O americano e o sul-coreano travaram uma luta implacável e passaram a impressão de que sairiam do octógono nocauteados

Doo Ho Choi (deitado), sul-coreano, e Cub Swanson (sentado): dois guerreiros que não deixaram os aficionados de lutas de MMA dormirem
Doo Ho Choi (deitado), sul-coreano, e Cub Swanson (sentado), americano: dois guerreiros que não deixaram os aficionados de lutas de MMA dormirem

O boxe é a sétima arte esquecida dos canais de televisão do Brasil. Lutas espetaculares são olvidadas ou são exibidas sem qualquer alarde. Na falta do boxe, resta o socorro das lutas “romanas” do (ou seria da?) MMA. O problema é que as lutas do UFC, articuladas por Joe Silva e Dana White, estão sonolentas. Conor McGregor, personagem de Flann O’Brien ou de James Joyce que escapou da literatura para o octógono, é um dos poucos que brilham nas arenas. Suas lutas são espetaculares, porque são mais do que lutas — são artes, uma mistura das ações de Caliban (o mal, por assim dizer), Ariel (o bem, digamos) e Próspero (o mal e o bem juntos, quem sabe). Aos 28 anos, o irlandês chama a atenção, não deixa espectadores e telespectadores indiferentes. É uma estrela de primeira grandeza. Um lutador refinado e, quando quer, cirúrgico. É muito difícil, com peso igual, encontrar um lutador para derrotá-lo. Sua língua é tão amolada quanto era a de Muhammad Ali, Cassius Clay, a estelar figura do boxe americano. Ele começa a vencer seus adversários fora do octógono. Quando entra na arena, depois da vitória fora dela, encontra pela frente um adversário mais ou menos derrotado, em geral intimidado. José Aldo, guerreiro dos mais notáveis, entrou “nocauteado” para a luta contra McGregor. Parecia Júnior Cigano ante Cain Velasquez.

O sono e A Tempestade

No sábado, 10, hesitando entre dormir, ler “A Tempestade” (Editora L&PM, 116 páginas), de Shakespeare, na ótima tradução de Beatriz Viégas-Faria, ou ver as lutas de MMA, algumas amigas íntimas de Morfeu, acabei dormindo e acordando. Dormindo, ouvi, ou pensei ouvir, Caliban dizendo para a bela Miranda, filha de Próspero: “A senhorita me ensinou sua língua, e o que ganhei com isso foi que aprendi a praguejar” (McGregor ecoa, de certo modo, Caliban). Aí, de repente, ouvi, ou pensei ouvir, Ariel (um espírito) me tocando: “Acorde, veja a luta dos pesos-pena Cub Swanson e Doo Ho Choi. Será a luta do ano”. Acordei, mas quem estava ao meu lado, bravíssima, era a bela Candice, minha mulher, convocando-me, manu militari, para dormir na cama, e não no sofá, de onde eu estava quase caindo. Sonado, eu disse, citando Gonçalo, um dos personagens do bem de “A Tempestade”: “Quem hospeda todos os pesares que lhe aparecem, o que ganha esse anfitrião é… uma dor no coração. (…) A culpa é muito poderosa, como veneno que, inoculado para agir muito tempo depois, agora começa a comer-lhes o fígado”. Candice não quis conversa: “Papo furado, você está delirando; venha dormir”. Aí, agora acordado, pactuei com a chefa: “Só mais uma lutinha. Ariel me disse que a luta de Cub Swanson e Doo Ho Choi será do balacobaco”. Mesmo avaliando que eu estava ficando doido, a jovem acedeu: “Tudo bem; só a luta do Cubo e do Choio”.

TORONTO, CANADA - DECEMBER 10: (R-L) Cub Swanson punches Dooho Choi of South Korea in their featherweight bout during the UFC 206 event inside the Air Canada Centre on December 10, 2016 in Toronto, Ontario, Canada. (Photo by Jeff Bottari/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images)
Cub Swanson acerta golpe em Doo Ho Choi | Foto: Jeff Bottari/Zuffa LLC/Zuffa LLC via Getty Images)

Cub Swanson versus Do Ho Choi

Postei-me à frente da televisão (ou seria televisor, como se dizia nos tempos de antanho?), em posição ereta, não mais deitado, para convencer Candice de que não iria dormir na sala. Ela postou-se ao meu lado, abriu “A Tempestade” e leu um trecho que eu havia grifado: “A ação mostra-se mais rara na virtude que na vingança”. Trata-se de uma fala de Próspero, muito boa por sinal. É que Ariel, não humano, o convenceu de que a vingança não é lá essas coisas. Mas vamos a Cub Swanson e a Doo Ho Choi, pois nem eu mesmo estou mais tolerando esta crônica enrolada.

Cub Swanson é um grande lutador, dos que lutam o tempo inteiro, batendo e apanhando muito. Não é dos lutadores táticos, que adoram enrolar e ganhar na decisão dos juízes (é como o destemperado Diego Sánchez, cujas lutas são, de fato e de direito, lutas). Por ser um guerreiro que luta de peito aberto, para ganhar ou para perder, às vezes é vencido de maneira acachapante. Não raro, sai com o rosto precisando, como dizem os narradores e comentaristas do canal Combate, de lanternagem.

Doo Ho Choi é uma das grandes apostas do UFC, agora controlado pelos chineses. Por dois motivos. Primeiro, é, sim, um lutador brilhante, de queixo de aço — um verdadeiro Yukio Mishima do octógono. Segundo, como sul-coreano, atrai o público da Ásia. A Ásia, o Japão, por exemplo, adora luta; quando estive no país de Yasunari Kawabata, em março de 1996, pude constatar o tanto que os japoneses amam lutas, inclusive, talvez sobretudo, sumô.

A luta começou. Pensei: Doo Ho Choi — ou Choio, como prefere Candice — vai nocautear o nocauteável Cub Swanson. Não, na verdade pensei outra coisa: a luta vai ser uma chateação e eu deveria dormir — aceitando a recomendação-ordem da Candice (no dia seguinte, iríamos ver o filme “O Filho Eterno”, baseado num livro do escritor Cristovão Tezza. Aliás, vimos o filme, mais frágil do que as jangadas da música célebre de Dorival Caymin).

Pois, ao contrário do que pensava, a luta começou eletrizante. Doo Ho Choi começou muito bem, indo para cima de Cub Swanson, que se defendia, às vezes bem, às vezes mal. Esperava-se o nocaute. O prodígio coreano prometia lona para o americano.

Mas aí, mmaófilos dos tristes trópicos, Cub Swanson renasceu. Apanhava e batia duramente. Os três rounds foram tão eletrizantes que devo ter piscado no máximo cinco vezes.

Nos dois últimos rounds, cheguei a pensar que Cub Swanson e Doo Ho Choi se nocauteariam. Os dois estavam cansados, mas não por falta de preparo físico. O cansaço advinha do tanto que batiam um no outro. Os dois estavam preparadíssimos, tanto que lutaram, durante quinze minutos, sem parar um segundo.

O que pesou mesmo? Talvez a relativa inexperiência de Doo Ho Choi, de 25 anos, e a experiência de Cub Swanson, de 33 anos. Mas nenhum fez uma luta, digamos, tática. Eles lutaram de verdade, o tempo todo, castigando-se de maneira implacável.

Quando percebeu que poderia ganhar do prodígio asiático, Cub Swanson partiu para cima e atacou com volúpia extremada. O mesmo fez Doo Ho Choi, entrando no jogo do americano, e sendo quase nocauteado. Por que não caiu, se algumas vezes parecia nocauteado em pé? É provável que não tenha o queixo de vidro. Ou então Cub Swanson não tem uma pegada poderosa. Ou as duas coisas, sabe-se lá.

Luta da noite ou luta do ano?

O site Combate (http://sportv.globo.com/site/combate/noticia/2016/12/cub-swanson-nunca-bati-tao-forte-nem-no-saco-de-areia-durante-o-treino.html) publicou um trecho da entrevista de Cub Swanson ao “The Luke Thomas Show”: “Eu falei com meus técnicos nos bastidores que nem nos treinos eu tento acertar socos tão fortes no saco de areia. Nem tento fazer isso. Eu me lembro de querer olhar para o árbitro algumas vezes durante a luta e perguntar se já não era bastante. Próximo ao fim da luta, com ele na grade, eu quis perguntar ao árbitro o que mais seria necessário eu fazer para ele parar a luta. Mas o problema é que ele voltava a lutar no segundo seguinte, como se não tivesse sentido os golpes”. Suas palavras são verdadeiras.

Cub Swanson e Choi Ho Choi ganharam o prêmio de luta da noite. Merecidamente. Há quem diga que se trata da luta do ano. Não duvido.