantino (apesar de não serem inspirados).
Ambos os diretores não economizam na visão trágica que querem deixar das cenas das mortes. E tampouco são singelos com o sentimento eufórico de vingança quando se trata da morte dos respectivos personagens opressores.
Pode o Subalterno Falar?
A escritora indiana, Gayatri Chakravorty Spivak, tida como pós-colonial, é autora do livro “Pode o Subalterno falar?” (UFMG, Coleção Babel, 133 páginas). Uma reflexão densa que termina sem deixar respostas definidas, afinal a intenção aqui é perguntar. E é isso que essas produções cinematográficas fazem: perguntam por meio da metáfora sangrenta sem deixar nada respondido. Pode subalterno falar? Sou a favor da máxima: Ele já fala.
“Carcará”, do maranhense João do Vale, traz consigo uma reflexão sobre a escassez do sertão, mas coloca como personagem central o pássaro que “não vai morrer de fome”. E é isso que, por fim, une as narrativas. A luta pela sobrevivência dos menos abastados é, por imposição, mais violenta. “Pega, mata e come.”