Polêmica em torno de “Democracia em Vertigem” não anula pontos fortes do documentário
19 janeiro 2020 às 00h00
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Realidade virtualmente polarizada leva parte da população a acreditar que só é possível uma narrativa dos fatos, em que outra visão dos acontecimentos recentes seria um delírio
“Democracia em Vertigem” (Netflix, 2019) dividiu mais uma vez a realidade virtualmente polarizada no Brasil. A indicação ao Oscar no prêmio de melhor documentário do filme da diretora e roteirista Petra Costa reacendeu a polêmica da verdade ou mentira contada pelo longa-metragem da brasileira em torno dos acontecimentos que culminaram no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) no dia 31 de agosto de 2016 e a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 28 de outubro de 2018.
Nas primeiras frases usadas na narração do documentário, feita em primeira pessoa, deixa clara a construção que pretende fazer a diretora do filme. “Imagine um país que ganhou o seu nome de uma árvore: pau-brasil. Sua tinta vermelha a levou à beira da extinção. Só ficou o nome. Onde mais escravos morriam que nasciam, era mais barato importar outro da África. Onde todas as rebeliões foram brutalmente esmagadas e república veio através de um golpe militar. Um país, que depois de 21 anos de ditadura, restabeleceu sua democracia e se tornou uma inspiração para muitas partes do mundo. Parecia que o Brasil tinha finalmente quebrado a sua maldição. Mas aqui estamos, com uma presidente destituída, um presidente preso e o País avançando rapidamente rumo ao seu passado autoritário. Hoje, enquanto sinto o chão se abrir embaixo dos meus pés, temo que a nossa democracia um sonho efêmero.”
Aqui, com apenas quatro minutos de filme, Petra Costa deixa claro para quem assiste ao documentário dela, que a narrativa a ser tratada é a do golpe de Estado por meio do processo de impeachment. Não há dúvida para quem está diante da tela a construção que será feita. Mas já nas primeiras cenas, percebe-se que um grande trunfo do documentário é a quantidade de cenas exclusivas, inclusive dos bastidores do poder, a cineasta tem o privilégio e a o oportunidade de fazer.
Todos os fatos narrados e mostrados no filme são de conhecimento público. O filme tem outra questão que o torna interessante: a interessante ligação entre a vida da diretora, a trajetória de sua família e os acontecimentos políticos recentes da política nacional. Ao mostrar imagens pessoais e outras dos espaços de poder, Petra consegue costurar os rumos da nação e onde o parentesco entra na história, tanto na luta pelo direito a participar da vida pública brasileira quanto dos esquemas de corrupção.
O PSDB definiu, em tom irônico, “Democracia em Vertigem” como um filme de ficção e fantasia ao citar a indicação ao Oscar. É aqui que um equívoco é feito. Não se trata de um material jornalístico, que deveria tratar todos os fatos e acontecimento que levaram ao processo de impeachment e à eleição de Bolsonaro dois anos depois. O documentário é um filme. E por ser uma produção cinematográfica, trata-se de uma obra de arte. E um produto audiovisual que tem lado, interpretação dos fatos e recorte.
Parabéns à diretora Petra Costa pela indicação de melhor ficção e fantasia por Democracia em Vertigem.
— PSDB 🇧🇷 (@PSDBoficial) January 13, 2020
A grande qualidade do documentário de Petra Costa está na escola acertada no processo de edição. O filme é muito bem montado. Cabe uma crítica à imagem de arquivo da Chacina do Pomar, em 1976, que aparece aos 6 minutos. A diretora optou por retirar da fotografia a espingarda e o revólver que foram encontrados ao lado dos dois corpos. Por mais que relatos e pesquisas levantem como grande a possibilidade de que as armas tenham sido plantadas, era o caso de a diretora evidenciar a intenção, depois revelada em entrevista à revista piauí, que queria recriar aquele momento de acordo com sua interpretação.
Fora essa montagem – ou adulteração – de uma foto histórica, o documentário é fiel à narrativa construída por Petra. Alguns dizem que a análise da cineasta parte de uma leitura apaixonada por um lado da história. Outro acusam a diretora de não conseguir ultrapassar uma interpretação infantil dos fatos que levaram à destituição de Dilma do cargo de presidente. Aqui destaco a entrevista com o ex-ministro petista Gilberto Carvalho, que parece ser mais preciso do que Petra na avaliação do que levou a era do PT à derrocada.
Petra é honesta com o espectador ao declarar suas preferências políticas, vindas do histórico de militância política clandestina dos pais, que lutaram contra a ditadura militar e foram presos. E logo depois narra o sentimento que a tomou após seu primeiro voto em uma eleição, para o petista Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. “Eu tinha 19 anos quando o Lula foi eleito. Me lembro da alegria, que não estava só em mim. Ela tinha tomado conta das ruas”, descreve no filme a diretora.
O documentário de Petra Costa passa longe de ser o que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que assumiu não ter assistido ao filme, declara: “Ficção. Para quem gosta do que o urubu come, é um bom filme”. O longa-metragem tem qualidade, até quando revela a visão exagerada, de quem não consegue se conter, da diretora ao avaliar a figura do ex-presidente Lula no momento de sua posse, em 1º de janeiro de 2003. “Olha quanto tempo ele leva para atravessar o Congresso. Um escultor, cujo material é a argila humana.”
É como ser nomeada uma segunda vez, em menos de 24 horas. https://t.co/A45gj7keDz
— Petra Costa (@petracostal) January 14, 2020
Mas a continuação da narrativa aponta que, mesmo com toda paixão do primeiro momento, cabe crítica em um olhar que pode ser chamado de militante. “Esses abraços refletem tanto seu carisma quanto sua decisão de conciliar. Eleito por 61% dos votos, ele ainda tem um problema. Sua coalizão não chega a ter maioria no Congresso. Em pouco tempo estoura o mensalão. E seu partido é acusado de comprar votos para aprovar projetos”, destaca Petra no filme.
Não é um erro de Petra dizer que foi um erro de Lula e do PT mostrar com um dos grandes equívocos dos governos petistas as alianças com “as velhas oligarquias” do poder brasileiro, com o MDB nacional. Mas outros pontos acabam por ganhar mais importância do que as contradições das alianças e escândalos de corrupção. Mas a diretora trata o assunto. Talvez não como muitos esperavam? Sim. Mas, em determinado momento, o assunto está lá no documentário.
A diretora revela aos poucos que a admiração pela figura da ex-presidente Dilma Rousseff se dá por uma história parecida com a mãe, que atuou na clandestinidade durante a ditadura militar e a prisão pelo sistema de repressão dos governos de 1964 a 1985 no Brasil. O a aparição de Dilma no documentário se dá com a imagem de uma mulher guerreira, que suportou a tortura daqueles que se envergonham dos atos que cometeram contra uma mulher.
A relação da chapa Dilma e seu vice-presidente, o emedebista Michel Temer, parece ter uma visão um pouco distante de toda a realidade. “Quem mais imaginava que esse homem, que deu toda essa volta para aparecer na foto, cinco anos depois ia querer sair na foto sem ela”, narra Petra enquanto são mostradas imagens da posse, compreendidas no documentário como o prenúncio do “precipício entre Dilma e seu tenso vice-presidente”.
Mas nem sempre a relação entre os dois foi tensa. O jogo mudou a partir do final de 2015, quando um dos vários pedidos de impeachment contra Dilma, depois de dezenas serem negados pelo então presidente da Câmara, deputado federal Eduardo Cunha (MDB-RJ), é aceito após o PT negar apoio ao emedebista no Conselho de Ética da Casa. É aí que surge a carta de Temer com a declaração de que não quer ser um “vice decorativo”. Pelo documentário, parece que o vice-presidente passou os cinco anos, quatro meses e 12 dias em que esteve um posto atrás da cadeira de presidente a arquitetar a queda da cabeça de chapa.
Para não contar sobre o filme, se você leu até aqui sem assistir ao documentário, é melhor ver para depois tirar suas conclusões. Natural que alguém adore o filme e que outra pessoa deteste o formato. Até os cineastas discutem os limites aos quais os documentários devem seguir para assim serem classificados. Mais do que a necessidade de tomar o conteúdo como 100% verdadeiro, parte equivocado ou de uma leitura em determinados momentos bastante equivocada, o longa é bem feito, mostra a qualidade da direção e roteiro de Petra Costa, além de evidenciar a eficiência da produção cinematográfica nacional.
Existem outros documentários que tratam do assunto, cada um com uma abordagem, importância maior ou menor a determinados acontecimento durante o processo de impeachment de Dilma, a posse de Temer e a eleição de Bolsonaro. Alguns são mais sérios, outros mais panfletários. Todos abrem possibilidades de diversas versões sobre o mesmo período histórico no cinema. Umas mais críveis, algumas difíceis de dar credibilidade.
Como o Oscar está aí para premiar a arte, não a construção da narrativa, pouco importa para a academia norte-americana se os militantes de direita detestaram “Democracia em Vertigem” e o definem como peça de ficção delirante. Nem mesmo se os atores da esquerda comemoraram a indicação na categoria melhor documentário. O importante é o cinema nacional ganhar o devido destaque internacional por sua qualidade.
Mesmo que a narrativa de Petra não discuta a quantidade de pessoas que aderiram aos protestos contra o PT, os crimes de responsabilidade fiscal e os equívocos nas políticas econômicas que intensificaram o aprofundamento da crise no País. Fora o estelionato eleitoral que Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se negou a julgar depois que o autor da ação, o PSDB, abriu mão do caso após costurar apoio ao governo Temer. Mas a versão de Petra aos fatos tem sua relevância – pode ser considerada parcial, o que tem o direito de ser – pelo belo trabalho revelação de momentos inéditos de bastidores da história recente do País e de seus principais atores políticos.