Tálita Azevedo não é minha parente, portanto não se trata da usual prática do nepotismo
convidá-la para escrever nesta coluna. Acontece que, para além do sobrenome – aliás, eu não
queria dizer, mas nós os Azevedos representamos uma verdadeira dinastia nas letras
brasileiras (como estou cafona nesta quarentena!) –, mas dizia eu que, para além do
sobrenome, Tálita e eu temos muito em comum.

Fazemos parte de uma geração de cegos que podemos escrever também para não cegos, o
que, embora não pareça, é algo revolucionário. Você certamente vai se lembrar do escritor
cego argentino Jorge Luís Borges e, só em pensamento, espero, vai me acusar de charlatão.
Acontece que o Borges (também ele um “Acevedo”, diga-se) foi perdendo a visão aos poucos,
e quando já estava praticamente cego teve sua Maria Codama, amor outonal a quem ele
ditava seus escritos da maturidade.

A Tálita e eu fomos forjados no sistema braile, cujo aparecimento, em meados do século XIX,
para nós cegos equivaleu à invenção da lâmpada.
Mas para a maioria dos não cegos o braile ainda é um indecifrável enigma. Basta observar a
perplexidade geral ante aquelas inscrições pontilhadas nas caixas de remédios ou de produtos
da Natura.

Se o braile nos possibilitou o acesso ao mundo das palavras por uma improvável via tátil, agora é a tecnologia que nos garante, a mim e à Tálita, a possibilidade de escrever para cegos e não cegos com autonomia.

Amador das letras, eu escrevo num antigo computador utilizando um software leitor de tela. Já
a Tálita escreve profissionalmente utilizando seu smartfone, que já vem com um leitor de tela.
Ela é mestranda em educação pela Universidade Federal de Goiás. (Sim, ministro, estudante é
profissão.)

Tomando por mote um verso do Vinicius, ela faz abaixo um relato de sua experiência nesta
quarentena. É desprezando os lugares comuns de vítima e heroína paradoxalmente atribuídos
às pessoas com deficiência que esta jovem — e singular — mulher se apropria do seu lugar de
fala.

Para melhor apresentá-la, roubo outros e mais prosaicos versos do Vinicius: “Eu não ando só /
Só ando em boa companhia”.

“Mas tudo é nada…”

(Tálita Azevedo)

Ao receber a proposta para escrever nesta coluna, me deparei com um problema bastante
significativo para mim: a escolha de um tema. Na verdade, me vi perdida entre tantas coisas e

nada ao mesmo tempo, afinal, várias ideias me surgem, mas a questão é: qual a relevância de
falar sobre este assunto?
Bom, então me submeti ao meu entusiasmo e a honra que senti ao receber esse convite,
desde já obrigada Alisson Azevedo e Euler Belém pela oportunidade.

Em 2017, conheci o jornalista Edmar Oliveira, o qual publicou uma entrevista
(clique aqui) feita comigo neste jornal. Com isso, você provavelmente já me conhece, então não vou me apresentar porque o jornal já se encarregou de fazer isso. Posso ao menos te atualizar dos fatos mais recentes e onde me encontro hoje.

Não há nada tão recente como a pandemia do coronavírus,momento crítico e histórico
mundialmente. O mundo parou… Não se fala em outra coisa a não ser sobre: saúde, economia, política , educação a distância, alastramento e controle da doença e os inúmeros casos fatais.

Percebi que a violência cessou, o que confirma para mim que as más notícias são um prato
cheio para a grande mídia. Deixei de acompanhar, não porque eu fosse insensível, mas pelo fato de que sou bastante empática e com os agravantes eu já estava me intoxicando. Temi por minha saúde emocional, o que ironicamente poderia complicar minha saúde física. Eis aí um tema pertinente, ( a covid-19 e o meu eu). Encontrado o tema, são as palavras que agora me fogem, entretanto vamos ao que interessa.

Tentei ao máximo driblar minha ansiedade: acompanhando notícias no Google, assistindo
vídeos e ouvindo pentatonix no YouTube, jogando duolingo , não que eu não fizesse todas
essas coisas antes, mas agora faço com mais frequência. Resolvi escrever alguns textos
corriqueiros para descontrair e outros mais sérios para me expressar, todavia,com o tempo
tudo isso perdeu a graça.

Tenho minha família junto a mim e isso é louvável, ou melhor, um conflito a menos.
Reconheço que há inúmeras pessoas que não estão tendo este privilégio. Já que eu “só
estudo’, nunca me senti tão irresponsável como agora. Por possuir todos os créditos do
mestrado, não preciso assistir aulas online. O que me resta é escrever a dissertação, mas
necessito de uma documentação para proceder minha pesquisa, no entanto, está tudo
travado. Enfim, ser um irresponsável por mais de um dia cansa.

Sem a possibilidade de ir e vir, comecei a viajar para dentro de mim,coisa que a tempo eu não
fazia devido a correria da vida lá fora. Passei a me estudar naquilo que me importa: qual lição
posso tirar dessa situação? Conclusão: tenho dificuldade para lidar com a falta. Falta da igreja,
da turma do teatro, da aula de inglês, deles, delas. Seria pelo fato de que sou brasileira de
carteirinha, daquelas que adoram um abraço forte e demorado das pessoas queridas? Ou ainda, pelo fato de que sou libriana e preciso me socializar? Senti falta até do mercadinho da esquina, ou seria da minha liberdade?

Na realidade, apenas ouvir a voz dos amigos não é o suficiente. Os quero por perto para cantar e tocar violão, sermos jokes ou simplesmente tricotar enquanto tomamos café amargo. Senti falta de algo para fazer, no entanto me perguntaram como eu estava e minha resposta foi: estou com vontade de fazer tudo e nada. Então ouvi: isso não é possível. Mas me sinto assim.

Percebi então que não é o cansaço que me faz procrastinar. Por sorte, me foram enviadas
algumas atividades de produção teatral, e os convites para aqui escrever, além de uma
possível parceria musical. Ambos me levaram ao êxtase, pois a arte e a escrita são atividades
prazerosas para mim.

Voltando a viagem para dentro de mim, após me deparar com minha empatia, com o que faz
falta para mim, com o que curto fazer e com as diferenças entre fatos e desculpas, me
encontrei com os meus medos. Antes era só pegar minha bengala e ir ao mercado,eu solicitava aquilo que precisava, o atendente me servia e eu retornava para casa tateando pelo caminho.

Pela a ausência da visão, ( meus colegas e eu fazemos parte de um grupo de risco. Com isso,
todo cuidado é pouco e a preocupação da família vem em dobro.

Na verdade, não me preocupo tanto comigo, mas outra vez me ponho no lugar do outro. Não
estou dizendo que me sinto imune, aliás, ficar em casa não é mais opcional. Teria eu medo de
morrer? Talvez não, não sei como seria isso; só temo pelos sintomas antes da morte.

Me peguei a pensar na perda e me deparei com um inimigo medonho. Confesso que gelei, ,
chorei e exclamei: de novo não. Lembrei do meu pai que faleceu tranquilamente, mas deixou
saudades. Me recordei de um sobrinho que teve um fim trágico, o qual prefiro não comentar.
Minha mente repetia: de novo não. Resolvi voltar porque doeu demais. Eu juro que vou me
cuidar. Assim como não quero sentir essa dor, não a desejo para ninguém. Então, cuidem-se!
Entendo que toda experiência deixa lições, e essa pandemia já me ensinou várias. Aprendi que
podemos traçar planos que podem não ser cumpridos. Que podemos estar com as chaves, mas pode ser que as portas não estejam abertas. Que quando viajamos para dentro de nós
encontramos sentimentos ignorados. Que vivemos correndo contra o tempo e atrás de
benefícios e esquecemos de tirar uns minutinhos para refletir sobre quem somos, onde e com
quem queremos estar. Mas bastou um brake para o verso do Vinicius ganhar um sentido
renovado: “mas tudo é nada…”