A paixão de uma mulher por um jaó

14 maio 2024 às 14h57

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Muitas borboletas são interrompidas ainda no estágio de lagarta. Por trás dessa interrupção, os anus (brancos e pretos), almas-de-gato, corrupiões (também conhecidos com sofrês) e outras espécies de aves que se alimentam de tais insetos. E há ainda um dizimador muito perigoso: os inseticidas, que aniquilam inúmeros insetos, principalmente o animalzinho mais importante do mundo: as abelhas. As lagartas também são vítimas de algumas vespas, que depositam seus ovos no corpo daquelas, e, as larvas, ao eclodirem dos ovos, vão se alimentar da lagarta hospedeira.
Falando em sofrê, um se tornou poema na pena do poeta chileno Pablo Neruda. Quando ele esteve em Goiânia em fevereiro de 1954 para participar do 1º Congresso Nacional de Intelectuais, ganhou de presente o tal pássaro. Foi coisa de poucos dias seu tempo de vida em terras estranhas. Seu canto melodioso foi silenciado. Isso resultou noutro canto: o poema “Ode ao pássaro sofrê”. Já o Loló, o periquito-de-encontro-amarelo que o poeta Gabriel Nascente criava há anos, ganhou mais que um poema quando “morreu e fez um pedaço do céu ficar cego”. Ganhou um livro: “O Príncipe da Túnica Verde”. Ao contrário do sofrê de Neruda, Loló pôde usufruir todos os dias de vida permitidos a um periquito. Tive o privilégio de conhecer Loló.
As aves tanto servem de metáforas aos poetas como lhes servem para comparações. Em “Cânticos” 5: 11, livro bíblico cuja autoria é atribuída ao rei Salomão, a amada poesiando o amado diz: “ (…) seus cabelos ondulam ao vento como ramos de palmeira; são negros como o corvo”. Em seu livro “Iracema”, José de Alencar, seguindo os rastros de “Cânticos”, escreveu: “Iracema, a virgem dos lábios de mel, (…) tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira”. Os cabelos negros num texto são comparados à cor das penas do corvo; noutro, às penas da graúna: ave que conheço como pássaro-preto. Já a palavra “palmeira” se repete em ambos.

Sobre a mulher apaixonada por um jaó, vamos ao fato. Tal história me foi contada por um homem que conheci em Taquaral de Goiás. A mim, ele contou o milagre e o nome do santo. Vou me limitar a contar apenas o milagre. Se você concluir a leitura, altaneiro leitor, perceberá que a omissão do nome do santo não interferirá no essencial do que irei contar. Lógico que acrescentei alguns pontos, mas isso não é um conto. O nome dos personagens não é real. Pois bem.
Angelina era mais nova que Avelino uns 25 anos. Ele tinha 50. Trabalhava como peão. Na verdade, não era de trabalhar muito, mas de beber sim. Antes de ser picado pela cobra de vidro, era trabalhador. Após as bebedeiras, caía num sono de pedra. Vivia perdendo emprego direto. Ignorância sobrava nele, e Angelina era a grande vítima, tanto verbal como física. Estavam juntos há três anos, não tinham filhos. Ela não podia ter. Avelino tinha dois com a ex-mulher, que sumiu no mapa com os filhos ainda pequenos por não suportar as bebedeiras e a violência do marido. No primeiro ano, após tirar Angelina de um puteiro copo-sujo, tratou-a bem, carregava água no jacá para ela. Do espeto, ela caiu na brasa. Inclusive recebeu ameaça de morte caso voltasse ao puteiro. Ela quis, porém só ficou na vontade. A morte a conteve.
Moravam de favor numa casa velha de uma fazenda. Foi por Angelina que o dono permitiu por conhecer a carne dela. Coisa que Avelino não sabia. Perto da casa, havia uma pequena mata. Depois de um determinado tempo, apareceu por lá um jaó. Fato raro. Outras aves, como mutum, xexéu, pitiguari, bem-te-vi e muitos outros, eram comuns na mata, mas o canto de nenhum deles conseguiu atrair a atenção de Angelina como o do jaó. Bastava a ave dar o seu piado que ela ficava inquieta. Não só isso, como se embrenhava na mata à procura da ave. E sempre voltava feliz, como se tivesse visto o passarinho verde.

Certa vez, Avelino, já um tanto encharcado de pinga, não gostou de ver a alegria da mulher ao ouvir o canto do jaó. Levantou-se da cadeira em que estava numa pequena área próxima a uma mangueira, meio cambaleando e dizendo de maneira mole: “Hoje vô comê jaó frita na janta”. Foi à casa e voltou com uma espingarda velha que usava para caçar. Ao ver o companheiro com a arma, Angelina ficou assustada e pôs-se a gritar: “Foge, jaozinho, o Avelino qué te matar”. Ela nem pensou que poderia ser o alvo dos tiros, só se preocupou com a vida da ave. Foram dois tiros dados a esmo no rumo na mata.
Tão logo ouviu o alerta da mulher, e junto a isso o pipoco dos tiros, a ave deu o que tinha nas canelas, ganhou em velocidade do Papa-léguas do desenho animado. Alguns dias depois o jaó voltou a cantar na mata. Mas só cantava quando tinha certeza de que Avelino estava no sono profundo da pinga. O que lhe era informado por uma senha especial: uma toalha vermelha que Angelina colocava num varal na porta da casa.

*Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza