Por Alisson Azevedo

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Demora na liberação de corpo pode adiar enterro de Campos

Por decisão da família, o corpo do ex-governador será enterrado no túmulo onde foram sepultados o avô, Miguel Arraes e um tio do candidato, Carlos Augusto Arraes de Alencar

Esquerda e direita

Quase ninguém mais sabe onde estão  – ou melhor, onde ficam – a esquerda e a direita. Não falo da esquerda de Fidel Castro nem da direita de Benjamin Netanyahu, para citar ortodoxos exemplos. Esquerda e direita aqui têm a ver com os lados opostos das coisas – e principalmente das pessoas. Antes de aprender a ler eu já sabia onde ficavam a minha direita e a minha esquerda, de trás pra frente e de frente pra trás. Aliás, tive que tratar de aprender, porque foi esse o primeiro comando de autoridade que ouvi do meu pai na infância: “mais pra esquerda; mais pra direita”. E nenhum outro poderia ter sido mais eficaz para uma criança cega que já queria andar pelo mundo – ainda sem bengala. Com o domínio da noção de lateralidade, eu podia divisar melhor no imaginário os grandes espaços: o rio, a mata, a cidade. E podia também transpôr pequenos obstáculos (ou me desviar deles) a partir de um simples comando: “buraco à direita; lama à esquerda”. Desde que válido, o comando tem me valido ainda hoje. Minha bengala é minha guia, mas ante um orelhão, um carro na calçada ou um buraco imprevisto, o velho comando “esquerda” ou “direita” pode ser minha salvaguarda. O problema é quando o comando vem torto ou, pior, às avessas. Torto, ele vem geralmente em forma de bolero, tipo canção desesperada: “mais pra lá; mais pra cá; não, eu falei pra lá”. E nisso vou eu, errando o ritmo e arrancando os cabelos. Mas há erros com mais método. Descobri nas minhas andanças que, quando o potencial ajudante está de frente pra mim, costuma inverter a lateralidade. Assim fica fácil: se ele diz “esquerda”, quer dizer a sua, e não a minha, então pendo à direita; se ele ordena “direita”, emprego o mesmo raciocínio e faço o contrário. O problema é que, em meio a tanta confusão lateral, há quem não troque o direito pelo avesso. Nesse caso, eu é que fico sendo o torto da vez. Só não sei se entorto pra esquerda ou pra direita. Às vezes me pergunto se a confusão ideológica entre esquerda e direita não será fruto da crise de lateralidade que assola a humanidade. Sei lá. Melhor limitar minha angústia à delicada questão dos lados opostos das coisas – e principalmente das pessoas.

Troca de guarda na Secult-GO

Gilvane Felipe pediu pra sair da cadeira de secretário estadual de cultura de Goiás. Fez bem. Deve ser  insalubre permanecer à frente da pasta da cultura num governo cuja Secretaria da Fazenda tem por esporte favorito apupar artistas goianos. Marconi precisa se definir entre o “governador que mais fez pela cultura em Goiás”, autoproclamado em reunião com artistas ocorrida no início do ano no Palácio das Esmeraldas, e o gestor pródigo em publicidade e austero nas artes. Naquela reunião o governador reparou um “erro técnico” na distribuição do recém aprovado Fundo Estadual de Cultura. Agora, os recursos do Fundo estão com quatro meses de atraso e o secretário da Fazenda diz que serão liberados em cinco parcelas a partir de agosto. A briga da Cultura com a Fazenda não é de hoje. Artistas que tiveram seus projetos aprovados via Lei Goyazes já viram os recursos atrasarem, minguarem ou simplesmente evaporarem. Enquanto secretário, Gilvane sempre comprou a briga, mas aparentemente sem apoio nem na base nem no topo do governo. Na base do governo Marconi (e de qualquer governo), é raro encontrar algum parlamentar que tenha apreço pela cultura – exceto a da soja, do algodão, da cana, etc. Já no topo do governo, se é verdade que o governador tem uma relação antiga com o segmento cultural, essa boa relação não tem sido suficiente para evitar os atrasos e cortes de repasse de recursos impostos ao setor pela equipe técnica da Fazenda. Sem sustentação nem na base nem no topo – que tem outras prioridades que não a cultura --, e atropelado pela inculta sanha fazendária, Gilvane pediu pra sair do governo. Mas não rompeu com o governador. Fiel a Marconi desde o movimento estudantil – em detrimento de partidos, do PC do B ao PSDB --, Gilvane não tem o perfil do operador político goiano tradicional. Com origem na esquerda acadêmica e mestrado na Sorbonne, ele não tem paciência para o bruto jogo da “realpolitik”, nem se encaixa em nenhum dos diversos grupos que gravitam em torno de Marconi – para o bem ou para o mal. À frente da Secult, do Sebrae ou da Sectec – cargos que ocupou nos governos Marconi --, seu grande e único trunfo sempre foi a amizade e o respeito do governador. Usado com mais moderação do que desejavam seus poucos companheiros, esse trunfo logrou despertar a inveja e a ira dos seus não raros desafetos. Agora, Gilvane sinaliza para Marconi que não deseja mais ocupar uma pasta acossada pelo estrangulamento fazendário. O novo titular da Secult, Aguinaldo Caiado de Castro Aquino Coelho – ou Aguinaldo Coelho, como prefere --, talvez tenha mais traquejo para administrar a crônica crise da Cultura com a Fazenda. Carioca de berço vilaboense, Aguinaldo carrega em sua assinatura algumas das mais tradicionais famílias goianas. Mas a formação no Rio de janeiro deu ao artista plástico e professor universitário a faceta cosmopolita de que toda tradição carece. Gestorexperimentado, Aguinaldo Coelho dirigiu por cerca de dez anos a área de patrimônio histórico e artístico da antiga Agepel (Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira). Atualmente é vice-presidente do Conselho Estadual de Cultura. Ligado ao grupo do historiador Nasr Chaul – seu chefe nos tempos de Agepel --, Aguinaldo Coelho transita bem entre artistas, políticos (muitos deles amigos de sua família e alguns até seus parentes), e técnicos da burocracia do governo. Seus amigos vão da Cidade de Goiás à TV Globo, e seu perfil aglutinador bem pode conquistar para a Cultura os áridos corações do secretário José Taveira (Fazenda) e de seus assessores tecnocratas. Com todos os problemas, o governador Marconi não pode ser acusado de entregar a pasta da Cultura ao prosaico loteamento de cargos, como tanto já se fez e ainda se faz por aí. Aguinaldo Coelho é um artista gestor, como exigem os novos tempos; Gilvane Felipe é um intelectual surgido na boa safra da esquerda goiana dos anos 80, que migrou com talento e habilidade para os escaninhos do poder; e nasr Chaul empreendeu o Fica, o Canto da Primavera e o Centro Cultural Oscar Niemeyer, do qual é o administrador. Quadros para gerir a Cultura em Goiás, os marconistas já provaram ter. Quanto aos recursos, o secretário Aguinaldo precisará de muita verve para arrancá-los da Fazenda. Marconi só precisa ter cuidado para não implodir seus quadros do segmento cultural, que tanto diz prezar.

 Ubaldo e Ariano
Em menos de uma semana, a literatura e a Academia Brasileira de Letras perderam os dois mais populares de seus autores. João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna, ambos nordestinos, produziram obras-primas, conquistaram os corações de milhões de brasileiros, e fizeram de sua literatura uma digna profissão. No Brasil de Sarney, não é pouca coisa.    

Um país no divã

A conversa sobre aquele  estonteante placar de 7 a 1 do jogo que malogrou a Copa das copas vai durar anos a fio. E não é pra menos. Mesmo para os pouco aficionados ao esporte de Garrincha, como eu, a derrota foi estupefaciente. (Essa palavra esquisita eu tinha guardado pra um romance existencialista que jamais escreverei.) Antes do jogo, um amigo expert me advertia sobre a propalada superioridade germânica também nas quatro linhas, e eu cogitei admitir o 1 a 0 que ele apostara no bolão. Mas a derrota veio sonora e de chofre, do tamanho das pragas do Egito. Tirou o país do berço esplêndido da glória presumida, e o deitou no incômodo divã da tragédia anunciada. Dizem que o Brasil não é seu futebol -- e vice-versa --, mas agora fica bem mais difícil divisar a linha imaginária que separa um do outro. Aliás, antes e durante esta Copa o imaginário parece ter conduzido a realidade. “Não vai ter copa” e “vai ter a Copa das copas” foram as duas infantis construções políticas que se alternaram, convertendo num patético Fla x Flu de terceira as mazelas e virtudes de um torneio mundial de futebol no Brasil. (Minhas desculpas ao Fla e ao Flu.) O destino inescapável do hexacampeonato apregoado pela mídia reverberou no campo, em amargas lágrimas de pânico. E o pânico – aprendi no divã – é um poderoso e eficaz paralisante. Felipão, o homem cordial sem medida e sem método, foi atropelado pelas circunstâncias. Deu a elas o nome de pane. A Alemanha se portou com o anfitrião como o visitante da “Ilíada” e de tantas outras narrativas: entrou em nossa casa, cortês e elegantemente, para subjugar nossa mulher da vida – a bola. Perdemos a mulher da vida. Ela voltará? Como os deuses antigos, a mulher da vida tem seus caprichos e exige certos sacrifícios. O maior deles já foi feito: a geração do gozo -- ou melhor, do pânico -- por antecipação, e da glória como tarefa, perdeu. E perdeu fragorosamente. A realidade virou o imaginário pelo avesso. E talvez um bom jeito de organizar a realidade seja começar organizando o imaginário. O problema é que não temos sete vidas. Só nos restaram os sete pecados.

Quanto dura um poema?

“Naquele sarau você leu um poema lindo”, ela me disse de um modo inesperado. Eu tive que revirar a memória pra me lembrar daquele sarau. Com a ajuda dela, concluí que deve ter sido há uns sete anos, na casa de um amigo comum. E foi o último. Já o poema... Ela reteve a imagem da beleza daquelas palavras, como quem retém a imagem de uma bela figura sem rosto e sem nome. Se o ouvisse outra vez, talvez o reconhecesse, como quem reconhece por intuição a imagem de uma bela figura antes vista. Mas eu – minha desmemória --, meu profundo desalento por não saber um só verso de cor. Terá sido de Pessoa, de Drummond ou de Vinicius o poema em branco retido pela moça? Naquele tempo eu também empunhava os meus próprios versos. Será que? Milton Hatoum, o romancista de “Relato de um certo Oriente”, costuma dizer que o poema é a obra perfeita da palavra. O romance e o conto, mesmo os grandes, têm seus altos e baixos; uma peça teatral só faz realmente sentido quando encenada; e a crônica é o gênero menor, com variações (mais pra menos que pra mais). Já o poema – cada belo poema – contém em si a perfeição traduzida em palavra. Vem daí sua força comovedora (“O amor dos homens”, de Vinicius), seu poder de mobilização dos sentidos (“A metafísica do corpo”, de Drummond), sua capacidade de perpétua fixação nalgum (não) momento do tempo ou desvão da memória (“tabacaria”, de Pessoa-Álvaro de Campos). O alumbramento, pela leitura ou audição do poema-perfeito, é como a fruição de um preciso e imprevisto gol a favor, de um lancinante orgasmo, da contemplação do sublime. É por isso que, para a moça que reteve o poema-perfeito lido por mim nalgum (não) lugar, esse poema não tem fim. E nem é preciso que ela recorde seus versos, seu nome, seu autor. Essa é talvez a mais incomum das peculiaridades do poema: é feito para se ler num instante, mas pode durar uma vida. É quanto soará minha voz nos ouvidos daquela moça, ainda que vagamente, a ler um incógnito poema-perfeito. Prerrogativas de mensageiro da poesia.

Quem matou José Arcadio?

O primogênito dos Buendía, a família que atravessou em Macondo os “Cem anos de solidão” magistralmente engendrados pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez, foi morto em misteriosas circunstâncias. José Arcadio, diferentemente de seu irmão Aureliano, e principalmente de seu pai,  era um gigante sem imaginação. Ainda adolescente, fugiu de casa com os ciganos, deixando para trás um filho que jamais saberia seu. Voltou um homem descomunal, tão pobre como partira, após ter cruzado os mares do mundo inteiro. Viveu de michê e de jogos de força até se casar com Rebeca Buendía, sua irmã postiça. O casamento o transformou num pacato lavrador de terras de ninguém, até o início da guerra em que se meteu seu irmão, o agora coronel Aureliano Buendía. A corpulência de José Arcadio não o estimulou a ir à guerra, mas da família Buendía foi ele quem mais se beneficiou dela. Tirando proveito da fama e valentia do coronel Aureliano, ele grilou todas as terras de Macondo. Contra quem resistiu, usou sua descomunal força bruta. José Arcadio contava com a remunerada proteção do administrador da cidade, nomeado pelo coronel Aureliano – o último a saber das tramóias do irmão. Esse administrador cruel e rapace – belamente  chamado alcaide de Macondo – era ninguém menos que Arcadio, o filho deixado para trás por José Arcadio na fuga com os ciganos. Mas pai e filho ignorariam até a morte seu verdadeiro parentesco. Arcadio, o filho, foi fuzilado pelos inimigos quando a maré da guerra virou. José Arcadio sobreviveu ao filho incógnito e à guerra, mas foi misteriosamente assassinado com um tiro no ouvido em seu quarto, em pleno fim de tarde, ao voltar de uma caçada. Rebeca, a viúva, estava em casa durante o ocorrido, mas alegou nada ter visto nem ouvido. Segundo disse, se fechara no banheiro após a chegada do marido. Embora pouco crível, a versão prevaleceu, à falta de outra melhor. Além do quê, ninguém acreditou que Rebeca pudesse ter matado o homem com quem era escandalosamente feliz e por quem rompera um longo noivado e enfrentara a família. Se o assassinato de José Arcadio tivesse sido investigado, não faltariam suspeitos. Além de Rebeca, no rol estariam: os fundadores de Macondo, de quem ele usurpara as terras; os camponeses pobres que explorara; os muitos homens dos quais ganhara apostas de quedas de braço; e as tantas mulheres que o tiveram e o perderam para Rebeca, o cobiçaram ou foram por ele desdenhadas. Na delicada teia familiar, o principal suspeito seria o coronel Aureliano Buendía. Orgulhoso e honrado, ele seria capaz de matar o irmão para reparar o criminoso uso de seu nome e devolver as terras griladas aos seus verdadeiros donos. Poderiam ser levantadas outras factíveis ou descabidas suspeitas, mas agora tanto faz. Afinal, o assasssinato de José Arcadio “foi talvez o único mistério que nunca se esclareceu em Macondo”. Mas certamente não foi o primeiro nem o último crime sem solução. Ultimamente, aliás, garantia de resultado em investigação de crimes, só em novela das oito.

Milagre da ciência ou pontapé “padrão Fifa”?

O pontapé inicial dado no primeiro jogo da copa por um rapaz paraplégico, se visto com os óculos da esperança, foi alviçareiro; mas se visto com as lentes obtusas da promessa, foi chocho. Quem, como eu, nasceu e cresceu com alguma deficiência, foi acompanhado desde a infância pela vaga, mas renitente, promessa do milagre. No meu caso, da insuspeita Santa Luzia aos mais renomados oftalmologistas do país no seu tempo – passando por médiuns, curandeiros e pastores igualmente renomados --, todos prometeram que eu enxergaria em breve. E nenhum teve sucesso, pelo menos até agora. Pelo milagre, tomei periódicas e caras vacinas nos primeiros dois anos de vida, fiz a dieta do peixe para esperar, dormindo, a visita de um invisível doutor Fritz, e fui compelido, por uns homens que me enchiam os olhos (e a barriga) de água benta, a ter fé na conquista de uma visão que eu sequer supunha o que era. Um pouco mais tarde, quando minha família já havia desistido do milagre que eu nunca esperara, fui fisgado pela sedução da promessa. Ali pelos sete, oito anos, uma prima com uns três a mais -- e uma precoce mitomania -- me disse que eu iria enxergar aos nove. Ela me contou a  história de uma vidente que nosso avô consultara, e que até marcara dia para o milagre: meu aniversário de nove anos. Mas eu não podia comentar com  ninguém, muito menos com nosso avô, de quem ela ouvira a conversa em segredo. Nessa promessa de milagre eu acreditei, e esperei por ele com uma ansiedade atroz. Minha malévola prima, feliz por despertar em mim a inédita fé, exaltou o prometido milagre até a véspera do meu mais aguardado aniversário. O milagre não veio, como de costume. Mas em vez de recriminar minha prima,  aprendi, como muitas pessoas com deficiência mundo afora, a não precisar mais dele. Não por acaso, o pontapé inicial da copa me fez lembrar essa pouco singela história infantil. Liderada pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, a equipe do projeto “andar de novo” alardeou, em tom milagreiro, que por meio de uma veste robótica controlada pela atividade cerebral (exoesqueleto), um “paciente paraplégico” [sic] iria “se levantar de uma cadeira de rodas, caminhar por cerca de 25 metros no campo e dar o primeiro chute da Copa". Assim como sua cobertura pela Globo, o primeiro pontapé da Copa foi tímido. E ao contrário do prometido, o tal exoesqueleto não logrou fazer com que o rapaz paraplégico caminhasse um metro sequer no campo. O projeto do cientista Nicolelis certamente tem seus méritos, mas ao se submeter ao famigerado “padrão Fifa”, perdeu a razão. Afinal, uma abertura de copa do mundo, ainda mais quando submetida às irracionais regras do mercadinho da Fifa, não é lugar para experimentos científicos. Por r$33 milhões de reais de ajuda do governo brasileiro e muita promessa de mídia internacional, Nicolelis experimentou e teve pífios resultados. Seu experimento ganhou ares de milagre malogrado, e a ciência ficou reduzida a mais uma piegas pantomima em meio àquele espetáculo farsesco.

Chumbo em quem?

A TV Cultura tem a melhor programação adulta (sem eufemismos) do sinal aberto no Brasil, apesar dos solavancos recentes.

Mas sua programação infantil está, sem exagero, entre as melhores do mundo. Em fevereiro passado, por exemplo, a Cultura ganhou o prêmio Emmy – o Oscar da televisão – com a série infanto-juvenil “Pedro & Bianca”.

A TV pública brasileira derrotou atrações da Dinamarca, Irlanda e Japão. Para um país que restringiu a qualidade da televisão aos canais pagos, não é pouca coisa.
Em Goiás, a TV Cultura chegou com atraso, retransmitida pela estadual TBC (TV Brasil Central, canal 13), em 1996. Para quem se ressentia da qualidade na TV aberta num tempo em que os canais pagos eram proibitivos, foi uma vitória.

Da minha parte, posso dizer que “Castelo Rá Tim Bum”, “ Nossa Língua Portuguesa”, “Vestibulando” e “Roda Viva” me livraram do tédio e da burrice imperantes naquele fim de século.
Mas os tempos são outros. Em Goiás, agora, as crianças podem assistir na Cultura – aliás, na TBC Cultura – sempre às 11 da manhã, ao singelo programa “Chumbo neles”.

Policial abjeto, o “Chumbo neles” exibe cenas de puro horror logo antes do almoço para adultos de mau gosto e crianças de má sorte que, não fossem as tenebrosas escolhas da TV do governo do estado, estariam assistindo a uma programação digna do prêmio Emmy – o oscar da televisão.

O programa de Batista Pereira – é este o nome do apresentador do “Chumbo Neles” que começou no “grosso” --, é certamente merecedor do prêmio “m...” – a escória da televisão.
A TBC Cultura tem outras pérolas em sua programação, como um ridículo “Programa Aplauso”. Mas aquele é apenas um rescaldo do colunismo social que se praticava em princípioos do século XX: uma frívola diversão para adultos frívolos.

Já o tal “Chumbo ...” invade, com o sol a pino, uma das melhores programações infantis do mundo para destilar nas crianças goianas sua crueldade, seu mau gosto, sua vileza.
Quanto ao governo estadual – dono da maltratada TBC Cultura --, merece os parabéns pela versatilidade.

Afinal, não é para qualquer governo realizar um FICA para quem lá pode ir e proporcionar um circo macabro a quem aqui tem que ficar. “Chumbo neles”?

Manifestações

Nos idos de junho, participei de uma grande e pacífica manifestação no centro de Goiânia. Fui mais por interesse sociológico, confesso, do que por engajamento. É que para os meus padrões de militância, herdados do século passado,  a pauta era tão vaga e diversa que eu não sabia ao certo em quê me engajar. No ato não havia uma liderança, mas várias, tão difusas quanto desarticuladas. Exemplo disso foi a literal cisão do movimento em plena Praça Cívica, quando um carro de som conduziu seus seguidores em direção ao Paço Municipal, ao passo que outro tomou o rumo da Praça Universitária, seguido por mim e por algumas centenas de nostálgicos. Fora da arena das manifestações, para onde voltei depois de tão desalentadora dispersão, o clima era de confusão e perplexidade. Para os simpatizantes dos governos do PT, eram incompreensíveis as revoltas populares de junho, após tantas estatísticas revelarem a melhoria da qualidade de vida dos mais pobres. Já para os detratores de Lula e Dilma, os idos de junho antecipavam um anseio de mudança que teria seu ápice na eleição presidencial de 2014. Passado quase um ano e resguardadas as legítimas marcações de posição na arena de disputas, o mais provável é que ambos os lados estejam errados. Ao que tudo indica, foi exatamente a melhoria da qualidade de vida da população mais pobre que elevou seu nível de exigência em relação à qualidade dos serviços públicos a ela oferecidos. Há uma parcela de brasileiros que recentemente conquistou o acesso ao consumo e ao crédito, e que vem sendo cada vez mais assistida por programas sociais de acesso à moradia e à educação superior. Essa parcela, chamada de "nova classe média" à falta de melhor nome, passa a não mais se ver compelida a aceitar passivamente o desmantelamento e a indigência de serviços públicos essenciais -- como o sistema de transportes, por exemplo. Por outro lado, o anseio de mudança dessa "nova classe média" não se reflete, até agora, em vontade de votar na oposição. Esse parece ser um anseio da classe média tradicional, que embora tenha apoiado as manifestações, em maior ou menor grau,  desde junho passado, não vem conseguindo dirigi-las, nem na forma nem no conteúdo. Mais à esquerda, o Movimento Passe Livre e seus congêneres ficaram para trás, perdendo espaço para a primitiva violência dos black blocs. Entidades tradicionais de trabalhadores e estudantes, como Cut e UNE, cujas bandeiras sempre foram relativamente próximas das dos novos manifestantes, ou foram alijadas do processo ou se mantiveram cativas de suas agendas invisíveis. Mais à direita, a agenda negativa de enfraquecimento do governo, que teve seu auge no julgamento do mensalão do PT e na prisão dos condenados, não logrou conquistar os corações das massas em marcha. Assim é que as manifestações derivadas dos idos de junho seguem isoladas de todas as correntes do espectro político, sem conseguir engendrar, até aqui, uma força minimamente apta à articulação e à negociação. Logo na origem, essas manifestações descredenciaram os partidos políticos – por si mesmos já tão descredenciados – como instrumentos de mediação de suas reivindicações. A corriqueira e desmedida repressão policial, em vez de atingir o efeito esperado pela predominante porção imbecilizada do Estado, produziu efeito contrário. Cada vez mais gente saiu às ruas para pedir passe livre, hostilizar os partidos ou maldizer a copa do mundo, para nada disso ou seu contrário. Em meio a palavras sem ordem e brados sem foco, apenas um bordão extraía o coro daquelas vozes tão dissonantes: “sem violência”. Paradoxalmente, quanto mais se distancia aquele conturbado junho de 2013, tanto mais a violência deslegitima as manifestações proliferadas a partir dele. A violência legítima – ou legitimada por importantes setores da sociedade – já foi utilizada por não poucos movimentos sociais no Brasil e mundo afora. Não é outra a origem da presidente da república e do senador tucano Aloysio Nunes ferreira (para citarmos personas políticas hoje em campos opostos), que não a luta armada contra a ditadura civil-militar de 1964-1985. Mas a violência como instrumento político (vide black blocs), com tantos outros à mão mesmo em nossa frágil democracia, é repulsiva a diferentes setores da sociedade, dos mais conservadores aos mais progressistas. Não menos repugnante é a violência gratuita, ou mesmo aquela em reação, ou em antecipação, à usual truculência da polícia em manifestações. Esse expediente, aliás, tem sido bem mais frequente do que a ação dos midiáticos black blocs. Um mau exemplo são os recentes quebra-quebras de ônibus em Goiânia, nas manifestações contra o deplorável transporte coletivo da cidade. Esse tipo de violência, que vai ganhando ares de efeito colateral de qualquer manifestação legítima, é resultado direto do ódio à política deflagrado nos idos de junho. Infelizmente, o que se vê de lá para cá em manifestações de todo gênero é o desprezo da política como único instrumento civilizado de mediação de conflitos sociais. Por piores que sejam a política e seus atores – e não custa lembrar que o Brasil está melhor do que já esteve neste quesito --, não há outro modo de lidar com os problemas coletivos. Fora a política, alguém já disse, é a guerra. Sem se submeter ao necessário e complicado jogo de forças da política, as manifestações perigam terminar, cada vez mais, em confusão e barbárie. E perigam terminar, de uma vez e por muito tempo, o vacilante pacto entre sociedade e civilização.

Psicanálise

Fiz análise no limiar da vida adulta – ou melhor, no fim de uma adolescência que eu teimava em retardar. O tempo era de transtorno e conturbação, e talvez por isso mesmo eu brigasse tanto com meu analista para não conhecer as difíceis verdades trazidas à tona por Freud e Lacan. Eram tais e tamanhos meus tormentos – inclusive o de pagar a conta do analista --, que costumo dizer a quem me pergunta: melhor do que fazer análise é ter feito análise. A fala e a escuta que, no divã, precipitavam minhas angústias e medos, agora funcionam como uma espécie de segredo do cofre, como uma chave (mestra) de acesso a inimagináveis riquezas. Meu analista, outrora o imaginário déspota esclarecido dos meus afetos, agora é o oráculo a quem recorro sempre que preciso aprender algo novo que ficou pra trás. “Você pode aprender”, ele me dizia a cada pequena derrapada ou grande fracasso. E me ensinava que fazer sucesso não é proibido, nem é fácil aceitar o sucesso alheio. Ainda o ouço. Aliás, o ouço muito melhor agora, passada aquela forte chuva. Às vezes tenho vontade de voltar ao divã. Mas ainda me assombram aqueles tais e tamanhos tormentos tão caros à psicanálise. E pensando bem, o melhor do divã ficou em mim. Está em mim, indelevelmente. Basta que eu aprenda com a fala e a escuta de outros tempos, mas que não tem tempo.

Única certeza

Dizem que o homem faz e acontece (ou desfaz e não acontece) porque é o único animal que sabe que vai morrer. E esta é, dizem, a única certeza do pobre homo sapiens neste vasto mundo: sua morte. Por analogia, todo sujeito também tem certeza da morte de seus semelhantes. Foi essa, aliás, a grande angústia da minha primeira infância. Descobri a morte aos 6 anos, quando perdi meu primeiro amigo num atropelamento. Depois disso, adquiri um medo insano de ficar pra semente, como então se dizia. Era o avesso do medo de morrer: eu temia que as pessoas amadas morressem todas antes de mim. Antes de morrer, passado dos 100 anos, o arquiteto Oscar Niemeyer deu uma entrevista que reavivou esse meu temor de infância. Ele disse que a grande desvantagem da longevidade não é a degradação física, mas a inevitável perda de amigos e entes queridos. Numa palavra, para Niemeyer, o mal de viver demais era a solidão. São comuns histórias de pessoas idosas que não suportam a viuvez e morrem logo em seguida. Soube de um velhinho cardíaco que, após a morte da mulher, suspendeu os remédios por conta própria e morreu de solidão. Há também aqueles velhos graves, que a cada perda vão ficando mais e mais calados e imersos em seu mar de lembranças e esquecimento. E há ainda velhos, como a minha nonagenária tia Joana, que depois de tantas perdas conservam a lucidez e a ternura dos que, à sua maneira, se aproximam de Deus antes de conhecer a morte.

O Filho da Preta

Menino alvinho, cabelo escorrido. Mãe dizia que: “é porque o pai era branco feito leite.” Sangue dela era forte, tinha até mistura de índio. Mas raleou no Menino. “Pai macho! Deixa a mãe ver se meu branquinho saiu macho também.” E fazia menção de bulinar nas partes dele. Depois era aquela risada curtida no fumo. Primos, muitos, não gostavam do Menino. “Branquinho invocado!” Primas gostavam. Generosas, compreendiam tudo: que o pai era branco, sangue grosso, coitadinho não tinha culpa. A Wanda, que já era mãe, iniciava o Menino na sua carne rija de mulata: “Quero um filho branquinho assim. Mas deixa mais pra frente. Agora só pode é na brincadeirinha.” “Menino!” Era seu Simão, da venda, chamando. “Esse Vicente, primo do teu pai, quis te conhecer.” Vicente mulatão, forte já quase fraco: “Sou teu tio, assim de consideração.” Menino: “E de consideração é primo do meu pai?” Vicente: “Primo de sangue.” Menino: “E ele, como era?” Vicente: “Mais preto, mais forte e muito mais bom do que eu. Que eu, pra pegar menino na zona e dizer que é meu, isso não faço. Nem que fosse filho da rapariga mais bonita do mundo, como era o caso.” Seu Simão ensaiou despedida: “Seu Vicente, dê lembrança aos meus”. Vicente abraçou o menino como se abraçasse o primo de sangue e saiu. Menino: “Seu Simão, minha mãe era bonita?” O comerciante mirou o horizonte e pensou que a verdade e a beleza não servem pra nada, a não ser pra virar palavra: “Rapariga mais bela do que qualquer rainha, meu rapaz.” Mãe preta do Menino não gostava de Seu Simão: “Passa longe. Velho danado pra inventar conversa.” Mas Menino precisava contar, saber: “Mãe, conheci, lá no seu Simão, um Vicente primo do pai.” E a mãe: “Menino nojento cão do diabo! Eu não falei pra não dar conversa pr’aquele velho ladrão?” E pegou o chicote de bater em cavalo, que era pro Menino aprender. Lapada: “Não tem primo de pai nenhum.” Menino: “Tem, mãe, e é preto.” Lapada: “Se é preto não é primo.” Menino: “É primo, mãe, e o pai era mais preto.” Lapada: “Se era preto não era teu pai.” Menino: “Era, mãe, e a mãe era branca.” Lapada: “Quer ser filho da preta ou da puta?” Menino: “Das duas, mãe.”

Imagino, logo existo

Minha concentração para aprender o que quer que fosse esteve sempre abaixo da média. Quando entrei na escola era um custo me manter acordado, o que só acontecia graças aos truques de professoras já escoladas em alunos da minha laia. E logo que venci o sono, descobri o prazeroso poder mental da divagação. Foi assim que minha mente insipiente, tábula rasa para a acomodação do conhecimento, se converteu no território sem forma da imaginação. Passei a divagar por qualquer coisa – e sobre qualquer coisa. A hipotenusa, por exemplo, me fazia pensar na medusa, na musa, na andaluza. O pouco que aprendi não foi por sede de conhecimento, mas apenas para instrumentalizar minha imaginação. Alguns rudimentos de história, por exemplo, bastaram para que eu convivesse intimamente com figuras de várias épocas – da Guerra do Peloponeso à Revolução Sexual de 60. Satisfeita minha imaginação, esses rudimentos eram lançados ao vale do esquecimento. Só a literatura sobreviveu a esse perverso descarte. Isso porque me tornei personagem secundário de cada livro que li e que calou fundo na minha imaginação. Quando sinto que estou esquecendo o que li nalgum deles, volto a relê-lo com a avidez de quem foge da morte. E imagino, logo existo.