Nos idos de junho, participei de uma grande e pacífica manifestação no centro de Goiânia.
Fui mais por interesse sociológico, confesso, do que por engajamento. É que para os meus padrões de militância, herdados do século passado,  a pauta era tão vaga e diversa que eu não sabia ao certo em quê me engajar.

No ato não havia uma liderança, mas várias, tão difusas quanto desarticuladas. Exemplo disso foi a literal cisão do movimento em plena Praça Cívica, quando um carro de som conduziu seus seguidores em direção ao Paço Municipal, ao passo que outro tomou o rumo da Praça Universitária, seguido por mim e por algumas centenas de nostálgicos.
Fora da arena das manifestações, para onde voltei depois de tão desalentadora dispersão, o clima era de confusão e perplexidade.

Para os simpatizantes dos governos do PT, eram incompreensíveis as
revoltas populares de junho, após tantas estatísticas revelarem a melhoria da qualidade de vida dos mais pobres.

Já para os detratores de Lula e Dilma, os idos de junho antecipavam um anseio de mudança que teria seu ápice na eleição presidencial de 2014.

Passado quase um ano e resguardadas as legítimas marcações de posição na arena de disputas, o mais provável é que ambos os lados estejam errados.

Ao que tudo indica, foi exatamente a melhoria da qualidade de vida da população mais pobre que elevou seu nível de exigência em relação à qualidade dos serviços públicos a ela oferecidos.

Há uma parcela de brasileiros que recentemente conquistou o acesso ao consumo e ao crédito, e que vem sendo cada vez mais assistida por programas sociais de acesso à moradia e à educação superior.

Essa parcela, chamada de “nova classe média” à falta de melhor nome, passa a não mais se ver compelida a aceitar passivamente o desmantelamento e a indigência de serviços públicos essenciais — como o sistema de transportes, por exemplo.

Por outro lado, o anseio de mudança dessa “nova classe média” não se reflete, até agora, em vontade de votar na oposição.

Esse parece ser um anseio da classe média tradicional, que embora tenha apoiado as manifestações, em maior ou menor grau,  desde junho passado, não vem conseguindo dirigi-las, nem na forma nem no conteúdo.

Mais à esquerda, o Movimento Passe Livre e seus congêneres ficaram para trás, perdendo espaço para a primitiva violência dos black blocs. Entidades tradicionais de trabalhadores e estudantes, como Cut e UNE, cujas bandeiras sempre foram relativamente próximas das dos novos manifestantes, ou foram alijadas do processo ou se mantiveram cativas de suas agendas invisíveis.

Mais à direita, a agenda negativa de enfraquecimento do governo, que teve seu auge no julgamento do mensalão do PT e na prisão dos condenados, não logrou conquistar os corações das massas em marcha.

Assim é que as manifestações derivadas dos idos de junho seguem isoladas de todas as correntes do espectro político, sem conseguir engendrar, até aqui, uma força minimamente apta à articulação e à negociação.

Logo na origem, essas manifestações descredenciaram os partidos políticos – por si mesmos já tão descredenciados – como instrumentos de mediação de suas reivindicações.

A corriqueira e desmedida repressão policial, em vez de atingir o efeito esperado pela predominante porção imbecilizada do Estado, produziu efeito contrário.

Cada vez mais gente saiu às ruas para pedir passe livre, hostilizar os partidos ou maldizer a copa do mundo, para nada disso ou seu contrário.

Em meio a palavras sem ordem e brados sem foco, apenas um bordão extraía o coro daquelas vozes tão dissonantes: “sem violência”.

Paradoxalmente, quanto mais se distancia aquele conturbado junho de 2013, tanto mais a violência deslegitima as manifestações proliferadas a partir dele.

A violência legítima – ou legitimada por importantes setores da sociedade – já foi utilizada por não poucos movimentos sociais no Brasil e mundo afora.

Não é outra a origem da presidente da república e do senador tucano Aloysio Nunes ferreira (para citarmos personas políticas hoje em campos opostos), que não a luta armada contra a ditadura civil-militar de 1964-1985.

Mas a violência como instrumento político (vide black blocs), com tantos outros à mão mesmo em nossa frágil democracia, é repulsiva a diferentes setores da sociedade, dos mais conservadores aos mais progressistas.

Não menos repugnante é a violência gratuita, ou mesmo aquela em reação, ou em antecipação, à usual truculência da polícia em manifestações.

Esse expediente, aliás, tem sido bem mais frequente do que a ação dos midiáticos black blocs.

Um mau exemplo são os recentes quebra-quebras de ônibus em Goiânia, nas manifestações contra o deplorável transporte coletivo da cidade.

Esse tipo de violência, que vai ganhando ares de efeito colateral de qualquer manifestação legítima, é resultado direto do ódio à política deflagrado nos idos de junho.

Infelizmente, o que se vê de lá para cá em manifestações de todo gênero é o desprezo da política como único instrumento civilizado de mediação de conflitos sociais.

Por piores que sejam a política e seus atores – e não custa lembrar que o Brasil está melhor do que já esteve neste quesito –, não há outro modo de lidar com os problemas coletivos. Fora a política, alguém já disse, é a guerra.

Sem se submeter ao necessário e complicado jogo de forças da política, as manifestações perigam terminar, cada vez mais, em confusão e barbárie. E perigam terminar, de uma vez e por muito tempo, o vacilante pacto entre sociedade e civilização.