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DVD

[caption id="attachment_67576" align="alignnone" width="620"]Reprodução/Tumblr Reprodução/Tumblr[/caption] Paulo Lima Especial Jornal Opção Tudo o que eu sei aprendi da minha mãe, sempre presente, e com uma ajuda extra do meu pai, um tanto ausente. Ela me acompanhou nos primeiros passos, me ensinou a brincar sozinho e com os primos e coleguinhas, me levou para a escola, tomou as tarefas, viu meu primeiro gol marcado pelo time do bairro. Antes disso, passou noites em claro me dando de mamar, me fazendo arrotar, ninando para que eu dormisse aquele soninho gostoso. Infelizmente, meu pai não participou de nada disso... Ele sempre foi muito objetivo comigo, como se estivesse o tempo todo correndo contra o tempo. Os assuntos eram os mais variados: estudos, amizade, sexo, respeito, mamãe, família, drogas, honra, natureza, Deus... Tratava tudo num tom de aconselhamento, mas eu entendia e respeitava o ponto de vista dele. Era a forma que ele encontrou de me preparar para a vida, mesmo na sua ausência forçada. Nunca conversamos sobre um tema que eu mesmo tivesse escolhido. Era sempre ele quem iniciava e terminava o assunto. Preparava o discurso e imprimia o ritmo. Eu não passava de um ouvinte atento. Não totalmente passivo, mas um ouvinte. Nunca senti o calor de sua mão, pois nunca passeamos de braços dados pelo parque. Não tive o prazer de apresentá-lo aos meus colegas de escola. Ele jamais me carregou nos braços para a cama, como muitos pais fazem. Apesar de tudo, tenho certeza de que nenhum pai amou tanto um filho como ele. Só o conheci em DVD. Cresci assistindo as mensagens que ele pacientemente gravou em vídeo, antes que o câncer o levasse, um mês antes de eu nascer. Paulo Lima é redator publicitário desde 1988, caminhando para 26 anos de atividades ininterruptas. Contista por natureza, vocação ou sina, escreve desde mini contos a contos maiores. Nesse balaio, inclui algumas crônicas.

Voltando à Adolescência

[caption id="attachment_65258" align="alignnone" width="620"]Reprodução/Tumblr Reprodução/Tumblr[/caption] Saulo Montefusco No descanso do sol, um manto de fundo negro com pontos reluzentes invade a cena. Minha mente nada vazia, embora sem expectativas quanto ao ventilar de pensamentos e lembranças, recolhi-me ao quarto sem pressa e em movimentos lentos, coloquei a roupa peculiar de quem sente vontade de dormir. Deitei-me no leito de descanso, repousando a cabeça ao travesseiro. Sobreveio um sentimento antagônico que, embora perturbador, confuso e angustiante, parecia ser a melhor e mais profunda sensação de prazer que um dia eu já havia experimentado. Sem vontade ou intenção de dormir, rolava de um lado ao outro com a impaciência flagrante de quem não vê lugar no mundo que pudesse trazer uma sensação de refrigério. As horas noturnas exauriam-se sem, contudo, minimizar aquele processo mental gerador de somatizadas sensibilidades, que trazidas a termo, eram: os meus lábios adormecidos, ao mesmo tempo em que o calafrio na barriga coincidia com aqueles pensamentos e lembranças; também meus pés gelados como expostos à brisa fria de uma madrugada ao relento. Experiência sem igual já vivida! Voltei meu olhar para entre as escâncaras da janela. Vislumbrei-me admirado, com a cabeça inclinada ao cume, e com os olhos fitos àquelas cintilantes ali presentes. Percebi num dado instante que meus olhos não se desviavam de uma estrela, apenas uma estrela. Aquele momento tornou-se mágico, inovando e reciclando pensamentos e sentimentos que somente poderiam ser de felicidade. Diante de tamanha emoção, flagrei-me traído pelos olhos, que, fitos àquela que se sobressaía em meio às outras, fez-se transbordante, molhando meu travesseiro. E quanto mais em seu cintilar piscava para mim, mais lágrimas corriam, por ser correspondido ao flerte. Àquelas alturas, já era patente o sono que se aproximara manso, mas que ainda assim eu me fazia relutante no intuito de eternizar o que aqui está referenciado. Muito embora eu tenha me deixado levar, impotente à força sonífera, flertávamos nos embalos de um sonho, que mais fez tornar definitiva a paixão que me deu a certeza de sua qualidade especial de ser. Somente a magia daquela estrela poderia fazer eu sentir tudo isso, e essa estrela, bem..., você sabe, é você! Saulo Montefusco é poeta, cronista e romancista; membro da União Brasileira dos Escritores (UBE-GO).

Histórias Curtas

[caption id="attachment_64727" align="alignnone" width="620"]Reprodução/Tumblr Reprodução/Tumblr[/caption] Raí Almeida Especial para o Jornal Opção Eu gosto de histórias curtas. Estas pequenas narrativas que costuram retalhos de vida nas frestas das horas; elas são como pequenas epifanias, sem relação obrigatória ao livro de Caio Fernando Abreu, que nos envolvem com tamanha força que, se durassem mais tempo que o necessário, nos sufocariam. O mais fascinante, no entanto, é que elas são, acima de tudo, discretas. Costumam passar despercebidas. A gente se acostuma a ignorá-las e, por mais que estejam bem na nossa frente, não as enxergamos. É como um piscar dos olhos; você pisca e nem nota que aconteceu. Vivemos com medo do relógio. Tememos que o tempo corra mais depressa do que possamos acompanhar e, na correria, tropeçamos em um cotidiano repetitivo e cada vez mais desgastante que nos engessa. Tornamo-nos insensíveis às peculiaridades que estão ao nosso redor. Outro dia, fui ao barbeiro, o mesmo que vou desde que chovia em Goiânia, e o encontrei imensamente infeliz. Era quase fim do experiente de uma sexta-feira particularmente quente; uma fila de clientes aguardava atendimento e sua mulher havia pedido que ele fosse buscar o filho na escola que, por sinal, fica no mesmo quarteirão da barbearia. Quando o sino bradou, lá foi o barbeiro contrariado por deixar os clientes esperando. De volta à barbearia, o menino disse ao pai que havia descoberto o que queria ser quando crescesse. Ao que o barbeiro perguntou com um desinteresse visível, o garoto respondeu que queria ser pintor de céu. O barbeiro ocupado, bailando tesouras sobre os cabelos ralos de um homem de meia idade, não deu muita atenção. Eu, por outro lado, fiquei curioso com o desejo profissional do menino. Não pude evitar, perguntei-lhe por qual motivo ele queria pintar o céu. Respondeu despreocupadamente que o desagradava ver o céu ser, quase sempre, azul ou preto. Isso faz com que as pessoas pensem que só têm duas opções na vida. Que coisa extraordinária a se pensar, perguntei-me como não me ocorrera antes. Fui embora. No entanto, antes de chegar em casa, um desconhecido me cumprimentou. Era um senhor que estava agarrado às grades do portão, e mesmo sem nunca tê-lo visto, cumprimentei de volta, simpaticamente. Curiosamente, ele não ficou satisfeito. Quis saber de mim, como eu estava; sem saber bem o que dizer, disse que estava bem. É o que todos dizem, respondeu ele amarrando a cara numa expressão de avô quando repreende o neto. Disse-me que houve uma época em que as pessoas conversavam, importavam-se com o que o outro tinha a dizer. Mesmo que fosse um completo estranho. No que eu o ouvia, uma menina de uns treze anos escancarou a porta da frente da casa, caminhou em direção do portão como quem vai à guerra. Essa é minha neta, apresentou ele, ela veio me proibir de falar com você. Não leve para o lado pessoal, ela faz isso o tempo todo. A menina sorriu para mim mais como uma obrigação do que por gentileza. Enquanto ela arrastava o avô pelo braço para dentro de casa, senti que também era puxado para fora de uma realidade paralela à nossa. Fui embora. Às vezes, essas histórias podem ser mudas, mas cheias de significados, como o sorriso de um estranho na rua; vez ou outra, são barulhentas, como quando alguém canta seu amor debaixo do chuveiro. Outras vezes, são fortes como os abraços que afastam a saudade ou singelas como receber flores. Seja como for, são inúmeras. Cada uma com beleza e identidade única e, acima de tudo, são completamente desejosas de serem percebidas.

Da feijoada ao chá de Dona Zica

[caption id="attachment_64541" align="alignnone" width="620"]Cartola e a mulher, Dona Zica | Foto: Reprodução Cartola e a mulher, Dona Zica | Foto: Reprodução[/caption] Francisco Kleber Paes Landim Especial para o Jornal Opção O saudoso e excelente compositor e cantor carioca Ciro Monteiro possuía o apelido de formigão. Tal apelido foi cunhado em razão do insaciável apetite que possuía. Ciro possuía a conhecida fome pantagruélica; comia muito mesmo, era um guloso. Aos sábados, era comum a Dona Zica, então esposa do grande compositor Cartola, preparar aquela feijoada. E a feijoada dela era um banquete dos deuses, simplesmente arrebatadora, deliciosa. Ciro era o primeiro a aportar na casa de Cartola e Dona Zica. Chegava bem cedinho, ficava bebericando e só saia por volta das 15 horas. [caption id="attachment_64542" align="alignright" width="300"]Ciro Monteiro, o formigão | Foto: Reprodução Ciro Monteiro, o formigão | Foto: Reprodução[/caption] Em um desses almoços, para variar, comeu feito um glutão. Ao terminar o almoço, foi diretamente ao banheiro.Pouco depois, atravessou a sala e começou a suar frio. Ficou morrendo de medo de ser a morte. Encostou-se na parede e ali ficou se lamentando do mal súbito. Um menino que se encontrava no almoço percebeu a situação e foi correndo avisar pra Dona Zica. “Dona Zica, o formigão tá passando mal lá na sala. Tá friozim e suando.” Imediatamente, Dona Zica, preocupadíssima com a situação, correu ao quintal, onde plantava ervas e colheu algumas para fazer um chá digestivo para o formigão. Em poucos minutos, estava feito o chá e Dona Zica se dirigiu à sala com a xícara em mãos e, logo, ofereceu ao Ciro: “Tome que vais ficar bonzinho com esse chá”. Sem titubear, Ciro emendou de cara: “Ué, Zica, só o chá mesmo? Não tem nenhuma bolachinha pra acompanhar?”. Ciro Monteiro - Falsa baiana

Pra não dar bandeira

  [caption id="attachment_62521" align="alignnone" width="620"]Foto: Reprodução/Tumblr Foto: Reprodução/Tumblr[/caption] Jéssica Alencar Hoje eu acordei com preguiça de não ser eu. Não, você não pode contar suas vitórias, tem muita inveja por aí. Quem dirá seus planos; é “batata”, eles não dão certo se você espalhar aos quatro ventos. Olha, não saia sorrindo pela rua afora é até perigoso. Seja um cliente impaciente para ser bem atendido. Coloque seus fones de ouvido e não converse com estranhos. Não aceite desaforos e jamais se meta em problemas alheios. Não, você não pode ligar, dizer que gosta, muito menos dar um “sim” logo de cara. Querida, tem que fazer joguinhos e, como uma boa mulher, esperar ser escolhida. Meu Deus, tudo menos dizer que ama. Afinal, as pessoas são mesmo malucas e gostam de quem não gostam delas e vice-versa. Se você trata bem demais, não espere ser bem tratado. Para viver neste mundo é simples, é só seguir esta ordem invertida de ser feliz. Esta lei de pensar só em si, viver desconfiado, metendo o riso pra dentro da alma pra não dar bandeira, levando a sério estas tantas coisas que esperam de você. Ora, é bem mais simples viver sem viver, não é? Difícil mesmo é assumir os riscos, sentir afeto. Difícil mesmo é sair pela rua vestido só de você, amar sem ser correspondido e deixar também que te amem. Difícil é reconhecer seus erros e se fazer forte em cada fraqueza. Difícil é fazer dos seus medos, pontes. Do seu “achismo”, humildade. Das suas derrotas, perseverança. Mas, veja bem, de todas as dificuldades a maior é não ser você. Jéssica Alencar é jornalista, social media e metida à escritora. Quer viajar o mundo todo e não vive sem chocolate.

Hoje, tudo apagado. Pegou fogo o Museu

[gallery size="full" type="slideshow" ids="55049,55050,55051,55048"] Yago Rodrigues Alvim Da tevê ligada, a fumaça. A moça disse que nem a Estação da Luz está aberta. Fecharam tudo, de certo até por luto. As madeiras do Museu da Língua Portuguesa se incendiaram. Lá dentro, as poesias de tinta nas paredes escorrem devido às chamas. Lembro-me, de uma memória não tão amarela assim, da primeira vez e ainda única que o visitei. Já com alguns bons anos nas costas, fui menino tardio. Conheci São Paulo já com 21. O que a mim mais encantou foram os tais encontros. Do que fala Caetano, nem era só a Ipiranga e a Avenida São João. Séculos atrás se abraçam às mais novas referências. O caos mistura tudo ali. Dá medo e foi o que senti. A passagem era única, em casa de amiga eu ficaria. Ela, que tinha a labuta de ir ao trabalho, comigo, só à noite poderia ficar. Guardei no bolso o sentimento bastardo, pois o vislumbre da descoberta era maior. Perambulei as ruas e foi o bendito o primeiro que visitei. Nítido, passa pelos olhos o momento que desci da condução e caminhei, com a mochila carteiro abraçada ao corpo, à Pinacoteca, lugar que visitaria na saída do Museu. Já na entrada, todo o embaraço seguia. Ainda assim, a câmera continuava a mão. Dos registros, pastas e pastas. Precisava que aquilo perdurasse, fosse como fosse. No ínterim, vez e outra me esbabacava pelo que só o tempo do olho apreendia. Ficou a lembrança de uma sala escura, de vozes que ainda escuto declarando-se sobre a vida — o que nada mais é a Literatura dos homens. Constelavam estrelas, pontinhos de luz versados. Hoje, tudo apagado. Pegou fogo o Museu. Sei como não, mas parei de escutar. A moça só gesticula em meio a fumaça. Foi a única, primeira-última vez? E as chamas continuam consumindo páginas e páginas de séculos atrás. Patrimônio incendiado. Cecília, acuda aos anjos. Pegou fogo o Museu. Brinquedos Incendiados * Uma noite houve um incêndio num bazar. E no fogo total desapareceram consumidos os seus brinquedos. Nós, crianças, conhecíamos aqueles brinquedos um por um, de tanto mirá-los nos mostruários — uns , pendentes de longos barbantes; outros, apenas entrevistos em suas caixas. Ah! Maravilhosas bonecas louras, de chapéus de seda! Pianos cujos sons cheiravam a metal e verniz! Carneirinhos lanudos, de guizo ao pescoço! Piões zumbidores! — e uns bondes com algumas letras escritas ao contrário, coisa que muito nos seduzia — filhotes que éramos, então, de M. Jordain, fazendo a nossa poesia concreta antes do tempo. Às vezes, num aniversário, ou pelo Natal, conseguíamos receber de presente alguns bonequinhos de celulóide, modesto cavalinhos de lata, bolas de gude, barquinhos sem possibilidade de navegação... – pois aquelas admiráveis bonecas de seda e filó, aqueles batalhões completos de soldados de chumbo, aquelas casas de madeira com portas e janelas, isso não chegávamos a imaginar sequer para onde iria. Amávamos os brinquedos sem esperança nem inveja, sabendo que jamais chegariam às nossas mãos, possuindo-os apenas em sonho, como se para isso, apenas, tivessem sido feitos. Assim, o bando que passava, de casa para a escola e da escola para casa, parava longo tempo a contemplar aqueles brinquedos e lia aqueles nítidos preços, com seus cifrões e zeros, sem muita noção do valor – porque nós, crianças, de bolsos vazios, como namorados antigos, éramos só renúncia e amor. Bastava-nos levar na memória aquelas imagens e deixar cravadas nelas, como setas, os nossos olhos. Ora, uma noite, correu a notícia de que o bazar incendiara. E foi uma espécie de festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas, fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros d’água. A elas não interessavam nada peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e palhaços, fechados, sufocados em suas grandes caixas. Brinquedos que jamais teriam possuído, sonhos apenas da infância, amor platônico. O incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um fumoso galpão de cinzas. Felizmente, ninguém tinha morrido – diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? , pensavam as crianças. Tinha morrido o mundo e, dentro dele, os olhos amorosos das crianças, ali deixados. E começávamos a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras idades. De outros brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos sem socorro, nós brinquedos que somos, talvez de anjos distantes! * Conto de Cecília Meireles.

Cena no Jardim Zoológico

[caption id="attachment_44564" align="alignleft" width="300"]Lucas Ruiz "Irina", do designer e ilustrador Lucas Ruiz[/caption] Luana Borges Especial para o Jornal Opção Cheguei bem perto da zebra e a olhei. Como seriam seus olhos por entre o riscado do corpo? Os olhos eram uma pergunta em meio ao preto e branco e branco e preto do pelo da pele. Eram duas poças d'água no meio do caminho riscado. Se você andasse pelo corpo da zebra, ia tonteando entre um caminho e outro, entre uma listra e outra, ia se riscando de preto e branco até que chegasse a elas: às poças. Irremediavelmente, o espelho d'água faz parar o passo, faz olhar. Ninguém sai incólume ou sem se molhar, sem se mirar. Os olhos eram a pergunta. Uma reflexão em meio ao amontoado de listras e traços. Os olhos eram uma tristeza. Eram uma dúvida. Uma dádiva. Eram úmidos e em torno tinha, exatamente, poeira de terra seca e vermelha no corpo da zebra. Os olhos empoeirados nos cílios e nas margens – dentro líquidos – eram lembranças da passada savana. Os olhos tinham uma remela que era visgo puro de vida. Os olhos eram a fala. Eram a linguagem da zebra. Os olhos eram “A Zebra”. Olhei-os e me parei toda no caminho. Segui sem respostas, perdendo os traços demarcados, segui. Tendo vivido. Tonta. Apressei o passo e comprei duas pipocas. Uma doce, outra salgada. No jardim zoológico. Com esforço tremendo para esquecer, nada adiantava!, ainda me brotavam perguntas depois de ter mirado às poças: eram dóceis, mas choravam? ou gritavam entre as grades em preto e branco e segredavam doçura? Pus na boca uma de doce, outra de sal. Mastiguei com caninos raivosos, apressados. Milhinho duro, maldito! Tentei esquecer e reestabelecer minha antiga ordem. Luana Borges é jornalista e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás.

O Admirador Secreto

[caption id="attachment_40577" align="alignnone" width="620"]O conto "O Admirador Secreto", de Silvano Filho, integra o projeto 12 Contos, que você pode ler aqui. O conto "O Admirador Secreto", de Silvano Filho, integra o projeto 12 Contos, que você pode ler clicando aqui.[/caption] Silvano Filho Quando surpreendeu o neto, de 15 anos, concentrado espiando pela janela do quarto com um binóculo, Seu Arlindo, que passava uma temporada na casa de sua filha para distrair-se da morte de sua esposa, soube que o neto mentiu quando falou que espiava os pássaros. Augusto ainda segurou um livro para disfarçar o volume na frente do calção e, envergonhado, desconversou. Disse que precisava ler o tal livro para uma atividade do colégio. Ao ver o neto embaraçado, Seu Arlindo, que já foi adolescente, mesmo numa outra época, sabe que ele mentiu para esconder o que fazia. Segurar algo na frente do calção é o mais comum dos truques, usado desde os tempos mais remotos para esconder uma ereção. O susto que Augusto tomou ao ser surpreendido confirma sua suspeita. Aos 76 anos, Seu Arlindo, cercado de gente pelo menos trinta anos mais jovem, não é a primeira opção de conversa de ninguém. Pelo cheiro de sopa, sabe que a filha está ocupada com o jantar. Seu genro está na fábrica, sua neta, que estuda à tarde, está na escola e o neto vive trancado no quarto. Por não poder mais trabalhar ou ajudar nas atividades domésticas e nem sair para passear, pois não tem quem o leve, a mente de Seu Arlindo se apega ao mais leve sinal de uma ocupação. Depois do acontecido, ele toma por tarefa sua descobrir o que o neto espiava pelo binóculo. Imagina uma mulher trocando de roupa ou alguma menina tomando banho, mas não querendo rejeitar nenhuma hipótese, poderia não ser menina nem mulher o que Augusto espiava, mas sim alguém do seu próprio gênero. Decidiu decifrar o enigma não só para saber se o neto espia garotas ou garotos, mas para sair da ociosidade de todos os dias e ainda esquecer um pouco sua recente viuvez. Preocupado em investigar secretamente, Seu Arlindo comeu pouco, dormiu menos ainda e levantou-se na manhã seguinte determinado. Na sala, alheio à programação da televisão, ele planeja o cumprimento da tarefa que assumiu no dia anterior. Não anda de um lado para outro, pois lhe faltam forças nas pernas e aprendeu que nada do que faça, a não ser a tarefa desejada, vai acalmá-lo. Espera ficar sozinho e isso não é fácil de acontecer naquela casa. No fim daquela manhã, sua filha e sua neta descem para comprar algo para o almoço. Entende que o destino é seu aliado. Por garantia, espera para que ninguém volte do meio do caminho por ter esquecido algo importante e vai para o quarto do neto. Entra no templo sagrado de um adolescente, que sem vigias ou armadilhas, deixa os tesouros e segredos vulneráveis. Sem afastar toda a cortina encosta o binóculo nas lentes dos óculos de grau, pois sem eles, ainda que com o binóculo, não distinguiria as formas lá fora. De onde está, no primeiro andar do prédio, a visão mais nítida é a de duas janelas da casa em frente. Uma tinha a cortina fechada e a outra, escancarada, foi a escolhida para tentar enxergar o seu interior. Após pouco esperar, vê entrar uma moça no cômodo espiado. Enrolada na toalha, ela penteia o cabelo molhado de frente para o espelho e de costas para a janela, mas quando puxa a toalha, ele abaixa o binóculo. É certo invadir a privacidade de alguém dessa maneira? É uma traição? Uma ingratidão de sua parte interessar-se por outra mulher, quando a sua ainda nem esfriou na sepultura? Sentir-se-ia ela insultada por ele desejar justo uma moça? Pois se quando estava viva não poderia competir com alguém tão jovem, podia menos agora depois de morta. Mas esses pensamentos não tiveram tempo de se demorar. O sangue esquentou e seu instinto masculino, que julgava para sempre adormecido, dominou-lhe. Lembrar-se-ia de sua esposa com muito amor enquanto vivesse, a saudade apertava-lhe o peito sempre que respirava, mas a morte os separou e estava desobrigado a ser fiel a uma defunta. E se é honesto invadir a privacidade da moça, estão aí as cortinas e porque ela não as fecha? Há sempre o risco de ter, como agora, alguém olhando. E resolvidas as questões que lhe pesavam na consciência, voltou a espiar. A toalha estava sobre a cama. Seu Arlindo e a moça observam um corpo nu, ele o dela e ela o dela próprio, ele pelo binóculo e ela através do espelho. De formas arredondadas, agradam-lhe as nádegas macias, a meio caminho entre as coxas e a cintura fina vista até a altura onde os cabelos cobrem o resto do tronco. A moça passa um creme no corpo que, outrora de menina, já se transformou em corpo de mulher. E que mulher. Tamanho era o envolvimento do velho com o que via que acredita sentir o cheiro do hidratante sobre a pele limpa. Ela suspende os cabelos no alto da cabeça, ele vê os ombros nus e, sob a axila, o perfil de um dos seios. Sente seu sangue circular por canais que há muito tempo não circulava. Precisa de um livro caso alguém chegue de repente, igual ao seu neto no dia anterior. Ela vira de costas para o espelho e fica de frente para a janela. Revela seios firmes e mamilos como dois botões de rosa. O velho se lembra do toque suave, de pele de pêssegos, dos seios de uma moça. Ávido, desce o olhar e para entre as curvas do quadril dela, fitando sua bela flor desabrochada, como costuma chamar. Uma rosa livre de espinhos; raspados estão todos os seus pelos. Feliz por não ser cardiopata, o coração pulsa mais forte na garganta ao ver o que há tempos não via: as vergonhas de uma moça, que sem vergonha nenhuma se mostra, sem saber que o faz, a um espectador distante. Será que ela não sabe? Ele segura e aperta o que lhe cresce entre as pernas, sente um vigor já há muito tempo esquecido. Querendo sentir, vezes sem fim, o que sente agora, soube, nesse instante, o porquê de muitos velhotes perderem a cabeça quando tem na cama uma moça, sem importar-se, muitas das vezes, se as juras de amor são reais ou se são pelos reais da sua carteira. O interfone toca. Sua neta, por brincadeira infantil, sempre que chega à portaria, antes de entrar no elevador, dá um toque para avisar que está subindo. A moça ainda nem as roupas de baixo pusera, mas Seu Arlindo, temendo ser pego em flagrante, larga o binóculo e sai do quarto. A labirintite e a lentidão das pernas, o impossibilitam de correr, mas precisa chegar à sala antes delas. Um velocista corre, na sua cabeça, como se faltassem poucos metros para cruzar a linha de chegada, mas fisicamente, um corpo senil se esforça para percorrer a desprezível distância entre o quarto e a sala. No meio do caminho sem ter sequer um livro nas mãos para disfarçar seu estado, ouve a chave girar na fechadura. Se correr cai, se não correr não chega. A porta se abre, elas entram. Não tem ninguém na sala e não encontram o velho em lugar nenhum. Só quando o chamam é que Seu Arlindo responde do banheiro do corredor, onde se trancou como última alternativa de esconder seu estado e se recompor. Passou o resto do dia sem companhia, como todos os outros dias desde que viera visitar a filha. Não perdeu tempo fantasiando um romance, conformado estava de que tudo não passaria de amor platônico. E se algum dia tivesse, talvez, uma moça em sua cama, não seria aquela. Sente-se profundamente grato à moça por fazê-lo, de propósito ou não, sentir-se vivo, deixando de lado, naquele momento, a sombra do luto e o fantasma da morte aproximada e também agradece a qualquer ser superior por ter permitido só a essa altura da vida, ele ter visto aquela moça. Não a viu como muitos adolescentes a veriam, que com os hormônios em ebulição não enxergariam nada além da figura nua para satisfazer suas fugazes necessidades egoístas. Seu Arlindo, sem a forte influência dos hormônios, deleitou-se em cada pedaço do corpo que viu como quem lê uma boa poesia, apreciando a beleza das formas, a suavidade das rimas e a elevação da alma. Contam-se numa mão quantas vezes reviu a moça que não estava nua todas elas. Dias depois, de manhã cedinho, horas antes de voltar para casa, Seu Arlindo despista a todos, pede segredo ao porteiro e atravessa a rua com cuidado. Joga, pelas aberturas do portão de ferro, um pequeno bilhete no jardim da casa em frente ao prédio. E volta antes que acordem e sintam sua falta. Mais tarde, nesse mesmo dia, a moça, aquela da janela, encontra o bilhete em seu jardim. Com letras trêmulas de uma coordenação motora de quem está perdendo a firmeza das mãos, no bilhete estava escrito: “Obrigado por me fazer sentir vivo outra vez; e no final, de modo piegas e meio clichê, no sentido mais literal da expressão, assinou: do seu admirador secreto”. Silvano Filho é escritor e designer gráfico. Pernambucano do interior. Casado com a mulher da sua vida. Escreve sua literatura com a mão esquerda. Fanpage: facebook.com/silvanobsfilho

Desabafo de segunda-feira

[caption id="attachment_30448" align="alignright" width="620"]Reprodução/Beyoncé Reprodução/Beyoncé[/caption] Alexandre Parrode Sabe aquelas coisas das comédias românticas norte-americanas melosas e que cheiram pipoca encaramelada de anilina rosa, nas quais dois estranhos se encontram, se apaixonam à primeira vista e vivem um fim de semana de amor inesquecível, num parque de diversões no cair da noite? Pois é, baby, não acontecem na vida real. Este é um relato do que aconteceu com um conhecido meu — amigo próximo, confidente de barzinho. Mas também é uma história que já aconteceu com uma amiga, com o amigo de uma amiga, com a prima da minha colega de trabalho e com o padeiro da prima da minha colega de trabalho e várias vezes com a filha dele, no auge de seus 30 anos. Já aconteceu com a pequenina torcida do flamengo; talvez e inevitavelmente, pode já ter acontecido com você. O meu amigo, todo iludido, viajou mais de mil quilômetros para passar um fim de semana com um affair on-line. Planejou tudo, desde o corte de cabelo ao apartamento que ficaria. Contou os dias para o tal encontro. A promessa era de romance e, claro, certas safadezas carinhosas, entre lençóis. Lá foi ele, embriagado de expectativas e preso à segurança do combinado. Falsa, por sinal. Já no aeroporto, foi recebido com certa frieza. Em troca de um abraço carinhoso e talvez até um beijinho, ganhou apenas um “oi” e aquele rápido encontro de corpos constrangidos, onde sequer o aperto de mão é decente — imagine lá o abraço. “É o jeito dele. É a cultura daqui que é diferente da minha”, pensou meu tão conhecido. O caso é que, quando queremos que as coisas aconteçam do nosso jeito, num passo a passo, achando que controlamos o destino só com nossa imaginação, tendemos a distorcer a tal imprevisibilidade da realidade e fingir que não estamos vendo o que, de fato, está acontecendo. Acredito que seja uma maneira do cérebro acalentar o peito, quando este está prestes a ser aberto, sem anestesia alguma. Aberto na tora. Foram a uma balada da cidade. Antes fosse que estivessem de mãos dadas. Mas nada disso. Nada de abraços ou beijos apaixonados. Aquele abismo desconfortável entre os dois continuava a incomodar meu conhecido, feito sapato apertado que encharca. Até chegou a perguntar ao rapaz se ele não havia se interessado por seus olhos azedos, imaginando se o problema fosse esse ou o tom da voz ou, ainda, se o maldito cabelereiro tinha errado no corte de cabelo e fosse esse o motivo daquele silêncio todo que sai da boca dele. Antes que saísse tais perguntas, indagou se ele queria que fossem apenas “amigos” — como se isso, naquele ponto, fosse possível.  Resposta negativa seguida de um beijinho mixuruca, como se o rapaz estivesse com medo de ser visto por alguém ali na festa. Estava mesmo: “Certeza que meu ex está aqui”, disse ele ao meu conhecido. Ora, que tipo de pessoa fala do ex-namorado no primeiro encontro e, pior, demonstrando preocupação? — transtornei-me, quando meu amigo me contou. A esse ponto muita gente já deve estar se arrepiando aí na frente do computador, pensando “que cara babaca”. Bem babaca, é isso mesmo. A certa altura da noite, ele sentiu que o rapaz estava demorando demais para voltar com sua cerveja. Perambulou a pista de dança, cheia de luzes e pessoas vibrando, e não precisou muito para encontrá-lo... nos braços de outro cara. Ficou cego de raiva. Mas não raiva só do rapaz, que agora dava os tais beijos safados e carinhosos noutros lábios. Raiva de si mesmo. Quando se chora e o vermelho do nariz escorre não dá mais para ficar se fazendo de palhaço. Ao se deparar com tal cena, meu conhecido se deparou também com todas as certezas que ele tinha tido visto no silêncio do tal rapaz. Ainda assim, não queria aceitar, pois se negava a crer que tudo aquilo que ele havia planejado tinha ido por água abaixo. Pôs o circo abaixo. Gritou. Xingou. Esperneou. Sofreu. Chorou. Voltou para o apartamento com uma nova expectativa, tão conhecida, de que o rapaz viesse atrás, correndo, se desculpando, oferecendo-lhe o céu e a Terra e o diabo a quatro da Via Láctea inteira. Ou, quem sabe, com apenas um pouco de afeição, carinho e interesse debaixo do braço, em meio ao silêncio que ainda restava. Viesse atrás com o que ele havia ido buscar. Acordou com ressaca moral e com o rapaz dormindo ali do lado. Queria acreditar que ele não tinha ficado com outro na sua frente, sob a desculpa de que “o menino tinha ido à festa apenas para ficar com ele”. Parece piada, mas não é. Inclusive, o rapaz se disse “assustado” com a atitude de meu conhecido, porque achava que ele tinha embarcado no avião para “curtir” a cidade — e não para ficar de “casal”. Dizem que existem sempre duas verdades. A cama era de casal, mas a viagem não. As mensagens trocadas durante meses para combinar o encontro eram de casal, mas a viagem não. Daí, passaram aquele sábado como “amigos”. O rapaz, ainda ultra “assustado” com tudo, se manteve na mesma: distante. Deixou meu conhecido agonizar a frustração, sentir a dor da rejeição e consolou-lhe com sua simpatia — muy simpático! Ressentido e infeliz com o que havia se tornado seu fim de semana cinematográfico — que havia passado de “Diário de Uma Paixão” a “O Albergue” —, meu conhecido ainda tentou reverter a situação. Engoliu o orgulho, passou por cima de todo seu amor-próprio e, ainda, foi lá mendigar carinho. Conseguiu, então, a simpatia do rapaz ao dizer que tinha ido ali para ficar com ele, que lhe respondeu: “Então fique”. Ah! Se fosse tão fácil assim, não estariam naquela situação. Como diz a música “Um bom encontro é de dois”. E, claramente, meu conhecido era só “um” naquela empreitada. Ainda no sábado, que estava mais para uma terça-feira, foram novamente para uma balada. Exausto de se humilhar, ele acabou por se contentar com o álcool. Ah, ele se afogou naquele companheiro que, mais que teoricamente, não o abandonaria. Triste, caminhou para o hotel com o rapaz, acreditando que poderia dar certo. Voilá, outro ledo engano. Dormiu sozinho. Apesar de o rapaz estar lá, estirado ao seu lado. Não o procurou em sequer meio milésimo da noite. O deixou ali, como uma presa em teia de aranha. Imóvel, atordoada pelo veneno, sentindo a dor consumir-lhe as entranhas, mas consciente. Em vez de comer-lhe de uma vez, desimportando o peito aberto, o rapaz, como a aranha, o prendeu. E não o deixou ir até que tivesse sofrido toda a agonia. “Que babaca”, foi assim que reagi ao saber de cada detalhe história. Claro, óbvio que não consigo entender o que meu conhecido passou lá. É claro que não consigo, afinal essas dores do coração, como a morte, só quem experimenta, sabe. No entanto, perguntei-lhe o que o havia machucado mais e ele me respondeu de pronto: “A frustração. Mesmo arrasado, eu queria que ele me procurasse. Queria que ele me tomasse em seus braços e me beijasse com paixão. Mas me restou, apenas, compaixão”. No espelho, olhando para mim, meu conhecido refletiu mais um pouco e concluiu: “I’m a pretty fucking douchebag”. E já era segunda-feira.

Agosto

Marcela Haun Especial para o Jornal Opção [caption id="attachment_30342" align="alignnone" width="620"] Reprodução[/caption] O sol do inverno iluminava os vários tons de verde da praça. O vento gelado, que cortava os meus lábios, parecia querer retornar o meu corpo para a minha cama. Três ou quatro pessoas atravessavam as ruas, todas com direções e tempos diferentes. Sentei-me no banco de concreto. Sabia que eu estava ali mais cedo do que de costume, mas é que não existe coisa mais bonita do que apreciar o sumiço dos orvalhos ou o brilho do sol tremeluzindo através das folhas das altas árvores. Queria ter escrito sobre isso antes. Enquanto esperava a minha carona de todos os dias, observava a casa à minha frente: portão branco e paredes verdes, recém-pintadas, com um banquinho na entrada. E, nele, uma história da qual tive o prazer de acompanhar por muito tempo. Todos os dias, um senhor de bicicleta amarela chegava às sete da manhã e tocava a campainha. Ele sentava no banco, arrumava o cabelo com as mãos e tentava sentir o próprio hálito. Depois de alguns minutos, uma mulher ruiva abria a porta e sentava-se ao lado dele, dando-lhe um beijo que ela mesma interrompia. Talvez por preferir beijos que ficam a desejar, que deixam aquele gosto interminável na boca. Era sempre assim. Não im­portava se o sol nascia com gosto ou se os pingos grossos de uma chuva ameaçavam por entre nuvens carregadas. A bicicleta amarela sempre voltava a fazer as mesmas rotações. Às vezes o senhor carregava consigo uma flor recolhida no caminho ou a mulher saía da casa calçando um sapato às pressas. Eu sempre gostava de tentar adivinhar as conversas: astrologia, piadas, sacanagens e afins. Os gestos variavam: ora apontavam para cima, ora só entrelaçavam as mãos. E assim ficavam e iniciavam as manhãs de agosto com uma perfeita doçura. Mas o tempo nunca foi muito amigo. Os minutos deles pareciam passar exageradamente depressa, até dava para sentir pena disso. Não houve livro que conseguisse me fazer chamar mais atenção do que aquela paixão gastada no banquinho da casa. Simplório e sincero, que pode ter surgido de um amor antigo de colégio, ou de algum amigo em comum ou até mesmo de um esbarrão numa padaria qualquer. Destino. Mas é que hoje não houve beijo, não houve risada, não houve amor. O mesmo senhor, com a mesma bicicleta amarela, chegara no horário e local de sempre. Tocou a campainha com o mesmo dedo, sentou do lado direito do banco e esperou, passivamente, para ver os mesmos olhos que almejava por todos esses tempos. Dois, sete, quinze minutos. A cabeça baixa e a não insistência em fazer o som da campainha se alastrar pela casa verde diziam mais que mil palavras ou mil lágrimas. Ela não viria. E nem ele voltaria. Marcela Haun é jornalista e cronista

O pervertido

[caption id="attachment_27681" align="alignnone" width="620"]Foto: Reprodução Foto: Reprodução[/caption] Paulo Lima Tinha esse hábito estranho. Acho que nasci tarado. Desde menino, sempre fui louco por leituras e livros. Um degenerado do tipo incorrigível. Queria porque queria compartilhar meu desejo incontido. Tinha uma queda particular por adolescentes, masculinos ou femininos — que importa? — mas saía pegando o que aparecesse: adultos, idosos, negros, nisseis... Crianças não. Eram mais difíceis de aliciar, porque estavam sempre acompanhadas de pessoas puras, que reprovavam aquelas coisas abomináveis feitas de papel e tinta. Agia furtivamente assim: num dia qualquer, eu deixava um livro dentro de um ônibus, aleatoriamente, num assento vazio logo no início da viagem. Eu ia lá pra frente e ficava espiando, de rabo de olho, a reação de quem encontrava a preciosidade. Sim, eu era um voyeur... O cara — ou a moça, o velho, seja lá quem fosse —, quando ia se sentar levava um susto, olhava pros lados, pra trás e pra frente, procurando o dono que certamente o tinha esquecido ali, mas o ônibus quase vazio indicava que o possível dono já tinha descido. Pegava o presente, sem saber que era um presente, começava a folhear e o resto era com ele ou ela. Eu guardava como troféu, pelo crime cometido, a imagem do rosto iluminado daquela vítima indefesa. Lascivo, eu descia no ponto seguinte, com a sensação de dever cumprido, e entrava no próximo busão, para atacar de novo. Uma vez, quase me pegaram. Consegui disfarçar e esconder minha obscenidade. Saí de fininho. Aquilo se tornou um vício — ou seria um fetiche? — que durante anos eu alimentei compulsivamente. Eu sonhava com o resultado que nunca viria a conhecer. Aqueles seres teriam gostado de Machado de Assis, de Herman Hesse e Augusto dos Anjos, de Cecília Meirelles, Stanislaw Ponte Preta e Rachel de Queiroz? E suas vidas, teriam mudado depois que as toquei? Enfim, envelheci. Adquiri carro próprio e abandonei o povaréu à própria sorte, ciente de que um dia seria julgado e condenado por mais essa transgressão. Ainda sonho com o dia qualquer em que eu volte a entrar num ônibus qualquer, em busca da velha e prazerosa prática imoral, para não dizer imperdoável, de compartilhar minha loucura por livros e leituras. Paulo Lima é redator publicitário desde 1988, caminhando para 26 anos de atividades ininterruptas. Contista por natureza, vocação ou sina, escreve desde mini contos a contos maiores. Nesse balaio, inclui algumas crônicas.

Lembranças

Marcos Nunes Carreiro [caption id="attachment_26393" align="alignright" width="250"]ilu Ilustração: Kaito Campos[/caption] Em meio à competição de vozes, ela falava baixo, ali mesmo, sentada em um banquinho a poucos centímetros da moça, cujo único objetivo era coletar histórias de quem estivesse disposto a gastar um tempo em troca de um postal artesanal. Essa moça chegava cedo, montava sua banquinha e esperava o primeiro “contista” chegar. Naquele domingo, como se todos da cidade já tivessem passado por ali, ninguém havia parado para compartilhar uma boa história. Foi quando ela apareceu. Parou em frente à banca, levando nas mãos algumas sacolas com frutas. Observou a moça e, mesmo que os óculos já não acompanhassem mais sua visão, pôde notar a pequena aquarela em forma de datilógrafo que a moça levava tatuada sob o braço direito. Levantou os olhos e leu: “Compra-se histórias da cidade”. Sorriu e sentou-se defronte à moça, que, distraída, mal teve tempo de agarrar papel e lápis: — Sou nova aqui, sabe? Cheguei fugida da tristeza de minha cidade natal. Mas, desde que cheguei, observo a magia do lugar. Outro dia, por exemplo, parei em um banco da praça, que existe logo ali, e fiquei olhando as pessoas. Foi quando vi a mim mesma caminhando ao lado de um velho conhecido. Imagine a perplexidade! Como o “meu outro eu” não me viu, disparei atrás dela. Não andei mais que dois quarteirões, até que o casal entrou por um portão azul. A certa distância, lá fiquei. O que estava acontecendo? Passaram-se horas, até que, para piorar a situação, vi alguém de quem já havia me esquecido. Vestido de motorista, lá estava ele: meu pai. Saiu pelo portão ao lado do “meu outro eu”. Sorridentes. Precisei me sentar. Como não me viram, depois de alguns minutos, fui embora. Não pude falar com eles. No caminho de volta, peguei o celular e liguei para minha mãe, mas me esqueci que, desde aquele acidente de carro, ela já não atende ao telefone. Cheguei em casa, joguei as chaves perto do porta-retratos que tenho sobre o criado mudo do quarto, aquele que leva a foto da gente sorrindo, e fui para o banheiro. Deixei a água do chuveiro levar as minhas lembranças familiares. Abri os olhos a tempo de ver a última descendo pelo ralo e cheguei a uma conclusão: esta cidade é mágica. Parando o lápis no papel, a moça levantou os olhos para observar a outra. Não iria falar nada. Não podia. Esperou ver no olhar à sua frente a aflição comedida de quem já se acostumou à ideia de ter perdido a família em um acidente de carro e, devido à tristeza, ter-se mudado de cidade. Porém, encontrou aqueles olhos transparecendo um acalentado sorriso aquecido. Abriu a boca para falar, mas ela já se levantava para continuar seu caminho. — Espera. Não vai pegar um postal? — Não. Dê a quem mereça mais do que eu. — Espera. Levantou-se, foi ao seu encontro e sussurrou: A história é verdadeira? O mesmo sorriso acalentado nos olhos. Partiu.

Sobre as tapeçarias desfiadas e tudo que achei por aí ao procurar as Índias

Kaito Campos Especial para o Jornal Opção [caption id="attachment_25975" align="alignleft" width="300"]Ilustração: Kaito Campos Ilustração: Kaito Campos[/caption] Lá do diafragma vem uma dor. O diafragma empurra a dor pros olhos, com força de correnteza. O que sai é tristeza, uma tristeza líquida. Tristeza é coisa abstrata, foi minha professora de gramática quem disse. Eu digo que o choro faz com que ela vire de verdade, tangível, faz com que ela vire coisa enquanto eu reviro a mim mesmo. Vem lá da barriga, do diafragma, e sobe pro olho. E cai pensando que vai desaguar no mar ou pensando em fazer um mar, com esse orgulho todo. Mas cai, percorre a pele e evapora. Só fica o sal e infertiliza a pele da bochecha. Sou sal agora, um grão apenas, sozinho. Sou um deserto pequeno, com sol e camelos e beduínos andando de lá pra cá à procura de sombra. Minha sombra me persegue e eu a persigo de volta pra descansar os pés do calor. Resseco, racho ao meio e sangro devagar. Tudo metaforizado, um monte de coisa dolorida pra simbolizar um bolo de sentimento ruim que decora minha mente desde que você me deixou. Um novelo de sentimento ruim, repito de novo tudo o que merece ser repetido, eu me reforço na falta de força. Pego o novelo e faço crochê, tricoto um tapete frágil com minhas linhas coloridas. Cada cor é uma dor diferente, por isso o tapete é muito colorido. Vai de arco-íris pra além. Tem até uma cor que ninguém nunca nem chegou a ver, só eu e os pavões. Machuca tanto que dá pra pegar. Tem superfície e textura. Às vezes imita o sertão, com cacto, brita e espinho, fica molhado, mas depois seca, feito os rios que correm alguns meses, depois escorrem pro céu e somem, matam o gado, faz o sertanejo ter sede. Eu tenho sede e fome ao mesmo tempo. Sento numa mesa com um prato cheio de comida e um copo cheio de água, mas não como nem bebo porque não sei o que fazer primeiro. Fico uma hora assim, sem saber se pego o copo ou movimento o garfo. Mentira, a indecisão é um disfarce: passo uma hora inteira pensando nas coisas ruins de dentro do corpo, esses monstros do escuro de mim, das minhas cavernas. Não sou pessoa mais, nem sal, sou um lugar. Eu, onde nada acontece. Eu, onde nenhuma flor nasce, nenhum micróbio sobrevive. Eu, onde. O diafragma comprime, o estômago ronca, o prato de comida e o copo liberam cheiro, meu nariz come. A barriga, não, nem os dentes, que rangem. Sai um grito da caverna do estômago que é o grito do dragão escondido em mim. Assopro fogo. Cadê a água? Cadê? Minhas escamas, meus espinhos. Duas asas cortadas e um rabo, par de chifres, dragão sem paraíso, debaixo de cem camadas de roupa que tentam esconder. Deixar normal, deixar humano. Uma dor, ninguém quer que eu sinta, me falam pra ficar bem e melhorar. Enxugam a tristeza líquida, mas não tratam da se­cura de dentro. Uma alma que parece uva-passa. Pequena, um grão de sal. Cansado, repouso na janela, olho o ponto de fuga do muro plano: um buraquinho pequeno que só cabe uma formiga. Um muro que não me deixa ver o céu, cobre toda estrela, mas mostra a formiga. Ela anda atrás de carniça, penso em jogar minha alma pra ela, esse troço tão minúsculo mataria a fome da formiga. Ou mataria a formiga, se for veneno. Não faria falta pra mim, oco, um, só, salgado, tão coisa quanto a travessa com frutas de mentira que enfeita a mesa da sala. E isso os pintores chamam de natureza morta. Aqui, morro o meu amor e toda a ideia dele, desencanto. Depois desfaço o crochê, desfio o tapete inteiro, fico embaraçado nessa linha toda. Coado no filtro de barro, água pronta pra se beber. E me bebo, aperto as pálpebras com força, seguro o diafragma, não me deixo chorar. Se deixar vazar, vai sair na televisão que teve tsunami no meio do cerrado. Seguro firme nas minhas próprias mãos, eu amigo de mim, uma relação conflituosa. De repente, chega a cólica, lá do diafragma vem uma dor. Kaito Campos é estudante de jornalismo e ilustrador

Vida que vai, vida que chega

[caption id="attachment_24684" align="alignleft" width="620"]M. File M. File[/caption] Geraldo Lima Especial para o Jornal Opção

Este ano, a Dama da Foice não economizou na co­lheita e ceifou a vida de muita gente boa, — gen­te que faz falta ao nosso cenário cultural. Fez um estrago grande no time dos artistas, dos escritores e dos intelectuais, aqui e em terras estrangeiras. Vão dizer: isso é normal, que nesse time aí tem muita gente, e a morte não descansa nunca, ceifando vidas a todo instante, sejam elas famosas ou não.

No time dos escritores, por exemplo, ela levou, sem dó nem piedade, três grandes da nossa literatura: João Ubaldo Ribeiro, Ariano Suassuna e Rubem Alves. João Ubaldo escreveu um dos livros fundamentais da nossa literatura: “Viva o Povo Brasileiro”. Um calhamaço, desses que param em pé na estante. Ariano Suassuna, por sua vez, tornou-se um dos dramaturgos mais populares do nosso tempo ao ter algumas de suas obras adaptadas para a TV e para o cinema. É o caso da peça “Auto da Compadecida”, transformada em minissérie, apresentada pela Globo, e depois em filme de grande sucesso em nossos cinemas. Defensor radical da cultura popular brasileira, criou, juntamente com outros artistas, o Movimento Armorial, com o objetivo de fundir cultura popular e cultura erudita. Rubem Alves é outro caso de popularidade. Em reuniões de professores ou em seminários sobre Educação em terras brasileiras, quase sempre se faz a leitura de algum de seus textos. Como diria Nelson Rodrigues: É batata! Educador e teólogo, ele fez, sem dúvida, a cabeça de muita gente. A minha, propensa a nadar contra a corrente, criou certa indisposição à leitura dos seus textos, — é que a onipresença tende a provocar em mim uma atitude refratária.

Para além das nossas fronteiras, a morte silenciou Gabriel García Márquez, escritor colombiano ganhador do Nobel de Literatura de 1982. Ele foi responsável, também, por criar o chamado Realismo Mágico na literatura latino-americana. Seu maravilhoso romance “Cem anos de Solidão” é um exemplo genuíno desse gênero literário. No cinema norte-americano, a vilã levou um ator de cujas interpretações eu gostava muito, Philip Seymour Hoffman, e outro que sempre me provocou certa antipatia, Robin Williams. Explico a causa dessa antipatia: ele, para mim, queria ser engraçado em todas as ocasiões, e isso me pareceu sempre excessivo, chato até. Graça demais cansa. Tolero-o em “Sociedade dos Poetas Mortos”, e só! Mas tenho consciência da sua importância para o cinema de Hollywood e do quanto ele arrancou risos de plateias pelo mundo afora. Seymour foi um ator denso, desses capazes de nos fazer sentir a vida em sua força máxima. Ator com vida interior intensa e força expressiva marcante. Um filme protagonizado por ele que recomendo é “Dúvida”. De quebra, há ainda a presença arrebatadora da atriz Meryl Streep. No Brasil, o estrago não foi menor: a infeliz calou José Wilker, Paulo Goulart e Hugo Carvana, vozes e expressões de relevo na televisão, no teatro e no cinema. Nossa mídia televisiva, tão infestada de caras inexpressivas, ficou a partir de então mais pobre e insossa.

Bom, a lista fatídica continua, daí o imenso estrago feito pela “Indesejada das gentes”. O ano está findando, torçamos, então, para que ela tenha já terminado seu triste e melancólico trabalho. A vida só não fica sem sentido com tantas perdas porque, na contramão dessa atividade fúnebre, ela se renova sempre. Daí eu saudar, neste texto, a chegada de duas novas pessoinhas à nossa família, dois novos sobrinhos: Nícolas e Maria Flor. Vida longa a vocês, pequeninos!

Para todos e todas, um 2015 de superação e harmonia!

Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Lista dos sonhos que nunca envelhecem

[caption id="attachment_22517" align="alignright" width="620"]M. File M. File[/caption] Eberth Vêncio Especial para o Jornal Opção

Nem sei por onde começar. Fazer um recall da Big Bang. Disputar o céu com os pássaros usando apenas as minhas asas de cobra. Morrer pela boca num beijo bem velhinho dormindo num dia de domingo e despertar no paraíso com a cabeça repousada no colo da vovó com Deus uma mulher (que surpresa incrível!) a coar o café. Enterrar pessoas só de brincadeirinha única e exclusivamente na areia. Construir castelos na praia sem ter medo da maré.

Voar na maionese: cantar “Blackbird” em dueto com Paul McCartney. Ser o quinto beatle. Caminhar pela zona do baixo meretrício com a autoestima em alta. Apaixonar-me pela prostituta tímida meiga bonita e tirá-la daquele lugar. Casar uma aposta com véu e grinalda. Roubar flores no jardim da minha vizinha rabugenta onde hoje levantam duas torres monumentais com oito apartamentos por andar três vagas na garagem e nenhuma rosa para ser cobiçada. Ser reconhecido como um poeta.

Ficar famoso o suficiente para que todos prestem atenção quando eu disser em rede nacional “Eu preciso de um pouco mais de respeito”. Então pedir que me esqueçam. Me mandar do planeta num foguete para a lua. Flutuar com a consciência tranquila na gravidade zero. Engravidar um grande amor no banco de couro de um Maverick quatro cilindros ao som de “Born to be wild”. Rir de tudo que não tiver a menor graça. Plantar bananeira no meio da rua e semáforos no pomar.

Almoçar em casa todo santo dia. Ir a pé pro trabalho. Acordar no meio de um enorme problema e constatar que tudo não passava de um pesadelo. Ouvir na cama os segredos picantes que os seus grandes lábios têm pra me contar. Morar em casa própria tipo rancho à beira de um lago e ter um monte de filhos com uma pá mecânica. Lavar a minha égua no “Poema Sujo”. Cuspir com classe e estilo do alto da Torre Eiffel. Gritar na Wall Street que dinheiro não traz felicidade. Cavar um túnel até fugir da prisão chegar ao Japão ou fazer calos nas mãos o que acontecer primeiro. Matar a curiosidade: fazer sexo com uma japonesa.

Desvendar os segredos da maçonaria. Descobrir a cura para o câncer da corrupção. Decorar a última parte do Hino Nacional. Beber leite misturado com manga e não enlouquecer. Passar no vestibular da vida. Ter uma árvore. Plantar um livro. Escrever um filho. Investir num consórcio, operar o períneo, fazer uma lipo, levantar os peitinhos e de quebra entender as mulheres. Juntar meu primeiro milhão de amigos. Ganhar na loteria dos pênaltis. Deitar e rolar com você para que os corpos não criem limo.

Acabar com a violência a miséria e as fronteiras entre os países para que o mundo seja finalmente um único quintal. Curar-me do sarcasmo e do cinismo. Sonhar sonhos mais factíveis. Amadurecer o suficiente mas sem cair de maduro. Crescer tornar-me um adulto resolvido e nunca mais querer ser alguém nessa vida além de eu mesmo.

Eberth Vêncio é escritor e médico.

via Revista Bula