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Guache em azul, cinza e sombrio

Consciente de que certas formas de ginástica e de exercícios passionais são restritos aos jovens, contento-me com este exercício semanal da crítica

Giacomo Leopardi – Além do pessimismo, a “poesia consoladora”

O poeta italiano, considerado anti-Pascal, é um incrédulo, um negativista, um descrente, mas sua poesia toca em algum lugar na alma do cristão que se torna impossível não gostar dele, tanto quanto é impossível descrever esse gosto em poucas palavras

No caminho de Siena (2) – o retorno e “o angustioso anseio”

Estando na Galeria do Uffizi, foi possível esquecer o que deixara na Lombardia, ao sair de Milão; no acervo tão procurado, eu estava na verdade à espera ansiosa de dois quadros pelos quais tenho uma paixão secular – as musas visitam a Primavera e o Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli [caption id="attachment_107155" align="alignleft" width="620"] "Nascimento de Vênus", pintura de Sandro Botticelli[/caption] Sabe-se que a crônica de viagem tem uma tradição e estudá-la, como de resto a todos os clássicos, é um dever do cronista (e do escritor em geral), segundo o velho Machado de Assis: “estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”, para concluir que “escrever como [Miguel Eanes] Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo.[i] ” Insisto, no entanto, em um ponto que já estivera presente na crônica de Machado (Notícia da atual literatura brasileira, 1873) – se à época, “feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no Brasil ”; hoje, passados 143 anos, simplesmente, não se lê no Brasil – simples assim; tendo a preguiça de ler levado os cronistas ao texto telegráfico à la Twitter – ao que, prefiro os clássicos e os antigos – retroativo até mesmo ao Eanes e sua Crônica da conquista da Guiné, celebrada por Cristóvão Tezza, no romance “O professor”. Portanto, parafraseando Machado, concedo “Ao leitor, as batatas...” e também os cafés, os molhos, as massas finas, os quadros vistos, as iguarias todas, todos os vinhos não bebidos pelo cronista – que apesar de não degustá-los mais, é capaz de imaginá-los, estando abstêmio, capta seu frescor, suas notas frutadas e seus aromas; ao leitor, o sumo dos livros lidos na língua de Giacomo Leopardi, o cansaço de longas caminhadas e o repouso merecido, a sombra e o sol da Toscana, todas as “mágicas que a Graça do Senhor faz são Poesia” (Jorge de Lima) – poesia de que a Toscana foi grande beneficiária; os campos, os ciprestes italianos; tudo, enfim, da Beleza que inunda os mágicos caminhos dessa pródiga região italiana. Que estes, no entanto, sejam servidos à moda italiana. Antipasto: esta crônica é como um campo arado à espera de chuva na Toscana, o espaço pronto para receber as sementes – as ideias, as provocações. Esta crônica é o espaço em que se misturam o Sagrado e o profano como um cantuccio que deve ser saboreado embebendo-o no vino santo – mas isso já seria a conclusão, não nos adiantemos no tempo da crônica e da refeição. Respirando o ar da Toscana, refaço a subida da estradinha de chão, ladeada por ciprestes que nos levava, minha mulher e eu a ser recebidos com fidalguia pelo casal Giuseppe e Antonella, na propriedade agrícola San Fedele, próximo à cidade de Siena. A Toscana, que já apresentara suas cartas em Milão e Florença, deveria ter em Siena apenas um rito de passagem, mas que passagem saborosa, como um antepasto a uma bela refeição regional. Os ciprestes verdes em contraste com a terra amarela da região nos fazem viajar duplamente, pois que espiritualmente regamos o canteiro das memórias para a chegada de novas sensações e sabores – o que incluiu a coleta de funghi porcini na floresta quatrocentona da San Fedele. Primo piato: porque o ato de viajar é algo que envolve o desconforto dos deslocamentos (principalmente os intercontinentais), mas também muita alegria espiritual, é preciso se preparar para a viagem. Em geral, chega-se faminto ao (e do) destino. Neste ponto, eu me ponho em desacordo com Xavier de Maistre, no isolamento (obrigatório no caso dele), mas concorde à sua conclusão quando pontua que “Minha alma é de tal modo aberta a toda sorte de ideias, de gostos e de sentimentos; recebe tão avidamente tudo o que se lhe apresenta! […]  Não há gozo mais atraente, no meu entender, do que o de seguir a pista das próprias ideias (…) ” O grande problema começa quando me salta à memória a frase de José Guilherme Merquior, para quem o homem comum é capaz de uma ou duas ideias originais. Assim, pois, há que se dar atenção aos que se instruem no rapto das ideias – o roubo da Beleza, louvado por Ortega y Gasset, para quem “Deus pôs a beleza no mundo para que fosse roubada. ” Secondo piato. Ora, por não se tratar de rapto de mulher, coisa mais complexa e atemporal, declaro-me submisso a Ortega, e sua taxativa citação: “a beleza foi feita para ser roubada” – título da bela seleta de ensaios do pensador espanhol organizada pelo professor Ricardo Araújo, da UnB; o que fica bastante bem provado no estudo de caso de Machado de Assis, como um plagiário, estudo este organizado pelo professor João Cezar de Castro Rocha, que nos provou com sua seleta de textos em torno de Machado de Assis que não há vilania no autor como um plagiário[ii]. Nossa ideia inicial para esta viagem era fixar-nos em uma região e percorrê-la nos dias disponíveis com a mais sincera abertura a descobrir-lhes as pistas do gozo deste prolongado período “sabático” que vivemos. Naturalmente, quem vai à Toscana, tem o mandatório encontro marcado com Boticelli e Leonardo. Ao primeiro, compareci embevecido e saí ainda mais emocionado apreciador. Com o segundo, fiquei ainda mais bem impressionado com as lições que ele tão bem aprendeu como discípulo do mestre Andrea del Verrocchio. Abandonei a um canto o meu Ortega e seu ensaio sobre Leonardo e a Mona Lisa, receoso de que isso levaria a crônica a outro destino. E como não cogitava de rapto de mulher, mas de sabores, de momentos tão voláteis eis que me não me aventurava a reescrever o ensaio do mestre espanhol. Simplesmente, ia como caminhante, pelos campos da Toscana, na companhia de Santa Caterina de Sena e de outro espanhol – o poeta Antonio Machado. Não compareci ao que Milão mais me prometera, por anos a fio. Infelizmente, as medidas de restrição de acesso que limitam os visitantes a no máximo vinte e cinco (por período de visitas), me impediram de ver a “Santa Ceia” de Leonardo, na histórica parede do antigo refeitório dos frades, na igreja Santa Maria da Graça em Milão, cuja recuperação recente era anunciada com entusiasmo (afinal exigira 22 longos anos!), isso tudo depois das que fizeram Bellotti (1720) e Mazza (1770). A obra do mestre Leonardo não morreu, como previra Ortega, tampouco foi “perdida como uma pérola ferida” como queria Gabriel D´Annunzio em “Ode per la morte di un capolavoro”. E porque havia Boticelli e a Galeria do Uffizi, com sua arte maior e sua coleção inesquecível, foi possível esquecer o que deixara na Lombardia, ao sair de Milão; no acervo tão procurado, eu estava na verdade à espera ansiosa de dois quadros pelos quais tenho uma paixão secular – as musas visitam a Primavera (ou A Primavera) e o Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli. Dessas duas importantes obras, estive bem próximo e me emocionei ao lembrar de  uma conversa que mantive com Pietro Maria Bardi, a quem tive a honra de conhecer e conviver durante a avaliação do acervo da Pinacoteca da Caixa Econômica Federal, no Museu da entidade, em Brasília, nos idos dos anos 1980. Ele, Bardi, que me presentou com o seu “Sodalício com Assis Chateaubriand”, teria dito sobre Boticelli o que não me apresso a reescrever: “Este pintor é uma expressão típica do ambiente em que viveu: católico e pagão a um tempo, ocioso e asceta, gozador da fantástica mesa dos Médici e chorão da humilde seita de Savonarola, apreciador de disputas teológicas e pintor de Vênus muito nuas e, ao mesmo tempo, das mais castas madonas, Botticelli carrega no seu íntimo a crise de seu século. Pensai que Botticelli teria podido pintar “A Primavera” e a “Adoração dos Reis Magos” fora de Florença, fora da cidade em que as orgias principescas formavam um todo com a alegria popular, a luta religiosa acirrada, a poesia no seu auge, o espírito da renascença borbulhante? Cada um dos florentinos do século XV ofereceu a Botticelli, pelos caminhos milagrosos ao longo dos quais o espírito se manifesta nos seus tecidos misteriosos, algo de imperceptível:  as recordações evanescentes estranhas da tonalidade duma cor, o sentido duma forma, de uma atmosfera, de uma atitude, de uma fisionomia, de uma melodia, percepção dos limites que na natureza separam o necessário do supérfluo. A obra de arte na nasce por si mesma como fato egoisticamente íntimo (…) " Pois bem, ele, Bardi, me dissera que sobre este quadro um estudo das espécies florais retratadas pelo pintor toscano recenseara mais de duas centenas. Não o comprovei nem vi prova que o refute. Fico, pois, com esse número na memória, até que encontro a referência de cinco centenas! Dolce & Café. Come-se muito bem na Toscana – come-se muito e o paradoxo francês parece aplicar-se aos toscanos, pois são na sua maioria esbeltos. O cronista volta com uma esposa pronta a repetir as receitas aprendidas na Scuola de Cucina de Lella (Siena) e um apetite voraz de alguém que quer manter a forma de sexagenário magro. Depois de três semanas longe de casa, volto ao lar onde me esperam livros diversos – dois Eças; um Borges, um Camilo e o livro de poemas “A estante” – de Felipe Fortuna. Aguardam-me os campos ressecados do cerrado goiano e as rotinas que foram suspensas com a viagem, recebem-me com afagos os que nos amam: filhas, genros e netos. Eu e minha mulher felizes com os afetos, não nos sentindo mais “em férias”, mas sim no gozo de um “ano sabático” que se deseja permanente. As novidades da volta, os aspectos oníricos que embalam quase toda viagem, se esvanecem quando se confrontam com a realidade. Se a arte de viajar – como eu disse alhures, repetindo Xavier de Maistre consistisse em viajar em torno do próprio quarto (ou à roda do meu quarto, na tradução de Marques Rebelo), pois bem, fosse isso verdade absoluta – mesmo para os punidos com a prisão domiciliar (no caso de Maistre por conta de um duelo!), ainda assim, repito o que disse há dois anos atrás, as companhias aéreas estariam em maus lençóis e os guias de viagem seriam desnecessários e nós, amantes da viagem, em grande perda espiritual, mas isso já é assunto para a próxima quinta-feira aqui neste espaço. Dito isso, deixo meus cinco leitores com um trecho da tradução Italo Eugênio Mauro para dois trechos dos Cantos IV e V do Paraíso de Dante n´ A Divina Comédia [iii]que adaptados me parecem a esse manjar que não se troca por outros bens. “Entre dois pratos iguais, atraentes e a igual distância, antes morreria de fome, um homem, de lhes pôr os dentes; e entre dois lobos não se moveria um cordeiro, temendo o duplo apuro, e, dois chacais, um cão estacaria. Por meu silêncio assim não me censuro, ante as dúvidas minhas colocado, nem me louvo por tê-lo mais seguro. Calava eu, mas, do meu afã, pintado tinha no rosto o semblante fiel, mais quente que se fora pronunciado. E fez Beatriz o que usara Daniel, Nabucodonosor livrando da ira que injustamente o tornara cruel. [...] “Do principal estás ora informado, mas, pois que a Igreja nisso dá dispensa, o que ao meu dito soa desencontrado, ainda é essencial à mesa a tua presença, porque o farto manjar que hás ingerido ajuda quer pra que seu ganho vença. Abre ora a mente pra o que te elucido, e o guarda, que não faz erudição, sem o reter, ter somente entendido. [...] “Pensa, leitor, se o que ora delineio não procedesse, quão te iria causar, por mais saber, angustioso anseio. ” NOTAS [i] ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28 - 34: Instinto de nacionalidade. (1ª ed. 1873). [ii] The Author as Plagiarist. The case of Machado e Assis (Center for Portuguese Sudies and Culture, University of Massachusetts Dartmouth, 2015). Link consultado em 07/10/17: https://www.academia.edu/26051439/The_Author_as_Plagiarist_-_The_Case_of_Machado_de_Assis [iii] ALIGHIERI, Dante. “A divina comédia: paraíso”. Tradução e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo; Ed. 34, 1998. Cantos IV e V, p. 31; 38 e 41.

No caminho de Siena (1): o Sagrado e os Campos de Castela

"Quando não estava de fato apreciando a Fonte Branda ou um monumento da bela histórica cidade de Sena, estava em presença da poesia do espanhol Antonio Machado ou das cartas da Doutora de Igreja Santa Catarina de Sena" [caption id="attachment_106799" align="aligncenter" width="620"] Cataria de Siena, no centro da imagem, retratada por Pierre Subleyras[/caption] Escrever sobre a viagem enquanto se percorre o caminho – esse o desafio do cronista. Ao longo de três semanas, passo por lugares que sempre desejei conhecer e no fundo de minha alma aparece uma pontinha de déjà-vu. Quando se prepara para a viagem, tem-se mais certo o que se vai encontrar pelo caminho, mas vem a realidade e nos faz cair do cavalo, como com Saulo de Tarso. Na Toscana, programamos nos deslocar daqui para ali, sem fixar-nos muito tempo em um lugar do destino escolhido, mas vem o Sobrenatural a me guiar e o hotel que minha esposa reservou e que ficava bem próximo ao Santuário de Santa Catarina de Sena deu-me o sinal para ficar mais em Siena. A diferença é que em lugar de prorrogar nossa permanência no hotel estabelecido num antigo convento (Alma Domus), conseguimos prorrogar a estada em um hotel fazenda, na pequena localidade de Montalbuccio. Portanto, em um dia, saímos de um edifício construído no ano 1300 para uma propriedade rural que, há 400 anos, pertence à mesma família que hoje administra o local como um aprazível hotel-fazenda, lugar por demais apropriado às leituras e meditações, sob o sol da Toscana. Desde a minha saída de Goiânia, venho folheando dois livrinhos extraordinários que ocuparam agora todo o tempo na fazenda. Quando não aproveitava a paisagem toscana, refugiava-me nos “Campos de Castela”; e quando não estava de fato apreciando a Fonte Branda ou um monumento da bela histórica cidade de Sena, estava em presença da poesia do espanhol Antonio Machado ou das cartas da Doutora de Igreja Santa Catarina de Sena. Viajo por terras toscanas, mentalmente alçando um voo “Por terras de Espanha” (em tradução de Sérgio Marinho [Caminhos, 2017]): “O homem destes campos que incendeia os pinhais e seu despojo aguarda como um troféu de guerra, antanho já raspara os negros azinhais, talhara já os robustos carvalhos da alta serra. Vê hoje os pobres filhos fugindo de seus lares, o temporal levar o limo de sua terra pelos sagrados rios até os largos mares, e em páramos malditos trabalha, sofre e erra. É filho de uma estirpe de rudes caminhantes, pastores que conduzem suas hordas de merinos à Estremadura fértil; rebanhos transumantes que mancha o pó e doura o sol pelos caminhos. (...) Pronto, dispara o coração deste cronista, originário da mesma “estirpe de rudes caminhantes” (de origem lusitana), voltado ao ano 1912, quando foi publicada a primeira edição de “Campos de Castilla” que, pasmem, teve que esperar mais de um século para ter uma boa tradução em nosso país – que se nos é dada por jovens editores de Goiânia e um tradutor goiano que vive em Porto Alegre (RS): o jovem Sérgio Marinho[i].  Uma preciosidade que me acompanha nesta viagem tem suas cortesias e suas mágicas de tradutor deste “livro regional, ainda que em hipótese alguma provinciano” – como ele mesmo adverte na Nota do Tradutor. Ocorre, pois, que por obra do Sobrenatural em Siena se unem as presenças literárias do ateu Antonio Machado e da mística católica Santa Catarina de Sena. Do “Machado republicano, ateu, anticlerical, inimigo das barbas apostólicas”  (conforme à descrição de Otto Maria Carpeaux) juntam-se as “gotas de sangue jacobino” (de Machado), ao “sangue do Senhor”, que marcou a vida de Catarina de Sena; juntas no coração do cronista a “angústia e o pessimismo terreno de Machado”, o visionarismo e a esperança febril da santa senense. [caption id="attachment_106800" align="alignleft" width="316"] Poeta espanhol Antonio Machado[/caption] No entanto, o autor dos “Provérbios e cantares”, do qual o de número XXIX tornou-se o mais famoso em nossa língua, tem qualquer coisa além do chão, um salto meditativo que à santa sempre moveu desde menina – “Caminhante, são teus passos/o caminho, e nada mais [...] Caminhante, náo há caminho,/somente esteiras no mar.” Aproximar os dois personagens históricos é um ato do absolutismo do cronista,  e por mais paradoxo que pareça ao leitor, é o execício que faço diante dos livros e escritores que tenho à mão. É assim que, caminhando pela Toscana, como o poeta castelhano o fazia em Castilha, eu também o faço: “deja campo libre a meditaciones y expressión de pensamientos filosóficos”, para usar a expressão de Jorge Campos na introdução à versão espanhola da antologia “Poemas, Antonio Machado” (1976). Pois é exatamente com este campo livre à imaginação e à meditação que me aproximo respeitosamente do ateu Machado e da mística Catarina de Sena. Esta que pela vez primeira conheci numa epígrafe do único romance escrito pelo católico Gustavo Corção – “Lições de abismo[ii] – em que é contada a história de um homem que se descobre com leucemis, em busca de si mesmo, diante da ameaça da morte. É, pois, o sangue que marca o livro e a vida de Catarina. O sangue neste caso é o do Salvador, pois que a mística católica se colocou diante de Deus, como a freirinha que o poeta encontra na estrada em seu caminhar pela sua Espanha amada – como encontramos Catarina, a esposa de Cristo: “Onde estamos? / A que estação todos vamos?/E essa freirinha, o que fita?/Tão bonita!/Tem essa expressão serena/e que à pena/traz esperança infinita!// E eu penso: És boa, pequena; porque deste os teus amores a Jesus; porque não queres/virar mãe de pecadores/Mas ao seres/maternal,/és bendita entre as mulheres,/ó mãezinha virginal.//Algo em teu rosto é divino/sob essas toucas de linho./Se nas faces/rosas amarelas trazes,/já foste rosada e, logo, em tua carne ardeu fogo;/ mas hoje, esposa da Cruz,/ já és luz...” A menina Catarina é feito essa freirinha, filha de gente humilde, semianalfabeta, mas com uma sabedoria infusa. A mística que juntou fé e ação e que se tornou doutora da Igreja não sabia o Latim, não sabia sequer escrever, mas ao ditar suas cartas, abalava cardeais, governantes e papas. E feito o poeta Machado, pleno de contradições em relação à fé e à crença, não se deixava guiar pelo mediano, santa, mas como a santa se sujeita aos contrastes da vida, como nos lembra Gustavo Corção: “(...) e de todos os contrastes [de Catarina de Sena], o mais vivo na alma da santa é sem dúvida aquele de que nos fala hoje o intróito da missa: Dilexisti justitiam et odisti iniquitatem[iii]. O pecado, para Catarina, não é coisa que se evite cautelosamente, como um poste pintado de fresco: é um objeto de ódio. Sentia-o fisicamente; e odiava-o fisicamente. Pela ciência do valor do sangue de Cristo, pelo amor desse sangue, que é o “leit-motif” principal de suas cartas, ela odiava o mal, como mulher, com a força de mulher que ama e que se bate por seu amor: ela odiava o mal com os dentes.” O poeta “cabeça meditadora” Antonio Machado descrê, duvidando, rastejando frente ao Sobrenatural com sua angústia “de índole especial” – como quer Carpeaux – que da dúvida mais anti-cristã cede à procura de Deus “siempre buscando a Dios entre la niebla”: “O Deus que todos levamos, o Deus que todos fazemos, o Deus que todos buscamos e que nunca encontraremos. Três deuses ou três pessoas de um só Deus verdadeiro” E logo abandonando “o coração blasfemo”, sente a ausência e canta a esperança, mesmo que sob a revolta de um deus Ibero que não é o de Catarina, mas é ainda vazio da alma do homem, ao caminhar em busca do Eterno, como em “Profissão de fé”: Deus não é o mar, está no mar, aflora como às águas o luar, ou aparece como uma branda vela mar afora; no mar é que desperta ou adormece. Criou os mares, mas do mar vem, como a nuvem e a tormenta; é o Criador e a criatura o faz; seu alento é a alma, e pela alma alenta. Hei de fazer-te, Deus, qual me fizeste, e para te dar a alma que me deste em mim te hei de criar. Que a caridade, o rio puro a fluir na eternidade, flua em meu coração. Seca, Senhor, a fonte turva, a fé sem o amor. E sobre o caminhar da pequena freira analfabeta que dava lições aos Cardeais da Igreja, a pedido do papa Gregório XI, Catarina não se desfaz da sua humanidade, mistério que confunde os historiadores e escandaliza os incrédulos. Mas é “na santidade, ao contrário, o que logo se vê, com fulgurante evidência, é a dilatação da alma e o alargamento dos extremos. A mansidão se vê acompanhada da coragem; a temperança de um santo como Bento Labre, que passa a vida inteira dizendo: pouco... pouco... , completa-se com um infinito desejo de posse; a misericórdia se abraça com um ardente sentimento de justiça. As virtudes, que no homem ainda sujeito às leis dos sentidos, ou mal libertado desse jugo, eram meras disposições facilmente abaláveis (faciles mobiles), e sem conexão orgânica, tornam-se, pela infusão da Caridade e pelo acréscimo dos dons, virtudes reais, forças verdadeiras, dificilmente abaláveis (difficiles mobiles) organicamente e harmoniosamente conexas. E, em lugar do tíbio e claudicante indivíduo que apenas consegue fazer algumas coisas boas, à custa de compromissos, demissões e pusilanimidades, vê-se então esta alma vivificada pela graça abrir as grandes asas das virtudes que nos pareciam opostas e paradoxais, erguer-se sem medo no largo vôo dos albatrozes”. [iv] E voltando ao nosso poeta para fechar essa croniqueta que já vai alongada por demais, é o que se vê nos humaníssimos poetas-santos João da Cruz e Teresa d’Ávila que aparecem nas meditações de “Provérbios e cantares – XX e XXI” de Antonio Machado assim: Teresa, ama de fogo; João da Cruz, espírito de chama, aqui faz muito frio, mestres, nossos coraçõezinhos de Jesus se apagam! Ontem eu seonhei que via a Deus e com Deus falava; e sonhei que Deus me ouvia... Por fim, sonhei que sonhava. Ao leitor desta croniqueta, findo prometendo voar por outros assuntos que aprofundem a compreensão deste mágico caminho de Sena, em que o sagrado e o profano se misturam, provendo sempre alimento para alma, mesmo que partindo de um crente e um que sustenta não crer em Deus, mas ambos meditadores que nos apontam para o Eterno. NOTAS [i] MACHADO, Antonio. Campos de Castela. Tradução e notas de Sérgio Marinho. Ensaio biográfico de Otto Maria Carpeaux. Goiânia: Caminhos, 2017. 250 p. [ii] CORÇÃO, Gustavo. Lições de abismo, 1956, Edit. Agir. [iii] No original em Latim no missário Romano, tradução livre: “E vós: amai a Justiça e odiai a iniquidade (o pecado).” [iv] Corção recomenda consultar L. H. Petitot O. P., “La Doctrine Ascetique et Mystique Integrale”; e também “Sainte Thérèse de Lisieux”, além de J. Maritain, “Science et Sagesse, Deuxième Partie” ( Eclaircissements sur la Philosophie Morale ) chap. II – G. Corção em artigo para o jornal O Globo, “Os paradoxos da santidade”.

Chuvas primaveris, o labrador João Fidelis e homenagem a Willis Haviland Carrier

Será possível trocar a estátua do Anhanguera pela estátua de um inventor americano?

Ursulino Leão: no cronista virtuoso, um homem em busca do Sagrado

Um dos escritores mais editados em Goiás nos últimos três anos, em quantidade e qualidade, é um nonagenário excepcional. Às vésperas de completar 93 anos, Ursulino Leão, mostra vitalidade e energia para lançar livros em sequência. [caption id="attachment_104719" align="aligncenter" width="620"] Escritores Ursulino Leão e Adalberto de Queiroz[/caption] Quando decidi escrever sobre Ursulino, procurei ficar circunscrito à carreira do escritor, do homem que tem uma obra e uma fortuna crítica que, se não ficou no limbo do silêncio nos primeiros anos, tampouco o merece nesta quadra da vida do nonagenário escritor. Portanto, aqui não me interessa focar a carreira exitosa e plena de virtudes do político e do jurista Ursulino Leão. O católico escritor, poeta e cronista é um homem de muitas virtudes e, na arte da escrita, mostrou a alta potência de quem produz em quantidade e qualidade. Este homem que exerceu diversos ofícios com grande maestria revelou, numa entrevista ao escritor Miguel Jorge, seu método de buscar a palavra vagarosamente, “como as trevas buscam a claridade, e a fome busca o alimento”. Inspirado em outro católico escritor de renome (o inglês Graham Greene), conclui ser o ato de escrever “uma forma de terapia”. Sabe-se como próprio da província fazer descer sobre as obras literárias um manto de silêncio, mas há também um nível de silêncio imposto que causa desconforto, constrangimento, quando sabemos que este se instaura por conta de uma atitude premeditada. Um pacto de silêncio é estabelecido em torno de um escritor ou de toda uma obra por razões as mais diversas, entre as quais a divergência ideológica entre analista e produtor da obra de arte. Ainda hoje cultivam-se, na província, os péssimos hábitos de estabelecer-se um rumor surdo (fofoca) que precede ao silêncio, prática daquilo que Unamuno aconselhou o escritor sério a distanciar-se: as “corjas literárias”. Melhor seria que as divergências saíssem da obscuridade em debate pacífico e se garantisse aos jovens escritores o direito de expressão – e, entre esses, o mais sagrado direito de produção literária – que pode ser considerado como verdadeiro sacerdócio, embora para alguns não passe de exibicionismo ou forma de diferenciação – principalmente em Goiás, onde os leitores são escassos e as tiragens de livros diminutas. Sobre essa espécie de pacto de silêncio em torno de um escritor,  Fabrício Tavares de Moraes, crítico, tradutor e doutor em Literatura diz que “há motivações ideológicas, sim, e não menos uma boa dose de inveja. Tomo sempre o exemplo de Knut Hamsun, que no início simpatizou com o nazismo. Sua obra é sensacional, e recebeu o Nobel. Há o caso de Cornélio Penna, um Faulkner brasileiro, foi esquecido. E lá em Portugal é celebrado; além de outro exemplo, Céline – [por causa] também de sua simpatia pelo nazismo, mas o curioso é que Heidegger e Paul de Man foram nazistas ou simpáticos e ainda hoje são exaltados e justificados. ” Em “Esquecidos & Superestimados” o professor e crítico Rodrigo Gurgel, dando continuação ao que fizera em “Muita retórica – pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha) ” elenca “autores esquecidos, sobranceados pelos que, injustamente, se tornaram famosos. Traídos pelas convenções estéticas, pelas panelinhas que controlam os cadernos culturais e pelos críticos obedientes a modismos, esses menosprezados cumprem, no entanto, digno papel: o de aguilhoar o establishment e comprovar que, andando na contramão, também é possível produzir boa literatura. Silentes, preenchendo as prateleiras dos sebos ou o canto úmido das bibliotecas, tais obras sussurram aos novos escritores: “Não receiem tomar emprestados meus acertos e melhores lições”. Deixemos claro que, de um modo mais amplo, Ursulino Leão não poderia (nem deverá!) ser listado nesse rol de escritores esquecidos, depreciados ou abandonados às estantes – por aqueles poucos que, em Goiás, adquirem livros e os leem. Meu ponto é que um escritor dessa grandeza merece recepção mais efusiva à sua obra do que os eflúvios dos coquetéis de lançamento; pois, é no mínimo desagradável que, livro após livro, tenha o escritor como retorno à sua produção só o silêncio por parte da massa de leitores, sem nenhuma avaliação crítica ou de resenhas literárias. A causa desse silêncio constrangedor sobre os escritores de nossa terra está mais para o pecado capital da inveja, nutrido pelo abafado ar provinciano de pouca oxigenação cultural de nossos meios literários. Ocorre que o mau hábito de silenciar-nos sobre a obra do Outro – o que testemunha negativamente a respeito da languidez do pensar a criação literária –, surge em Goiás, misturado a uma boa dose de cálculo maléfico, na espera de que diante do silêncio, o candidato a escritor (ou o repetente) não tome jamais as já minguadas vagas no “status quo” de Escritor e tampouco vagas no coração dos leitores – estes, sim, cada vez mais faltosos. Convenhamos que a fortuna crítica sobre a obra de Ursulino Leão não autoriza este (ou outro) crítico a dizer que sobre ele e sua obra tenhamos feito descer o velho capote do silêncio maldoso e calculista; nada me autoriza a pensar que há silêncio velado, porém, tudo ainda é pouco se dito sobre o que fez e a qualidade do que foi feito, em vista da estatura do escritor aqui focado. Em consequência deste hábito, podem ser contados muitos outros criadores sobre os quais o silêncio é ainda mais constrangedor. No âmbito da poesia, por exemplo, constrange o silêncio que paira sobre a representativa (em quantidade e qualidade) criação de vários poetas, entre os quais os mais gritantes casos são  os de Valdivino Braz, de Sônia Maria dos Santos e de Darcy França Denófrio, esta que, contrariamente a esse movimento denunciado, fez sempre o bom uso da crítica para divulgar a obra dos escritores goianos e, em especial, do amigo emigrado para o Rio de Janeiro, o professor Gilberto Mendonça Teles, entre outros estudos da maior importância para o conhecimento da nossa literatura entre os mais jovens. Fora da Academia, há pouco ou quase nada – no terreno crítico e de divulgação literária sobre Alaor Barbosa, José Décio Filho, Dilermando Vieira, sobre outro goiano (emigrado) Flávio Carneiro, Maria Lúcia Félix Bufáiçal e tantos outros de qualidade literária superior, mas que não se postam como superioridades engalanadas no desarranjado cenário da literatura produzida em Goiás. No arco de uma vida produtiva como a de Ursulino Leão, que de romancista (“Maya”, 1949) aos derradeiros livros de crônica e poesia – sobre os quais a imprensa apenas cumpriu (e mal) o papel de divulgar os eventos festivos de lançamento, nada mais se leu. Nenhuma crítica, nenhuma palavra – a mais faltosa sendo, principalmente a de reconhecido agradecimento a um cronista diário que brindou os leitores de O Popular por mais de 40 anos. Exceção Em 2010, a Academia Goiana de Letras (AGL), sob a presidência do médico-escritor Hélio Moreira, lançou uma nova edição crítica de “Maya”, organizada por Licínio Barbosa e Antonio José de Moura, com prefácio crítico de José Fernandes e posfácio da professora Moema de Castro e Silva Olival e diversos depoimentos dos pares de Ursulino na Academia. Embora padeça de falhas de produção, gralhas e erros de edição, o livro é um diamante para o cérebro dos jovens leitores da província que, somente com muita pesquisa e esforços, poderiam ter acesso à edição de “Maya”, feita pela Pongetti (1949) ou a 2ª. Edição de 1975 (feita pela Editora Oriente). Reli o romance com a visão da maturidade, tendo subido ainda mais admiração ao católico romancista do que quando o li, eu, ainda jovem em Anápolis. O estudo da professora Moema nos faz entender que, tendo o jovem Ursulino tomando a senda mais difícil de expressão literária, a trama romanesca realiza-se na pena do estreante porque optou “pela visão de sondagem psicológica, de maior densidade, como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna, Octavio de Faria, Cyro dos Anjos” – que é uma espécie do gênero romanesco mais propenso à “busca de conhecimento interior”. Num dado momento da carreira literária, já com a fama rondando a sua porta de cronista do dia-a-dia, em que angariou boa parte de seus leitores assíduos como este que gera linhas em louvor à pessoa humana e ao escritor nonagenário, Ursulino declara que o romance não deveria ser reescrito, mesmo sendo “livro de jovem, elaborado de um jato nas horas que antecediam o jantar...”, pois, para o escritor maduro qualquer interferência seria retirar do livro “o melhor dele: seu sabor de fruto de vez. Doce e acre como os dias que lhe dediquei. Doce e acre era também a minha alma naqueles tempos. Agora, que os tempos mudaram, como estaria ela”. Não tendo o dom de prospecção das almas, hoje cada vez mais raro, busco na releitura de “Maya” e na leitura de “Idílio na serra da da figura”, de “GYN: seleta de crônicas” e, principalmente, do sublime “Lírios do campo para Jesus de Nazaré” a expressão sempre elegante, a capacidade de ler nas dobras da convivência social, a expressão primeira de quem a gera – o ser Humano. Ursulino é antes e, principalmente, o cronista do humano e do sagrado, verticalizando o que há de sonho possível no mortal que lhe passa à frente como material de ficção. Na seleta de crônicas que leva o acrônimo de nossa cidade, na linguagem aeroportuária, há uma pequena obra-prima intitulada “Um burrico e meu (80º.) aniversário”, começa assim: “Dia 10 de setembro de 2004, eu estava andando na fazenda São João. A manhã tentou felicitar-me pelo transcurso dos meus 80 anos de idade. Mas não conseguiu oferecer-me senão a outra face daquela data: havia um mês que os bulcões da morte nos tinham arrebatado a Lena (os horizontes de minha velhice, desde então, possuem cores esmaecidas). “Com o espírito anuviado por tais contrastes, em vez de enveredar-me pela estrada de rodagem em que costumo realizar minhas caminhadas, pegara um esquecido trieiro de gado. “De repente ouvi os passos de equino em minha retaguarda. Supondo fosse a cavalgadura de um desconhecido, que me ultrapassaria no primeiro cotovelo que aparecesse no trajeto, não virei o rosto para ver o sujeito, nem me arredei da trilha para lhe dar passagem. “A curva surgiu e a situação não mudou. Então, bastante intrigado, volvi a cabeça para encarar paciencioso cavaleiro... “Era um burrinho, sem ninguém em cima dele. Queimado, com uma malha branca na testa, pernas rajadas e ares bíblicos. Tive a impressão de que já o conhecia...”                 “Seria um clone do jumentinho que o Cristo montava quando recebeu hosanas de ramos verdes nas ruas de Jerusalém? ...                    “Deixei a senda e parei. O bonito animal parou também, me fitou com seus grandes olhos e abanou as orelhas...                 “– Vamos, siga... “Ele não se moveu. “– Bem, se lhe apraz minha triste companhia marchemos... “Daí a pouco, enquanto procurava encontrar uma nesga de satisfação na caligem dos meus pesares, senti o quente bafejo do jovem muar em minhas costas. Certo de que meu simpático companheiro desejava estreitar nossas relações, escorei-me ao tronco de uma dadivosa árvore. Ele, me imitando, estacou: E assim prossegue a conversa com o burrico, até nos dar confessar o autor que o humilde animal lhe recuperara à memória vivências com a sua amada perdida (Lena) que lhe presenteara quatro décadas antes com um livrinho intitulado “Platero e Eu” (Juan Ramón Jimenez, Nobel de Literatura de 1956), e no qual apusera uma dedicatória afirmando que “gostara do Platero” – Platero, o burrico espanhol tem o dom de trazer das memórias fundas do octogenário de então, a mais doce lembrança do amor perdido. Ao final, Ursulino apõe ao dorso do animal o troféu da lembrança, destacando o burrico entre os animais das criações literárias – como a baleia de Melville, em Moby Dick, o peixe de Hemingway, em “O velho e o mar” e a cachorra Baleia do velho Graça em “Vidas secas”. Em 2016, em viagem de férias, ao fazer o giro pelas livrarias de São Petersburgo, tive a chance de encontrar o livrinho de Jimenez (Platero y yo) em edição bilingue (espanhol-russo) numa grande livraria às margens do famoso rio Neva, e, tocado pela sensibilidade de nosso cronista, o adquiri como quem acha uma relíquia e, assim o mantenho como troféu à admiração que tenho pelo cronista Ursulino. E mais: ainda arvorei-me em dar minha versão poética ao burrico, poema que dediquei ao cronista imortal de nossa terra. É ainda no reino animal de onde retira o Ursulino-contista material para uma outra pequena joia intitulada “Idílio na serra da figura”, que recomendo com entusiasmo. Espero que a história cause no leitor o encantamento que me causou o caso de Sereia e Tigre. Do enleio entre os animais, devem brotar na imaginação dos leitores sensíveis os sons da lamentação triste da perda – que parece humana, feito “pios de saudade profunda, como o canto da jaó chamando o parceiro, como o clamor de uma alma que acaba de receber a estocada de uma notícia cruel” – qualquer que seja desde que transcritos pela pena de um ser humano sensível e dono de estilo único entre os goianos escritores. Dos “Lírios do campo para Jesus de Nazaré”, resta-me no curto espaço desta crônica dizer-lhes: colham todos, pois que o livro é inteiro superior e diz respeito ao Sagrado no humano um livro que, nas palavras do próprio Ursulino, é “singela metáfora daquela braçada de lírios do campo que ofertei a Jesus de Nazaré, na álacre manhã da Fazenda São João em que decidi escrevê-lo”. São flores que fazem um bem enorme ao leitor, principalmente se o leitor é um fiel católico, porque “não são páginas produzidas na estufa do conhecimento” – afirma Ursulino; onde “não buscaram o adubo da beleza literária, mas receberam o sol do meu afeto, floresceram sob o efeito de chuvas da espontaneidade. Derivaram da humildade de minha velhice, como as flores silvestres vingam na aridez dos campos”. Os “Lírios...” tornaram-se aquela obra que animou o escritor já idoso a viajar a Jerusalém, malgrado os transtornos dos deslocamentos intercontinentais na sua idade, mas ao fazê-lo, ao fim e ao cabo da empreitada, arremata com um Deo gratias, declarando como o salmista: “Se porventura eu vier me esquecer de ti, Jerusalém, fique seca a mão com que toco a minha harpa. ” Ave, Ursulino! que Deus preserve sua mão e sua lira, que suas virtudes pessoais e literárias sejam para a glória do Criador – é o que lhe deseja este cronista. Feliz aniversário, dr. Ursulino!

Previdência, política e o velho engodo

Se até mesmo Deus (para os cristãos e budistas) também descansou após o trabalho de criar o mundo, tendo exercido, segundo escrituras e pergaminhos sagrados, o shâbath, também eu, simples e errante humano mortal quero, se estiver vivo, usufruir do meu descanso, da minha aposentadoria

Pra não dizer que não falei da corrupção

[caption id="attachment_89145" align="alignleft" width="620"] "Justiça combatendo a Injustiça” (1737), pintura de Jean-Marc Nattier[/caption] Leonardo Teixeira Especial para o Jornal Opção Articula-se pelas redes sociais um movimento aparentemente apartidário para protestar nas ruas brevemente. Seria um déjà vu (na tríade “Fora Collor, Fora Dil­ma, Fora Temer”), como se algum dos políticos engravatados fosse compadecer da situação e abrir mão (e a carteira) das suas regalias no reino. A exemplo dos 30 mi­lhões anuais (em média), quantia gasta com um único político. Ou ainda mais esses exemplos: a aposentadoria rápida, os as­sessores nepotistas, as verbas indenizatórias, os planos médicos, os litros diários de gasolina, as passagens aéreas ou a imunidade parlamentar. Reza a lenda caótica que santo de casa não faz milagre. Mas o texto de hoje não tinha a pretensão ácida no mesmo tom dos dedos apontados – tão rijos e castos –, rumando alvos distantes, diretamente nos erros alheios; ou da velha verve que se diz julgadora superior da errante raça humana. Atiraram a primeira pedra e um turbilhão de achincalhes é metralhado em plena era digital sem fakes ou melhores looks. Nem a rebelião de Luke Skywalker, ou suas palavras sobre a força podem amenizar os desvios de conduta humana e seus gostos pelo lado negro e bizarro da coisa toda. Se até mesmo a nossa ficção parte de uma premissa mentirosa (que o diga qualquer ator teatral), nosso entretenimento também prioriza o riso grotesco. Cito como exemplo o apreço pelos vídeos idiotas do WhatsApp, as pegadinhas e cacetadas e demais similares. Quan­do o show de um mágico está ficando sem graça, ele apela para a guilhotina de braço. A ameaça de decepar o braço alheio craveja os olhos de suspense e emoção. To­dos os humanos são bipartidos à ma­neira yin-yang de ser. Essa é uma das poucas regras sem exceção. Eis o lado malvado, sem ser favorito, que brota quando ninguém está vendo. O jeitinho malandro de levar vantagem ultrapassa limites racionais. Sendo capaz, inclusive, de estar presente no momento de uma catástrofe ou grave acidente, quando mais é necessária a ajuda alheia. Quantos relatos não há sobre algum ser humano iluminado (pelas chamas infernais) que furta a mala, aliança, carteira, celular, óculos e roupas, em vez de prestar socorro? Por isso, ante um tombamento de caminhões, as pessoas frequentemente ameaçam ou machucam os motoristas e levam as cargas derramadas. Há poucos dias mesmo, vi a notícia de que dezenas de pessoas pararam os seus carros e os encheram com frascos de óleo de cozinha (que seriam distribuídos nos supermercados) que estavam dentro de um caminhão tombado. Não imagine que tais saques são novidades modernas. No museu de Turim há um papiro do reinado de Ramsés V (1145 a.C.) que menciona os roubos, saques e greves. Sem falar do antecessor Ramsés IV, cuja corrupção “endêmica” no governo do antigo Egito foi mencionada em um papiro (Harris) de mais de 40 metros de comprimento. Este sujeito saqueador é o mes­mo indivíduo que critica a corrupção brasileira, fala mal dos outros, dos partidos, dos bandidos. Tem uma noção tosca sobre errinhos e er­rões, pecadinhos e pecadões. Não se pode desviar dinheiro público, des­viar verbas, superfaturar obras, abusar de propinas robustas, levar van­tagens ilícitas, mas muitos acham que é normal falsificar carteirinha de estudante, furtar e burlar sinal de TV a cabo, comprar e vender produtos falsificados, furar filas, colar e passar cola nas provas (ou copiar trabalhos, textos e artigos da internet), bater ponto e assinar lista de presença para colegas de trabalho ou de estudo, apresentar atestados médicos falsos, inventar uma justificativa (as mentiras tidas como socialmente necessárias), vender ou comprar o voto, estacionar em vagas especiais (ainda que seja rapidinho), falsificar assinaturas, declarar informações falsas no imposto de renda (omitir ou comprar notas), receber troco a mais e não devolver, não dar nota fiscal (ou o valor correto), desrespeitar lugares reservados em ônibus, cinema, teatro, estacionamento etc, levar para casa enfeites de festa que não são cortesia, tentar subornar o policial ou guarda de trânsito, burlar normas de trânsito (sinais, parar em filas duplas, andar pelo acostamento ou em pistas reservadas a ônibus, e “gatos” por exemplo), desrespeitar normas trabalhistas, pagar multas e continuar desobedecendo a lei, jogar lixo pela janela ou nas ruas, receber auxílios sem necessidade (moradia, deslocamento, verbas de gabinete, despesas extras) etc. Ufa! Que textão! Você ainda está aí? Esse é o mesmo ser humano que se acha no direito de queimar um índio, um menor abandonado, um mendigo, ou qualquer outra pessoa que esteja numa pior, na sarjeta do mundo, ou sofrendo os preconceitos de uma minoria. Uns se diferenciam dos outros pelas escolhas diárias, pelos limites comportamentais etc. Mas é a mesma criatura humana, benevolente quando quer, mas diabólica ao extremo, frequentemente encontrado numa situação extremista ou terrorista. É o mes­mo que sai bradando o seu legítimo protesto, com cartazes e tintas típicas da bandeira, sem conhecer a própria hipocrisia, como um peixe que nada pelo rio sem saber que está na água... No livro “Raízes do Brasil” (1936), Sérgio Buarque Holanda cita nossos ancestrais e colonizadores europeus imersos nas imoralidades históricas e isso se “refletiria nas suas relações com outros indivíduos, instituições, leis e a política”. Curioso o fato de Platão, em sua “utopia republicana” ter falado que “a justiça e a honestidade apenas acontecerão na política quando os governantes forem amantes da sabedoria (filósofos), ou os amantes da sabedoria assumirem o governo”. Depois, em seu livro “As Leis”, ele já não confiava mais na incorruptibilidade de um governante sábio. Isso no mundo onde os filósofos sofistas foram acusados de corruptores da linguagem. Aristó­teles escreveu sobre corrupção no livro “A Geração e a Cor­ru­pção”, apesar de cunho mais metafísico e biológico. Em tese, todos os seres naturais possuiriam uma su­bstância e uma finalidade. Quando a substância de algum ser, ou sua finalidade, se modifica, este ser se corrompe, degenera, se perverte. A morte é a corrupção da vida, e tudo se corrompe quando não cumpre sua finalidade, ou a deturpa. Moral da história: corrupção é um problema ético, pessoal e cultural. Qualquer reflexo político é mero esparramar de fragmentos humanos. Podemos ao menos frear pequenos impulsos diante do que chamamos de corrupções menores. Se colocar verdadeiramente na frente de outra pessoa e pensar algo como “se fosse comigo, eu gostaria disso?” Era pra ser um texto mais ameno, talvez algo sobre o formato tosco e irregular de um brócolis, uma miniárvore antes de ser digerida. Antes que a música, de apenas dois acordes, símbolo das manifestações (“Caminhando e cantando...”) — seja amplificada a plenos e múltiplos pulmões — sigam nas várias direções do país, quem sabe possamos refletir como melhorar nossas próximas ações e condutas? Até a próxima página! Leonardo Teixeira é escritor

A alma das ruas

Brasigóis Felício Especial para o Jornal Opção O filósofo Gaston Bachelard escreveu sobre a poética do espaço. Na obra ele enfoca a casa como o símbolo da caverna – o lugar onde o homem busca a paz, o conforto e a segurança. Com muito menos engenho e arte, espero um dia ter talento para escrever sobre a poética das ruas. Até porque, como João do Rio, entendo que as ruas têm alma, emoções e sentimentos, como as pessoas que nelas vivem, ou que por elas transitam. Há ruas mal encaradas, outras são enxeridas, metidas a besta, por estarem, como seus habitantes, bem de vida; outras são eternamente esquecidas pelos sucessivos desgovernos, e são tristinhas, têm caras delambidas, como as mocinhas, filhas da lama e da poeira, que se enfeitam, e saem, nas tardes de domingo, sem esperança alguma de encontrar, na primeira esquina, sobre um cavalo branco, vestindo roupa de Elvis Presley, o príncipe encantado, que seria o grande amor de suas vidas. Sim, há ruas de bom caráter e de costumes sem jaça e sem vícios; outras há, despudoradas, afeitas aos costumes não recomendáveis estando o vivente no seio da sagrada família. Assim como há chinelas e pessoas tão humildes que jamais irão a salões de festas, há ruas que jamais receberão governantes, a não ser quando candidatos – pois neste período esquadrinham e infernizam a cidade inteira. Nas cidades interioranas que não se breganejaram, e não se meteram a bestas, há a rua de baixo e a rua de cima, a rua do córrego, e a rua do morro, a rua da igreja e a rua das casas de luz vermelha, onde vivem, tristemente, as mulheres ditas de vida airada e alegre. Para João do Rio “a rua nasce, como o homem, do soluço e do espasmo. Há suor humano na argamassa de seu calçamento. A rua sente nos nervos essa miséria da criação e, por isso, é mais igualitária, a mais socialista, e a mais niveladora dentre as obras humanas... há algo mais enternecedor do que o princípio de uma rua? A princípio capim, depois um braço a ligar duas artérias. Percorre-o, sem pensar, meia dúzia de criaturas. Um dia cercam à beira um lote de terreno. Surgem em seguida os alicerces de uma casa. Depois de outra e mais outra. Três ou quatro habitantes proclamam a sua salubridade e o seu sossego. Os vendedores ambulantes entram por ali como um terreno novo a conquistar. Aparece a primeira reclamação no jornal contra a lama ou o capim. É o batismo. As notas policiais contam que os gatunos deram em cima de seus quintais. É a estréia na celebridade. Oh! Sim, há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, esnobes, ruas aristocráticas, ruas covardes, que ficam sem um pingo de sangue...”. Pensando em tudo isto o saudoso poeta Adory Otoniel da Cunha escreveu este soneto, a que intitulou “bairros do povo”. “Vila Nova, Nova Vila, Botafogo, macambira/ Cascalho, Coréia e Fama/ Vila Operária e Campinas/ Filhos pobres, renegados/ do ventre desta Goiânia/ que só não é mãe bastarda/ porque se veste de asfalto, e se enfeita/ com a grinalda cheirosa/ de seus mil flamboyants./ Vila Nova, Nova Vila, Botafogo, Macambira/ Cascalho, Coréia e Fama/ Vila Operária e Campinas./ Ouvi-me, bairros do povo/ onde há poeira seca/ e muita lama no inverno/ e grilos cantando sambas/aos casais de namorados/ à luz da luz goiana/ que outra luz vós não tendes./ Meus bairros proletários,/ daí tempo ao tempo/ que em breve/ vosso abandono será vingado/”. Brasigóis Felício é escritor e jornalista. Ocupa a cadeira 25 da Academia Goiana de Letras.

Cub Swanson e Doo Ho Choi “acordam” o sonolento UFC e fazem talvez a luta do ano

O americano e o sul-coreano travaram uma luta implacável e passaram a impressão de que sairiam do octógono nocauteados

O olhar do eu-herói

Apesar de nosso desejo de que surja um atleta olímpico que simbolize a inexplicável vitória da vida, o que há no humano é o desejo surdo de aparecer, como quem sonha. Como quem morde uma medalha [caption id="attachment_72993" align="alignnone" width="620"]Rafaela Silva, medalha de ouro no judô, na Olimpíada Rio 2016 | Foto: Reprodução/AFP Rafaela Silva, medalha de ouro no judô, na Olimpíada Rio 2016 | Foto: Reprodução/AFP[/caption] Keyla Vale Especial para o Jornal Opção Para os olhares do mundo: os ecos da vida. E luta, roda, gira, luta, roda e gira... Luta e sorri! Gira e ganha! A vitória! Só sai correndo e esquece o outro... Você consegue? Meu herói não sorri muito e, sob os olhares dos outros, os meus me perguntam: “Mas o outro não existe?” E eu, no meu consultório, sentada na minha poltrona de sonhos-vida e de espera-trabalho, pergunto: E existe? No movimento, na luta-diária-da-vida, brincamos de fazer existir quem a gente quer! Pois eu escrevo e eu vejo a partir de minhas brincadeiras e de meus sonhos... Se ganhou, não foi porque lutou! Mas foi porque sonhou. E o outro que se sonha é o outro do meu desejo – desejo de luta –, esse que ganha e esse que me é, desde sempre... Já afirma Bion, em "Uma memória do futuro – Sonho", de 1989: “A evidência ‘científica’ poderia me convencer de que as pessoas existem; no outro extremo, existem personagens de ficção, das quais com certeza poderia ser dito que não existem. Existem ‘homens espertos’ que, confrontados com uma obra de arte, podem ver que ela é genuína e que vale muito dinheiro, mas que não percebem aquilo que o artista revelou. O erudito poder ver que uma descrição é de Freud ou de Melanie Klein, mas permanecer cego para a coisa descrita”. E a minha coisa descrita é: quem é que grita? Quem joga hoje? Quem luta hoje? E esses que nadam, nadam para onde? E se finalizar, aqui e agora, o que será que te quis dizer? Apesar de todas as certidões e de toda a certeza imposta pela concretude, e pelo meu desejo de que surja algo que explique incondicionalmente a inexplicável vitória da vida, a coisa descrita é o desejo surdo de aparecer, como quem sonha, como quem realiza e morde uma medalha! E eu me resgato: depois da conversa sem sentido, do sorriso escorrido, da metáfora não compreendida, da psicanálise que sonha, dos meus dois metros de fio que me estica a vida... e do olhar do meu eu-herói. Keyla Vale é psicanalista, formada pelo Grupo de Estudos Psicanalíticos de Goiânia – Sociedade de Psicanálise de Brasília, IPA – International Psychoanalytical Association.

Muito além do judô

Uma história de paixão à primeira vista. Uma história que é o próprio edifício da existência, erguido a despeito das tempestades e a despeito da mesquinharia de um povo. Rafaela Silva e o seu “cala a boca” ao Brasil coxinha. Ou uma história de amor

Casamento por amor

[caption id="attachment_70727" align="alignright" width="350"]Casamento, 1968. Marysia Portinari (Brasil, 1937) Casamento, 1968. Marysia Portinari (Brasil, 1937)[/caption] — Que xodó, o de sua prima com o marido, depois de tantos anos casados – comentei com Silvio, meu vizinho de fazenda. — Combinam muito, mas se você soubesse como começou esse casamento... – respondeu ele, com um risinho de canto de boca. Voltávamos da casa do Edson e da Rita, prima do Silvio. Sabendo que eu estava comprando uns bezerros para recria, ele se ofereceu para ir comigo à casa da prima, ali mesmo no município de Ivolândia, ver os animais que o marido estava, por coincidência, vendendo. Encontrei um casal simpático: ela, uma mocetona bonita, quase nos trinta anos, dessas que encontramos muitas vezes pelo interior de Goiás, e nos enfeitam os olhos: apesar de poucos cuidados com a beleza, vendem saúde, exibem um rosto de traços perfeitos e um corpo de curvas muito harmoniosas, melhores mesmo que as conquistadas em várias horas diárias nas academias de ginástica. E educada, risonha, cuidadosa com os filhos, uma bonita garotinha de uns 10 anos, envolvida naquela hora com seus cadernos de escola, e dois irmãos menores. Ele, perto dos quarenta, conversa fácil e riso solto, procurando ser agradável com a visita e possível comprador. — Faz um cafezinho, meu bem, enquanto apartamos os bezerros – disse, quando saíamos para o curral. — É pra já, meu amor – foi a resposta. Negócio fechado, dispensado o convite para o almoço, o casal nos acompanhou até a camionete, ela dependurada no braço do marido, a quem prodigalizava carinhos. Foi já no carro que fiz o comentário, respondido por Silvio com aquela ponta de ironia. — Não faz mistério, Silvio, conta logo – pediu minha curiosidade, já se levantando espicaçada. — Vou contar. E contou, imitando a linguagem cabocla do tio capiau, ele que se orgulha de seu português e do diploma de advogado na parede do escritório em Iporá: — Foi há uns 10 ou 12 anos. O Edson, que tinha uns 20 e poucos anos, e é filho único, perdeu pai e mãe num desastre de carro na estrada para Goiânia. Herdou essa fazenda, toda formadinha em boas pastagens, curralama pronta, muita água, um brinco. E cheia de gado nelore. Ainda por cima herdou um posto de gasolina em Iporá, com boa freguesia. Pensou que estava rico pro resto da vida, largou a faculdade em Goiânia e ficou por aqui, na região, pelas festas, pelas exposições pecuárias, bebendo suas pingas e só na boa vida. Namoradas muitas, bem-apessoado que era e é, como você viu. A fazenda vizinha à dele era de meu tio Isac, falecido no ano passado e que tinha dois filhos: a Ritinha, que você conheceu, e o Zé Afonso, mais velho, que hoje cuida da fazenda, moço trabalhador e que nunca deu desgosto aos pais. A Ritinha tinha na época uns 18 anos e era a coisa mais bonita que você pode imaginar. Se levada para São Paulo e tomado um banho de loja e outro de salão de beleza, podia desbancar muita modelo que hoje desfila em passarela internacional. Iluminava qualquer lugar em que chegasse. Além disso, era inteligente, estudiosa, apegada aos pais. O Edson começou a arrastar a asa para ela e iniciaram um namorico. Bom de conversa ele era, mas não sei como, ela que até não era boba, foi além da conta nalgum encontro em beira de córrego e, tempos depois, comunicou a ele que tinha uns dois meses que o “chico” não vinha. Desconfiava que estava prenhe. O que fazer? Edson não pensou duas vezes. Não ia perder a boa vida que tinha. Des­con­versou e sumiu da região. Transferiu suas festanças para Goiânia, e só aparecia na fazenda para algum acerto rápido com o gerente. Até a Iporá passou a ir pouco. Mas foi numa dessas idas rápidas à fazenda que aconteceu. Por alguma arte ou treta, o Isac ficou sabendo da ida. Ou estava à espreita. O fato é que, na volta, ao chegar no mata-burros da divisa, Edson encontrou um tronco atravessado na estrada. Desceu do carro para tirá-lo, e foi quando saíram da mata, qual três assombrações: na frente a Ritinha, já redondinha de uma gravidez de uns seis meses; depois o irmão, Zé Afonso, em cuja cintura brilhava um chimite 32 niquelado, cabo de madrepérola; e atrás, o pai, o velho Isac, com um facão desembainhado na mão. Foi um Edson paralisado de medo que respondeu com um gaguejo o cumprimento do Isac: — Antão pois, seu Édio. Como vai vosmicê, qui anda sumido dessas banda? Ignorando a resposta tartamudeada, o velho prosseguiu, en­quanto ninguém mais dava um pio: — É bão nóis topá todo mundo arreunido. Tem uma trama de famía pra nóis resumí. E inté qui num tá dificir não. Cum duas cunversa nóis arresume: antão seu Édio, aqui a Ritinha, minha fia, feiz procê uma vontade e agora tá buchuda, cuma ocê tá veno. Ô tá ruim das vista e num tá veno? E desconhecendo o gaguejo afirmativo de um Edson com os cabelos em pé: — Pra mode qui nóis só arresume esse assunto si nóis ingualá. A Ritinha feiz a vontade de vosmicê. Agora vosmicê vai fazê a vontade aqui do pai dela. Mais pode si quizé tomém fazê a vontade ali do irmão dela. Mêma coisa. Ocê qui sabe. Ocê inscói i nós arrespeita sua inscôia. Pra mode ocê inscoiê, vou falá as vontade: a minha é vê ocês casado, e ocê tratano bem minha fia; a vontade do Zé Afonso aqui, meu fio, irmão dela, é dá seis tiro na sua cara agorinha mêmo. O revórve ele trôxe ele azeitadim pra torá o pé dos seis cartucho sem mascá ninhum. Ocê qui arresorve. Uma das vontade nóis tem qui sastifazê. Um pé de vento com redemoinho veio deixar o Edson ainda mais apavorado, lembrando o capeta que falam vir dentro dele. Ele já tinha feito a escolha; só que estava mudo. Nem gaguejar mais conseguia. Seu olhar saltava dos olhos injetados de sangue do Zé Afonso para o revólver na sua cintura, e daí para o facão na mão do Isac ou, num vislumbre, para a fisionomia da Ritinha, que parecia estranhamente calma. Sexto sentido feminino? — Nóis tá cum pressa, seu Édio. O qui vosmicê arresorve? – finalizou o Isac. — O se-senhor po-pode marcar o casamento, Se-seu Isac – foi tudo que o Edson conseguiu soletrar, antes que fosse tarde. — Já tá marcado. É agora mêmo. Nóis vai alí no padre Quirino acabá cum essa trama – foi a pronta resposta do Isac. Essa a história, suspirou o Silvio. Hoje estão aí, casados, vivem bem, três filhos que o velho Isac adorava, e o Zé Afonso é sócio do Edson nesse gado que você comprou, e em outros. Só pude arrematar: — É, Deus escreve mesmo certo por linhas tortas.

A cachoeira

[caption id="attachment_70239" align="alignright" width="400"]Reprodução Reprodução[/caption] Ao poeta e cronista Luiz de Aquino Adalberto de Queiroz Das idas a Corumbá de Goiás, posso lembrar-me com alegria. A minha memória ainda guarda um destes passeios, como um dia ainda envolto na neblina do tempo, descendo como um vaporzinho sobre a alma plena de alegria, como o café da tarde de hoje faz subir a razão em sua fumaça alçada da xícara como o gênio da lâmpada. Para o menino que eu fui, fazia calor, mas a lembrança de hoje tem algo da friagem dos junhos cinquentões. A tarde de hoje talvez fosse azul, como no poema lido já adulto, em outra circunstância, tateando a cidade grande como a evitar que o corpo deixasse a alma se recolher ao covil da falta de alegria. O ondeado do verdolengo das matas em torno ao salto d'água logo se impôs ao olhar do menino como um desafio. Hoje, a onda fraca dos pingos d'água ricocheteia de uma chuveirada quentinha. Tremia por dentro, naquela viagem (quando viagem era ir de Anápolis ao Salto de Corumbá) — tudo por conta de uma conversa, no caminho. Haveria lá, diziam os grandes, uma prova de resistência e só alguns de nós conseguiria subir ao mais alto da cachoeira; na verdade e tecnicamente, considerado apenas um “salto”: o Salto de Corumbá. Eu, que sempre fui um medroso renitente, enxerguei logo o gigante negro e fantasiei a minha impossibilidade de realizar a subida; mentalizei o horror que seria para todos os demais vitoriosos e a chacota em que me tornaria diante — principalmente, a das meninas da caravana. Chegamos e nos despimos. Pedi à minha irmã para me manter com a camiseta. Autorizado, senti a alegria da decisão, quando os mosquitos se esparramavam em meio à massa de meninos e meninas do convescote, como urubus diante de carniça nova. Estávamos todos mais ou menos certos de que haveria provas difíceis pelos sermões antecipados, que nos pregaram antes da aventura. Só não havíamos nos afeito às precauções naturais dos pequenos habitantes da savana goiana — os menores que mais incomodam, aprenderia mais tarde também. Despidos braços e pernas e cabeças ao sol, serpenteamos em meio às árvores numa subida que parecia impossível de se completar. A penitência parecia maior porque nós, os pequenos; íamos ao rabo da fila indiana e sempre sobrava uma cipoada de um mais atrevido que segurava o galho até ao exato minuto da nossa passada... e seguia sorrindo para alternar-se com outro gaiato que abriria caminho à meninada. Por dentro de mim, já havia tantas reclamações quanto arranhões no rosto. O que me salvou foi aquela camiseta que, embora puída, salvou-me de mais uma cicatriz entre as sete adquiridas à peine para tornar-me o homem que escreve esta croniqueta. Finalmente, chegamos ao topo. Tendo obtido o êxito que os grandes esperavam ou desejavam que eu não conseguisse, senti-me um completo mateiro em meio aos maiorais. Deu-se, no entanto, que não estava a missão terminada. Lá do alto, começaram os graúdos a escorregar pelo mato, descendo o longo declive como se tivesse cada qual uma prancha sob seu corpo. — Valha-me, deus — pensei. Nem tempo de uma prece tive quando me senti empurrado ladeira abaixo. Aos poucos, venci o barranco e a camiseta velha parecia um trapo pronto para virar pano-de-chão, quando a água fria do rio Corumbá me gelou as carnes e o espírito. Que alívio! Nunca mais me esqueço de que um salto não é uma cachoeira e que mosquitos não gostam de certas horas do dia à flor-d'água. Ali, fiquei tiritando calado e pensando: “Que despautério essa espécie de piquenique, não fosse a beleza do que eu via daquela mirada especial: de baixo para cima era compensador” — até mesmo para os arranhões que levaria comigo semana adentro. Deram-nos um pão com salame e uma caneca de suco. Foi tudo que se salvou daquela tarde, mas nem por isso o café que me aquece nesta tarde de julho deixa a alma atrelada ao corpo — como a presa de um covil. Sorrio por dentro, mangando do menino medroso que visitou o Salto de Corumbá pela vez primeira, sabendo que dele não puderam maldar os mais crescidos.

Fim da espera, o mar está aí

[caption id="attachment_70076" align="alignnone" width="620"]Divulgação Capa do álbum "O Mesmo Mar Que Nega a Terra Cede à Sua Calma", de Bruna Mendez, lançado na terça-feira, 5 de julho | Foto: Divulgação[/caption] Yago Rodrigues Alvim Não sai dos foninhos. Play e replay. Terça-feira, um post no Facebook e é sim um dia excelente para ser goiano, por ver o nosso som se esvair janelas afora. Veio, assim, silencioso já duma espera que mais parecia infinita. Sabe aqueles amores, “malditos, malditos”, eu mal-vos-digo, que quebram as eternas horas aflitas a fim de saber onde, quando, saber se está a fim, e nada. Daqueles feitos de Ariadne, corda e mais corda. Envolve-te em fio fino, feito grão em grão – saída de fim de mês, álcool bebericado, coisa chorada. Não. Para, nada disso. A guria ia pestanejando a vontade de abrir a janela e ver o mar fazia tempo, já estava suada do sol rachado dum sertão que se estende hoje: infinitos universais. A gente já sabia que vinha, ora outra rezava. Prece longa, “dá logo Santo Antônio às avessas, já é julho”. Cadê música pra casório despedaçado? Coração retalhado, retaliado. Cadê injúria qualquer de terça-feira modorrenta? Dos dias brancos, coisa sem graça, crônica embrulhado em fruta apodrecida. Cadê, “meu bem”? Esperava desde “Sem Você” que já arranhava a casa do corpo por dentro, desde muito antes. Uns três, quatro anos antes. Música de amor já findo, nem dor ressentida e nada, nada. Nada mais. Até bom dia, já rolava em baladas por aí. E veio ela, como prometia “Pensei/Qual a graça de viver sem/Se amarrar em alguém/Sem saber/Pra onde vai/E quando vem/Se você vem” ela, Bruna Mendez. Daqui mesmo, goiana. A pauta era só para avisar que ela veio. Que voltou. E voltou com o mar nos ombros. Sabia, não? “O Mesmo Mar que Nega a Terra Cede à sua Calma”. Vai dizer se é bom ou não, das sutilezas musicais, do bê-a-bá, sei lá o quê. Crítica em estampa refinada. Tem sim, muito a dizer ainda. Mas hoje, tiro os sapatos para ouvir. Um dia, volto aí, com ela entremeada, entrevista já marcada. Por hoje, só o convite: Aceita uma xícara de mar? Aceito Bruna Mendez.