Resultados do marcador: Crônica


Uma casa completa. Eu ainda era criança quando sonhava com uma casa decorada. A parede em uma cor que eu gostasse, um papel de parede, móveis planejados, luminárias, objetos de decoração. A gente morava de aluguel, mudamos algumas vezes de casa: nove casas das quais eu me lembro. As paredes eram sempre brancas porque não havia grana pra essa decoração que eu sonhava. Era tudo sempre limpo e organizado, mas a minha casa (física) nunca se pareceu com as dos filmes e das novelas. Eu morria de vontade de mandar cartas para os programas de decoração e ver aquelas transformações imediatas e chiques, mas as casas eram temporárias. Eu, que já tinha tanto, não podia, de jeito nenhum, fazer esse tipo de exigência pra minha mãe. Parecia absurdo na minha cabeça desejar uma “bobagem” dessas.
Comprei minha primeira casa aos 19, na planta, ainda namorando, pela primeira etapa do Minha Casa Minha Vida. Meu sonho era ter uma casa, minha. E um dia, se eu conseguisse, dar uma casa pra minha mãe. Foram 10 anos morando nessa casa que ficou pequena demais pra gente com uma criança crescendo e o desejo de ter um segundo filho. Conseguimos alguns móveis planejados, devagarinho a casa foi ficando em ordem, mas ainda não era tão completa quanto eu gostaria. A grana dava pra fazer uma coisa ou outra e a gente sempre precisava escolher entre viajar, pagar o IPVA ou comprar uma mesa nova.
Depois de 3 anos de anúncios, no meio da pandemia, vendemos nossa casa. Um apartamento novo, quase 20 m² a mais, finalmente uma suíte. Dois banheiros a mais. Uma área de lazer para Cecília brincar, uma piscina, uma academia. Dessa vez eu decidi que não haveria nada provisório. Pode demorar o tempo que for, vai ser como nos meus sonhos. O armário que eu salvei do Pinterest, os organizadores que eu vi no Instagram. No próximo mês completamos 4 anos de apartamento novo. E falta tanto. O guarda-roupas do meu quarto foi comprado com a venda de um carro. Chegou Matheus no meio do caminho e prestes a fazer um ano, o quartinho dele ainda não está completo. Mas outro dia, amamentando ele e olhando pros detalhes daquele quarto eu fiquei pensando nessa crônica aqui.
Eu chorei olhando uma foto da ultrassom dele que minha cunhada enquadrou, uma sagrada família que ele ganhou e um quadro pintado pela Cecília que ainda não penduramos na parede. O berço está quase saindo pra dar lugar à cama e aquele quartinho, ainda incompleto, vai mudar. Enquanto eu colocava Matheus pra dormir, Cecília fazia desenhos para a porta do quarto que pintamos de lilás. O desenho era uma imitação colorida de fechadura eletrônica. Aquele quarto, que também não está completo, tem brinquedos espalhados pelo chão, jogos embaixo da cama, corações nas paredes e uma escrivaninha que vive lotada de papel recortado e adesivos. Aquele quarto, incompleto, é exatamente como eu queria que fosse o meu quando era criança.

Nesse mesmo dia, o Guilherme, um amigo muito querido, me mandou uma mensagem contando que finalmente tinha conseguido, junto com os irmãos, comprar uma casa pra mãe dele. Uma casa pra eles morarem. Uma casa própria. Eu me emocionei porque eu sei exatamente tudo que aquela chave significava. Me emocionei porque com certeza, esse é um sonho que eu e minha irmã compartilhamos. E eu sei que hoje tá na moda morar de aluguel. Tem gente que reforma casa de aluguel gastando fortunas e gravando vídeos fingindo que dá pra fazer tudo sozinho com pouca grana. Eu sei que há uma geração inteira que não se importa com um apartamento próprio, que acha que financiamento é bobagem e que vende por aí a história de que é melhor investir (sem nunca guardar um centavo na poupança ou de fato fazer um investimento). Tem gente que sequer reconhece o privilégio de ter uma casa própria, uma área de lazer. Mas sei também que há gente como nós que sonha em ter uma casa pra chamar de sua. Em pintar portas e janelas e decorar um lugar seu, do seu jeito, com a sua cara.
E olhando pra minha casa “incompleta” eu só conseguia pensar que essa casa incompleta me ensinou a ser paciente, mas também me ensinou a aproveitar cada detalhe. A casa está em construção porque nós também estamos. Estamos sempre. Cecília está crescendo e eu não quero pensar que um dia aqueles brinquedos vão sair dali e que talvez ela não goste mais da porta lilás. A cama, que hoje é rosa, pode passar a ser brega e infantil. O quartinho do Matheus talvez não tenha mais arco-íris e ele me peça carros, dinossauros, sei lá.
Eu quero que o tempo vá devagar, sem esquecer que há muito a ser feito pela casa e pela gente. Faltam armários, tem um sofá que a gata rasgou, mas tem uma manta no sofá pra lembrar que é ali que a gente se deita no fim do dia. Uma criança em cada colo e uma gata no pé. Tem brinquedo espalhado e roupinhas no varal com cheiro de bebê. Tem louça sempre suja ou no escorredor, mas tem um pai e uma mãe que inventam lanches e receitas para manter essa galerinha saudável e feliz. Na sacada: um patinete, uma bicicleta e uma motoca. E no armário da cozinha: copos de princesas e herois, forminhas de coração e pratos ilustrados.
E a certeza plena de que tem amor demais aqui. Mesmo no caos.

Na crônica de Geraldo, publicada na página Certas Crônicas, Fernanda Dorneles, moradora de Goiânia, conheceu Júlio César, que vive no interior do Paraná

A maternidade é solitária. Eu falei essa frase pra mim em voz alta outro dia enquanto amamentava o Matheus no quarto escuro ao som de uma música de ninar. Não importa quantas amigas mães você tenha. Não importa se a sua rede de apoio é maravilhosa e se seu marido, pai da criança esteja presente e faça o papel dele de forma exemplar. Ainda assim, a maternidade é solitária. Pode ser mais fácil, pode ser mais leve, mas lá no fundo da gente, é solitário. E eu não tô dizendo que é triste, nem que o cansaço é maior que o amor. Não. A minha maternidade é o meu maior sonho da vida e eu sou muito feliz, mas a maternidade é solitária.
Ah, Catherine, você super romantiza a maternidade. Sim. Eu amo ser mãe. Eu não gosto de lavar louça. Eu odeio tirar a roupa do varal. Mas se eu pudesse, eu brincava com criança o dia inteiro. Eu não lembrava mais como era ser mãe de um bebê. A Catherine de 25 anos é diferente da de 34. Agora são dois filhos e não mais um só. Demandas diferentes, necessidades diferentes, empregos que me exigem mais, mais contas, mais boletos. Meu marido é muito mais presente, mas a nossa casa agora tem três banheiros para lavar. Mudou tudo.
Há umas semanas, eu exausta, muito exausta, me vi tendo uma crise de ansiedade, respirando devagar, tentando me controlar e o choro entalado na garganta. A introdução alimentar é, pra mim, mais difícil que a amamentação. E agora eu tô tentando criar uma criança sem telas porque reeducar a mais velha pra ficar menos tempo no celular e na TV não tem sido fácil. Uma sensação de esgotamento, incapacidade e lentidão tomando conta de mim. No desabafo com uma amiga ela disse a frase que tá me movendo: “Amiga, pra alguns dias, só outro dia”.
Um guarda-roupas lotado de roupas que não me servem. Calças largas depois de perder 14 kg, blusas sem botão que não servem para amamentar, vestidos lindos que não permitem um peito à mostra. Falta grana pra comprar roupa nova, falta ânimo pra arrumar um cabelo ou passar uma maquiagem, falta vontade de sair de casa e sobra um imenso desejo de passar o dia num pijama. Minhas amigas estão correndo, trabalhando, indo a eventos, organizando festas e churrascos, e confraternizações e eu só quero ficar no meu quarto, amamentar uma criança com calma, deixar ele comer sem as pessoas pressionando para vê-lo abrir a boca e engolir colheradas de comida. Tem dia que são duas colheres, gente, E tá na média.
Cecília de férias. Num dia eu vou na piscina com ela e no outro eu fico implorando pra ela brincar, pra ela sair do celular, pra ela olhar o Matheus enquanto eu faço cocô, enquanto eu lavo a louça, dobro a roupa, preparo o jantar, termino um texto. Eu sou sortuda. Tem muita gente querendo ajudar, mas lá dentro é como se a mente funcionasse na velocidade normal e o seu corpo não conseguisse acompanhar. Na minha solitude, eu tento só aproveitar cada minuto porque eu sou geminiana, eu tenho uma sede imensa de viver as coisas, eu gosto de ter o controle. Ser mãe muda tudo. Absolutamente tudo.
A boa notícia é que eles não serão bebês para sempre. Vão demandar diferente, serão nossos amigos, vão dividir a conta do restaurante com a gente um dia. A má notícia é que eles crescem e com a experiência da primeira, eu sei que vou sentir falta desses olhinhos que me olham como se eu fosse o mundo inteiro, a pessoa mais importante do universo. É cansativo, é solitário, mas é incrível.

29 de novembro, primeiro dia de férias da escola. Acabouuuuu, grita o Galvão. A mãe tá feliz porque não precisa mais ficar dirigindo e fazendo lanche, e acordando às 5h. Aháaaa, quem disse? Pois a bonita da rotina com um bebê em casa ela dá um tapa na cara da gente. O menino Matheus, no auge dos 6 meses, acordou às 5h como de costume. Naquela hora que a casa inteira levanta e ele brinca com a irmã, vai no colo do pai, espera a casa acalmar de novo. Eu não estava sequer conseguindo manter meus olhos abertos, mas ele estava lá, sorrindo, pulando em cima da gente na cama do papai e da mamãe.
Na primeira reunião do dia, às 9h, eu já tinha trabalhado como uma adulta, arrumado a comida da gata (a pet mesmo, que também mia às 5h pra pedir a comida dela), feito o lanche da Cecília, meu café, coloquei roupa na máquina e tirei o lixo, um monte de fralda de cocô que não deu tempo de tirar ontem. E para conseguir me reunir, Cecília cuidou do Matheus e foi quando eu terminei a reunião que tirei essa foto pensando: Deus, como eu sou sortuda. Porque ser mãe é gritar no meio da tarde e sentir culpa quando eles dormem. É gratidão atrás de eita.
Cecília tem 9 anos e eu já conseguia andar mais depressa. Limpar a casa mais depressa, comer, me arrumar, tomar um banho demorado. Aos 9 anos um filho não te impede mais de fazer coisas de rotina. Quando eu tinha muito trabalho eu pedia para ela esperar um pouco, pegar a comida na geladeira, tomar banho… Eu tinha me esquecido de como um bebê muda tudo. Meu Deus, acho que a gente esquece a introdução alimentar para não desistir de outro filho. É caótico.
Enquanto eu escrevia essa crônica, eu olhava pro macarrão que tá no chão. O que caiu hoje e o que caiu ontem e não deu tempo de limpar. Limpar a comida no chão ou dar banho na criança que tá chorando com sono? Limpar a comida do chão ou trabalhar? Tem que escolher suas lutas, amiga! Saí pra levar a Cecília no ballet, Matheus chorou na volta e me fez gastar nada menos de 3 horas pra chegar em casa, numa chuva imensa. 15h30 da tarde e eu parada numa rua do setor Aeroporto, debaixo de uma árvore cantando Dona Aranha e ninando um bebê no colo. É, um filho te faz pisar no freio. Não tem jeito. É desacelerar e aceitar.
Eu e Cecília gostamos demais de conversar na volta da escola. Outro dia, eu com pressa, não perguntei como ela tinha saído na prova. Ligação, mensagem no WhatsApp, celular tocando e ela me solta: “Nossaaaaaa, queria minha mãe de volta. Você nem me perguntou como eu fui na prova de Geografia….” Eu segurei o riso, pedi desculpas e claro, perguntei da prova. Tem dias que ela me chama pra ver o formato de uma nuvem e minha cabeça tava lá, preocupada com os boletos. Eu amo que duas criaturinhas me fazem pisar no freio porque eu acho tão triste a vida no automático.
A maternidade me ensinou que o hoje passa rápido e amanhã é outro dia, eles aprendem coisas novas, o rostinho mudou. O bebê que não sentava começa a ficar de pé. A menina que aceitava sua opinião quer escolher a própria roupa, não usa mais laço no cabelo e aprendeu a cozinhar. Se você não prestar atenção na prova da escola, ou no vídeo que ela quer que você assista, um dia ela não vai querer te contar mais nada porque você não dá importância.
Eu tenho uma regra clara: se eles pedirem colo, eu paro o que estiver fazendo. Será que vão querer meu colinho pra sempre? Eu me lembro como se fosse hoje de quando chorei no colo da minha mãe em posição fetal depois de não ser aprovada no vestibular. Não existe lugar mais seguro. Eu aprendi que às vezes teremos banhos bem rápidos e colos demorados, mas que todas as fases vão passar. Você se lembrará pouco dos perrengues e sentirá uma saudade imensa de ser colo. Pisa no freio, vai com calma. E esse recado também é pra mim!
Leia também:

Há versos excelentes construídos com palavras simples, porém palavras bem escolhidas dentro do campo da simplicidade. Em seu romance “A Hora da Estrela”, Clarice Lispector disse que a obtenção da simplicidade só é possível “através de muito trabalho”

Por Catherine Moraes
Essa música, é, com certeza, a que eu mais ouvi depois que o Matheus nasceu. A voz dos Veloso tocou baixinho no quarto dele e mais que isso, tocou grandão no meu coração. Eu, que nunca quis ser a mãe de um homem, tô aqui apaixonada pelo presente que Deus me deu. Quando a Cecília nasceu, uma Catherine morreu pra nascer outra que nunca mais seria igual. Agora, outra versão surge e o mistério é se reconhecer. Todo homem precisa de uma mãe. O que eu não sabia, é que eu também precisava de você.
Eu chorei ao descobrir a gravidez. Chorei de novo quando peguei sozinha o teste de sexagem fetal e li masculino. Deus, eu seria capaz de ser mãe de um homem? Lá no fundo eu sabia a resposta. Claro que sim. E foi aí que conversando sobre isso, uma amiga me disse: “Que bom que você vai ser a mãe de um menino. É de mães como você que homens precisam. É a certeza de que vamos mudar as próximas gerações”. Será? Será que em um mundo machista e homofóbico com homens que não conseguem fazer serviços básicos ou assumir responsabilidades pequenas e são pra sempre chamados de meninos, que eu, euzinha conseguiria fazer diferente?
Mas aí o Matheus nasceu e eu descobri o óbvio: antes de ser um homem, ele é um bebê. Não tem um segredo enorme. E se eu fizer o mesmo que eu fiz com a Cecília? Se eu encher ele de amor, afeto e dar a oportunidade de ele administrar os próprios sentimentos. E se eu ensinar que depois de comer o prato precisa ir pra pia e que a gente precisa ser gentil com as pessoas? E se ele perceber que na nossa casa não existem serviços de homem ou de mulher e que quando o pai e a mãe, exaustos, param de trabalhar, eles se unem para uma faxina. Será que ele aprende olhando? vivendo?
Barriga, dois irmãos.
Eu sempre quis ter dois filhos, desde quando adolescente eu brincava imaginando o futuro. Eu queria casar, queria ser mãe, ter uma família, viajar, me formar. E eu sempre me imaginei mãe de menina: brincar de boneca, maquiagem, usar as mesmas roupas e sapatos como eu fiz com a minha mãe, com a minha irmã. Mas eu achava que não ia rolar, que essa vontade era grande demais pra acontecer.
Escolhemos o nome Matheus quando engravidei pela primeira vez. Se fosse menina, a gente escolhia depois. Lá no fundo do meu coração, eu sonhava com a minha garota. E ela veio, confirmada com 12 semanas: Cecília. Pronto, eu que cresci numa casa cheia de mulheres, trazia mais uma ao mundo. Meu sonho estava ali no meu colo e hoje está completando 9 anos.
Mas eu queria outro filho, outra filha. Guardei roupas que amarelaram. Perdi as contas da quantidade de testes de gravidez. Escolhi o nome: Maria. E levei 6 anos para tentar e pra desistir dela. Doei tanto, vendi roupas, sapatos e enxoval para depositar o dinheiro na poupança da Cecília. Refiz a rota, mudei de planos, marquei pra colocar um DIU. Criei uma nova lista de desejos. E foi aí que Matheus apareceu. Eu precisei desistir da Maria para que o Matheus viesse. E que bom que ele veio.
Eu sei que o amor por um filho nasce de diversas formas. O meu nasceu na barriga de ambos, mas se fortaleceu ali, no parto. Mas ainda não era um amor completo. A gente ama ainda mais quando se conhece, quando se entende. Comigo essa regra também funciona para as crianças, as minhas crianças. Eu amo os dois a cada dia mais. E quando parece que não cresce mais, esse amor transborda.
Que você, meu menino, seja um homem digno de orgulho e que eu seja a mãe que você precisa e merece! Te amo!
Leia também:

O tolo não sabe onde nasce o sol, pois seu coração vive num escuro constante

“Iracema, a virgem dos lábios de mel, (…) tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”, José de Alencar

“Teimar e contestar obstinadamente são defeitos peculiares às almas vulgares, ao passo que voltar atrás, corrigir-se, abandonar sua opinião errada no ardor da discussão, são qualidades raras, das almas fortes", Montaigne

A realidade exige assuntos que tenham relação com “a alma dos nossos negócios”, como canta Paulinho da Viola

As expressões portuguesas são imensas. Se um dia quiçá Deus quiser, sistematizo essas experiências de memória

O irmão de Elenice não era um homem de “elmo cheio de nada”, como disse T.S. Eliot em seu poema “Homens Ocos”

Cheguei à definição metafórica de que os poetas são abelhas. Essa figura de linguagem me veio enquanto eu colhia caju do cerrado neste final de semana, mais precisamente no domingo pela manhã, na chácara de um casal de amigos em Terezópolis de Goiás. O quintal desses amigos (Edvâni e Jeovar), por ser repleto de árvores (muitas frutíferas), vive cheio de pássaros e insetos polinizadores devido às muitas flores por lá. No momento, há dois casais de pássaros (corruíra e fim-fim) chocando na área da casa. Caminhando pelo quintal, encontrei até um filhote de tatu-galinha vasculhando as folhas secas à procura de comida.
Ao colher um caju, percebi que nele havia dois furos, e, dentro de cada um, havia uma abelha, mais precisamente uma europa e outra silvestre (a que não tem ferrão), que para mim era uma arapuá, também conhecida como irapuã, arapuã, abelha-de-cachorro entre outros nomes. Não colhi todos os frutos maduros, deixei alguns para os insetos (principalmente o que tinha as duas abelhas) e também para um lobo-guará que anda por lá e come os que caem no chão. Encontrei fezes do canídeo sob o cajueiro. Eu já vi esse lobo uma vez circulando dentro Ecovila Santa Branca.
Na digo que tive uma epifania observando as abelhas dentro do caju (inclusive filmei a cena), mas me senti maravilhado vendo-as buscando doce para fabricação de mel num fruto que só foi possível existir em decorrência do trabalho delas de polinização, que é a transferência de pólen entre as partes masculina e feminina da flor. Esses serzinhos, que são os animais mais importantes do planeta – polinizam mais 70 das espécies de vegetais que fornecem 90% dos alimentos consumidos no mundo --, têm levado a pior com o pessoal do ogronegócio. Esse pessoal, não estou generalizando, em filosofia letal de trabalho, ignora a sustentabilidade ambiental e só visa ao aspecto econômico, excluindo, portanto, dois aspectos que integram o ciclo racional de desenvolvimento: o social e o ambiental.
E neste último entram as pobres abelhas. O terror mortal delas é um tal de fipronil, um inseticida usado em culturas de soja, batata, cana-de-açúcar, milho, algodão, arroz, soja, cevada e feijão. Tal inseticida, por sua letalidade às abelhas, foi proibido em vários estados brasileiros, inclusive Goiás. Sua proibição também foi adotada em vários países. Nos da Europa que o usavam, esse inseticida é chamado de “exterminador”. Não há como não se chamar de ogronegócio uma atividade que está pouco se lixando para a sobrevivência das abelhas, bem como de outros bichos e dos recursos hídricos.
Quanto à metáfora, vamos a ela. O fato de eu ver os poetas como abelhas explico agora. Não vem das abelhas o doce que se encontra no mel, mas do néctar das flores e do doce das frutas. Porém sem enzimas digestivas delas, não seria possível haver o mel, que, ao contrário da prejudicialidade do açúcar, é medicinal, pois possui substâncias antibióticas, sais minerais poderosos na proteção do nosso corpo contra infecções e no aumento do nosso sistema imunológico. Da mesma maneira se pode dizer que o poeta encontra nas coisas a poesia e assim (com suas “enzimas poéticas”, digamos assim) produz o poema.
As abelhas não correm o risco de fazerem mel que não seja delicioso e saudável, fato que nem sempre ocorre com os poetas. Para Rainer Maria Rilke, o poeta deve acusar a si mesmo na sua incapacidade de extrair as riquezas do seu cotidiano e transformá-las em bons poemas. Há poemas que nem como tais podem ser chamados pela ausência de engenho e arte, sem os quais não construir versos autênticos e bem burilados esteticamente.
Platão, que não é o protagonista da antiga divergência entre filósofos e poetas e isso por razão ético-religiosa, ressuscita o assunto na sua República. Para o discípulo de Sócrates, a poesia não gera benefício algum à alma das pessoas, mas sim malefícios. O nosso psicanalista, educador, teólogo e escritor Rubem Alves, que foi embora da vida em julho de 2014, enaltece a importância dos poetas: “Faz tempo que para pensar em Deus, não leio os teólogos, leio os poetas”. Mas Alves também fala, em sua crônica “A beleza dos pássaros em voo”, de seu encontro com o ‘sagrado’ “no capim, nos pássaros, nos riachos, na chuva, nas árvores, nas nuvens, nos animais”. Eu mesmo encontrei Deus nas duas abelhas dentro do caju.

Em 1796, Jenner pegou o pus retirado da mão de uma ordenhadora com varíola bovina e o inoculou num garoto de oito anos, que não adquiriu a varíola humana. Disso surgiu a cura