Se você é um cego botânico, ainda dá tempo de enxergar as plantas

07 maio 2024 às 15h43

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Perdão, altaneiro leitor. Meu pedido de desculpa é pelo fato de eu, em minhas crônicas, estar falando, com uma certa constância, do filósofo, escritor e humanista francês Michel de Montaigne (1533 – 1592). E esta, creio, não será a última. No capítulo XXVI – “Da educação das crianças”, de sua brilhante obra “Ensaios”, ele puxa a orelha dos escritores sem discernimento de seu tempo. Esses escribas, segundo ele, “em seus livros sem valor, vão semeando trechos inteiros de autores antigos para se enfeitarem”.
Eu, quase cinco séculos distantes de Montaigne, estou fazendo justamente o que ele criticou. E a causa disso, confesso, é minha falta de engenho e arte. Tenho tentado me melhorar enquanto escrevinhador, principalmente procurado fugir das palavras mudas. Estas, no entanto, têm me perseguido. Vale ressaltar que, aqui e ali em “Ensaios”, a gente encontra citações de autores antigos, porém sem o viés de busca de enfeite. Isso, no entanto, é nada perto da grandeza de sua obra. Inclusive volto a repetir algo já dito aqui: “Se só existissem dois livros no mundo, em vez da Bíblia, eu não contaria até três para optar por ‘Ensaios’”. Como essa galera beligerante a bradar, de alma vazia, “Deus, Pátria, Família” não é de ler nem bula remédio, não corro o risco de ser condenado à fogueira por minha escolha de Montaigne.
Ainda sobre Montaigne, no mesmo capítulo anteriormente mencionado, ele diz: “Teimar e contestar obstinadamente são defeitos peculiares às almas vulgares, ao passo que voltar atrás, corrigir-se, abandonar sua opinião errada no ardor da discussão, são qualidades raras, das almas fortes, e dos espíritos filosóficos”. É aqui que entra o assunto principal desta crônica: a perigosa cegueira botânica, termo criado em 1988 pela dupla de botânicos americanos Elisabeth Schussler e James Wandersee.
Identificar um cego botânico é muito fácil. Gente assim há demais em todos os cantos do mundo. O cego botânico, conforme os biólogos, é incapaz “de reconhecer a importância das plantas na biosfera e no cotidiano; tem dificuldade em perceber os aspectos estéticos e biológicos exclusivos das plantas; vê as plantas como seres inferiores aos animais”. Se você tem essas características, você, altaneiro leitor, é um cego botânico, mas ainda dá tempo para enxergar as plantas e estabelecer uma relação de respeito para com elas. E você tem mais a ganhar nessa relação do que elas.
Conheci uma senhora cujo analfabetismo botânico era hilário de tão imbecil. Eu era colega de escola de um dos filhos dela. Ela contava que morria de amor pelas plantas, mas não legitimava isso de modo apropriado. Em sua sala, havia um buquê de rosas vermelhas; na garagem, havia um vaso com um coqueirinho ornamental. No vidro traseiro de seu carro, tinha uma frase dizendo que o veículo era “presente de Deus”. Só que seu amor era por plantas artificiais; as naturais, dizia, numa convicção de alma tola, “dão muito trabalho, Deus me livre delas”. O que chamava de muito trabalho era regar, colocar adubo de vez em quando. As folhas do coqueirinho estavam encardidas de tanta poeira. O gato amarelo da casa gostava de dormir dentro do vaso.
Uma nora deu uma orquídea certa vez a essa mulher. Foi o mesmo que dar pérola pra porco. A planta, por falta de cuidados, foi adoecendo e acabou morrendo de fome e sede. Seu filho chegou a cutucar a desatenção da mãe, dizendo que ela poderia ter cuidado da orquídea, que havia sido lhe dada com muito carinho. Como era uma alma vulgar, insistia na teimosia ignorantemente de que só gostava de plantas artificiais. Na sua porta, havia um oitizeiro de muita sombra, que era usada por seus filhos para colocarem seus carros.
Ela mandou matar a árvore às escondidas. Aí seus filhos passaram a usar a sombra de um jambo-do-pará na calçada da casa em frente e assim impedindo que o filho do vizinho colocasse seu carro quando vinha do trabalho para almoçar. Isso gerou um bate-boca entre os vizinhos, mas os filhos da mulher acabaram caindo na real e não estacionaram mais lá.
*Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza