Opção cultural

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Semana de Arte Moderna (15): Palmas e vaias, de Eliézer C. Oliveira

A guerra precisa de vanguarda, não a arte; a arte tem que ser evidente por si mesma e não precisa de proselitismo

Semana de Arte Moderna (14): Quixote no Paranaíba, de José M. Umbelino Filho

Olha, essa tal Modernidade, se passou por aqui, passou fugida, viu? Nem apeou do cavalo pra um dedo de prosa. Passou desenfreada e já deve estar lá pelos lados de Cuiabá 

O Jornal Opção vai publicar, com a curadoria do presidente da UBE-Goiás, Ademir Luiz, 22 contos de 22 autores evocando de diferentes formas a Semana de Arte Moderna de 1922 — que completa 100 anos em fevereiro, ou seja, nunca acabou — como inspiração. As mais diferentes possibilidades estilísticas foram exploradas. Contos modernos, contos tradicionais, contos pós-modernos. De homenagens assumidas a severas reflexões críticas; narrativas evocativas, narrativas memorialísticas, narrativas ensaísticas, narrativas desconstrutivas. Algumas com humor, outras com amor, mas também com vaias, aplausos e mesmo com o som do coaxar de sapos antropófagos.
Quixote no Paranaíba José M. Umbelino Filho Foi Firmino Mascate quem trouxe, no meio das coisas todas, um exemplar já puído de O Jatahy e deixou sobre a mesa da varanda, com displicência calculada, querendo muito que o seu Deodato olhasse. Seu Deodato nem olhou; passou batendo botina de um lado para outro, no seu gingado de velho cavaleiro, interessado como estava pelo sal e pelo sebo de porco que já faltavam nas reservas. Devido às chuvas e à cheia dos rios, a rodagem de mascates se prejudicara naquele início de ano, e o velho queria só ter olhos para os mantimentos. Digo queria só ter e não só tinha olhos, porque também ele, com calculada displicência, perguntara ao final da visita: “Quanto lhe devo pelo papel, seu Firmino?” — e com isso demonstrava ter, sim, espiado a folhinha na mesa da varanda. “Deve nada, seu Deodato. Aquilo é pra o senhor aventar um pouco as ideias. Saber do que se passa no mundo.”, respondeu o mascate, botando o chapelão engraçado na cabeça e rumando sítio afora. A cachorrada latiu em despedida, seu Deodato foi arrumar o que fazer e o jornal caiu nas mãos do Gentil, que lia bem, era metido a poeta, tinha mão lisa de princesa e se achava francês. Mais tarde, antes do sol se pôr, a família se reuniu perto do fogão e o seu Deodato disse: “Lê aí as notícias do mundo, genro”. Era seu melhor momento, e o Gentil não se rogava. Sentado muito ereto ante a luz do fogo, bigodinho afilado de gavião, fez questão redobrada de empertigar a voz, caprichar na curvatura dos erres e eles, acentuar exoticamente a tônica das oxítonas, meio ao modelo francês que um dia escutara de alguém importante na capital. Leu as notícias bolorentas como se declamasse um de seus poemas inéditos. De noite, já na cama, não podia dormir. A Maria perguntou: “O que houve, homem?” “Maria, você não ouviu a notícia?” “Dos Caiado?” “Não, meu bem, de São Paulo.” “O que tem São Paulo?” “A revolução!” “Que diabo de revolução? Ah, você fala dos poetas.” “Uma revolução modernizante da nossa cultura. Finalmente o Brasil entra no mundo moderno, e entra bem, entra para não sair mais. Viu que linda a gravura da Semana da Arte Moderna? Viu que revolucionária, que aventada, que futurística? Talvez lá eu encontre quem entenda meus versos, quem tenha a cabeça mais arejada que esses parnasianos da província, esses retrógrados que criam boi mas só falam de ovelhas e pastores e das ninfas gregas, e ficam rimando versos ao invés da aventura bela que é a liberdade de métrica, a onomatopeia, o antiformalismo! Esses sonetistas cheirando a bolor e cornos de boi!” “Papai cria boi.” “Não me refiro ao seu Deodato, meu bem, mas aos poetinhas dessa província. Essa penca que despreza os últimos trabalhos de Leo Lynce porque não entende nada. Maria, eu preciso ir à Semana de Arte Moderna. Se sair agora, chego lá. Bendito Firmino que não demorou na cheia do rio, aquele turco esperto, contornou pela Santa Bernadete e chegou aqui em bom tempo com a boa nova!” “Você quer chegar em São Paulo nessa época de chuva? Que ideia, Gentil. Que ideia!” “Vou na cidade e de lá pego transporte. Quem sabe no trem não me dão uma beirada?” “Mas homem, você está marcado lá em Santa Rita. Marcado para morrer! Nem pode pôr os pés na rua direita que o Salomão te mata duas vezes; a alma primeiro, o corpo depois. Mata até sua sombra, e aí caem vocês três, corpo, alma e sombra, na mesma poça da vergonha. Não te deixo chegar nem perto da cidade.” “Ai, diabos. Aquele bruto. Por conta de um versinho de nada, Maria.” “Um versinho horroroso, isso sim. Como que você fala aquelas coisas, ai ai ai, nem gosto de repetir. Jesus não perdoaria. Salomão Jardim, que sempre foi mais pra Herodes que pra Cristo, menos ainda.” “Falei a verdade, e falei com verve, como Gregório de Matos. Sou o Boca do Inferno desse lado do Paranaíba. Ele que me respondesse com versos, e não com tiros. Selvagem. Mas enfim, Maria, vou a cavalo. É possível chegar lá para os meados de fevereiro, ainda em tempo, não vê? Se chego até dia 15, ainda estou em tempo.” “Mas nem o caminho você sabe direito. Nunca foi mais longe que Nossa Senhora d’Abadia.  Como vai atravessar o Paranaíba sem ser pela cidade?” E mais Maria não pôde argumentar, porque Gentil estava decidido. No outro dia, cedinho, engordou o embornal, dilapidou a despensa do sogro de linguiça na banha, farinha e carne de sol, encheu-se de matulas, prometeu umas benesses para que o Tonico o acompanhasse num burrico, fazendo às vezes de Sancho Pança caboclo e descrente, e montou o bom baio de meia pataca que tinha, e que chamava Derradeiro. Juntos, Gentil e Tonico, Derradeiro e o burrico, pegaram a estradinha serpenteadeira que ladeava o Sossegado e miraram o sul, na direção do Paranaíba, onde haveriam de achar um bom cristão que os atravessasse, se assim quisessem Deus, Nossa Senhora e, mais fervorosamente, São João da Cruz, padroeiro dos poetas e dos simbolistas. De lá, Minas Gerais. Talvez conseguissem transporte em Uberaba; pegassem o trem, ou até automóvel, talvez por rio, qualquer caminho que descesse até São Paulo, de onde Mário, Oswald e Tarsila espraiavam a Modernidade. Quiçá, sonhava Gentil, espraiassem-na com tanta velocidade, nas asas fumegante da indústria, e com tanta diligência, nas rodas mecânicas do futuro, que a própria Modernidade os encontrasse antes, no meio do caminho, porque era certo que ela vinha – vinha com tudo – para tomar o Brasil inteiro. “Se não nos apressamos, Tonico, é capaz da Modernidade chegar a Goiás antes de nós chegarmos a São Paulo! Adiante! Adiante!” ele gritava. Tonico ensimesmava atrás do pito, porque não tinha mesmo o que responder, analfabeto que era, parnasiano que nem sabia ser, e preocupado que estava com a trilha quase desaparecida no cerradão, as nuvens pretas e gordas pastando no céu e os mosquitos, os muitos mosquitos. Mas as palavras esperançosas de Gentil não calavam no vazio, não caíam desacreditadas pelo caminho, pois o burrico, ele próprio poeta e modernista, respondia sempre com zurros vitoriosos, sem nenhum formalismo. [caption id="attachment_319919" align="aligncenter" width="620"] Rip Van Winkle, personagem de Washington Irving: acordou 20 anos depois e o mundo estava mudado | Foto: Reprodução[/caption] Só que encontraram o grande rio bem antes do previsto. Isso porque a chuva estava plena e o Paranaíba engolira seus próprios beiços, abrindo-se para dentro do mato. Por sorte, acharam o acampamento de um ribeirinho que sabia passar o barco, e ele havia dito: “Amanhã, ou depois de amanhã, ou depois de depois de amanhã, três dias no máximo, não mais nem menos, dá passagem. Temos só que esperar a chuva. O rio ficou mais largo, mas não está perigoso não.” Chovia muito. Gentil e Tonico se espremiam numa tapera junto do ribeirinho e de mais dois mascates, ou bandoleiros, difícil dizer, que aguardavam também para a travessia. Era dia ainda, mas escuro e cabisbaixo, e o mato parecia choramingar de saudade. Os mascates, talvez comovidos pelo cinza do céu, pela solidão do cerrado, pelo coaxar dos sapos, sacaram suas violas e cantaram uma moda triste: Me pus a chorar saudade no quintal de uma tapera. Responderam as paredes De uma ingrata é o que se espera Eu fui para a beira do rio para ver a água correr para ver como é tão triste o querer e não poder E mais tarde, como o dia parecia responder ao canto, a chuva se envergonhasse da tristeza que causava, e um solzinho mequetrefe surgisse pelo meio das nuvens, os dois se tornaram mais atrevidos: Eu tratei um casamento Com a filha do fazendeiro “Mas meu pai eu não me caso Com moço tão sem dinheiro” A moça falou tão franca E pegou logo a dizer Que eu era mocinho novo Também não sabia ler Eu tive que então sair Lá de casa nesta mente A moça me envergonhou No meio de tanta gente Eu não vivo só por dinheiro Nem também por saber ler Eu vivo só por viver E morrerei por morrer O ribeirinho desempacou umas pingas e todos deram a beber. Então os dois violeiros se esqueceram das caboclas, das morenas e das galegas, e cada homem naquela tapera se lembrou que um dia foi rei de quermesse, príncipe da catira, senhor das chinas e das arábias. Até Tonico, que sempre ressabiava por ser menino novo, criado de casa, índio, e já banguela de tanto pitar, soltou a vozinha de taquara rachada, abraçado à cuia. Mesmo o burrico e o Derradeiro, e o resto da animália, que se molhavam sem reclamar no quintal, murmuravam a melodia: Quem mais pouco bebe é o sacristão Se chega na venda Empenha o botão Quem mais pouco bebe é o seu vigário Se chega na venda Empenha o rosário Quem mais pouco bebe é a moça bonita Se chega na venda Empenha uma fita Quem mais pouco bebe é a mulher casada Se chega na venda Está relaxada Gentil, de peito cheio e quente, movido pelo álcool e pelo espírito de São João da Cruz, pediu licença para declamar um de seus poemas, o que os demais aceitaram aos brados de camaradagem. Ele se empertigou, como de praxe, puxando a memória de seus erres e eles, de suas oxítonas francesas, e explicou que os camaradas ouviriam uns versinhos inéditos, que ele apresentaria em breve no Theatro Municipal de São Paulo, na Semana de Arte Moderna, para o embasbacamento da paulistada e introdução da província no mundo moderno. Declamou então seus versos de pé quebrado, cheios de modernismos, e que foram recebidos com muxoxos de sapo pela plateia. “Não dá pra cantar isso.” disse um dos violeiros. “Foi bonito, mas não rima.” reclamou o outro. Ofendido, o Gentil respondeu: “Seus parnasianos, com suas rimas quatrocentistas, suas trovinhas ridículas, que cheiram a arenga de índio e banzo de preto, não sabem o que estão dizendo. Vocês não entendem nada! Nada! Cantando cachaça, mulher e festa, quando a Modernidade pede os ventos refinados da Europa! Os ventos da civilização, que vão expulsar desse Brasil os últimos ranços do colonialismo. O cheiro ocre da bosta de vaca e do couro curtido. Ventos da liberdade, da verdadeira expressão brasileira, que só podem alcançar uma alma atinada e atenta ao antiformalismo, à locomotiva, à cidade grande, à França libertária e aos Estados Unidos da América! O que eu queria, afinal? Ser entendido por uns broncos, uns bugres, uns pés-rapados?” Os mascates olhavam atônitos e não sabiam se deviam se ofender ou se lisonjear, já que não entendiam metade das palavras de Gentil. Assim se resolveram num acordo tácito: um deles se ofenderia e o outro se lisonjearia, e  ficaria portanto equilibrada a reação, já que a metade que entenderam era de ofensas, e a metade que não entenderam parecia elogio. Para azar de Gentil, o que resolveu se ofender era o mais parrudo dos dois, e logo o coitado estava enxotado da tapera aos tapas, roxeado na cara e nos bofes, diminuído no orgulho, e debaixo da chuvinha melancólica do começo de noite. Foi dormir no quintal com os bichos, de castigo, e ainda teve de escutar o Tonico, o burrico, os cavalos e os broncos cantando o resto da noite: Eu não sou pau de porteira Mourão de jacarandá Eu não sou pires de doce Pra vancê vir me prová Eu me chamo topa-topa Cai aqui, cai acolá Gente não gosta de mim Eu topo em vosso lugá Oncê não me conhece Nem não sabe quem eu sou Eu chamo mundé armado Quando dispara pegô [caption id="attachment_191640" align="aligncenter" width="620"] Dom Quixote e Sança Pança, de Roos | Foto: Reprodução[/caption] No outro dia, Gentil acordou mole e febril. A febre piorou logo e ele começou a delirar. Chamava por Maria, chamava pela mãe, por uma tal Cecília Moreira, namoradinha de infância, e por seus cavalos. Os mascates, que não eram gente ruim, arrependidos da briga e temerosos pela saúde do poeta, juntaram-se ao Tonico na vigília. O ribeirinho conseguiu umas raizadas e umas beberagens, mas Gentil não melhorava. Podia ter sido a chuva, podia bem ter sido picada de algum mosquito mal-intencionado, podia até ter sido cobra.  Em seu delírio, Gentil chegava a São Paulo como um bandeirante às avessas, um desdescobridor do Brasil. Vinha com uma comitiva de caipiras descalços, índios pintados, cavalos, burros e camelos. Mesmo os reis magos o acompanhavam, cobrindo seu caminho com pétalas de rosa e folhas volantes. Gentil declamava versos em todos os teatros de São Paulo. Os modernistas faziam fila para apertar sua mão. Mário de Andrade, com sua careca reluzente e sua cara de cavalo com tartaruga, chamava-o em particular. Debaixo de panos, prometia-lhe editar seu livro na capital, distribuí-los até nas livrarias de Lisboa. “Serás lido em Coimbra, meu amigo, nas faculdades, serás discutido em saraus repletos de flamengos, ingleses e californianos, meu amigo Gentil.” Ele sonhava com a apoteose das apoteoses: seus versos ufanistas, nacionalistas, brasileiros, modernistas, antiformalistas, antissonetistas, declamados em Portugal. Quiçá na França! E os parnasianos, os retrógrados, com suas perucas brancas e seus sapatos de tamanca, curvados diante do fracasso iminente do passado e da irrevogável marcha do progresso. E Oswald de Andrade surgia em Goiás montado numa locomotiva bravia, como um deus das guerras futuras, um Hefesto de macacão e boina azul.  Seu charuto soltava fagulhas que incendiavam o cerrado e transformavam mato em indústria, árvore em poste, rio em rodovia, índio em alemão, saci em leprechaun, iara em valquíria. Tarsila e Anita então surgiam gigantescas, em cores vibrantes, por trás dos morros, como mulheres sem feições, nuas e de seios enormes. De suas bocas  derramavam  livros, revistas, jornais, panfletos, toda uma miríade de impressos que batiam asas de celulose e cobriam os céus como abelhas jataí  – e enquanto seus gigantescos pés destruíam as casas coloniais de Pirenópolis, amassavam as fazendas de Salomão Jardim, arruinavam as praças e o coreto de Goiás,  e suas soberbas coxas engoliam as igrejas de Ouro Preto e Mariana, de seus ventres místicos afloravam prédios, ruas asfaltadas, bondes, aparelhos elétricos curiosíssimos, fios e cabos que atravessavam o atlântico, mulheres de cabelos curtos e saias até os joelhos, maçons futuristas, republicanos napoleônicos, negros americanos e japoneses mais leves que o vento. Trens e poemas sem rimas borborejavam das musas elétricas, e edições da Klaxon e da Revista da Antropofagia pastavam mansamente nas várzeas como enormes vacas consagradas ao deus Aton, ao círculo solar, e ao Apolo nu. No centro de tudo isso, com os pés firmes num cometa feito de metal e alumínio, ele, Gentil de Souza Carneiro, a tudo regia com sua batuta, sua boca transformada num efervescente gramofone. Quando acordou, estava em sua cama, em seu quarto, no sítio do velho Deodato. Maria passava-lhe um pano úmido sobre a testa. Tonico estava à janela. “Ele acordou!” gritou a esposa e o resto da família veio se amontoar ao pé da cama. “O que está acontecendo?” “Você adoeceu no caminho para São Paulo, querido. Na margem mesmo do Paranaíba. Tonico e os dois outros moços muito gentis te trouxeram de volta. Estávamos com medo de que a febre não quebrasse, mas quebrou!” “Eu preciso ir a São Paulo. Ainda dá tempo de pegar o final da Semana de Arte Moderna.” “Deixa disso, homem.” Gentil tentou se levantar. Encostou-se na cabeceira da cama e era a imagem do homem derrotado. “Talvez ainda consigamos. Que dia é hoje?” “É vinte de janeiro.” “Viu, vinte de janeiro! Ainda há tempo! Se sairmos hoje, podemos chegar lá. Eu vou à cidade, enfrento o Salomão, não me importo, pegamos o trem e vamos. Pegamos o caminho mais curto.” “Querido, vinte de janeiro de 1928.” “Sim, ainda há tempo.” “Você leu errado o jornal.” “Li errado?” “Você não atentou para as datas. As notícias eram velhas, Gentil. O jornal era de 1922. A Semana da Arte Moderna foi em fevereiro de 1922. Isso já tem seis anos.” Maria passou as mãos nos cabelos molhados do marido. “Você sabe como as notícias demoram a chegar aqui. O pobre do Firmino Mascate trouxe o que de mais recente tinha, mas você sabe como é...”: Ela o olhava com imensa mansidão. Gentil tocou a testa suada com a ponta dos dedos: “Mas e a Modernidade? E a Modernidade onde está? Oswald de Andrade já devia estar abrindo nossa porteira, chutando os cachorros. Onde está ele?” Foi seu Deodato quem deu por terminado o assunto, batendo com as mãos nos próprios joelhos, levantando-se já no rumo da porta e dizendo: “Olha, essa tal Modernidade, se passou por aqui, passou fugida, viu? Nem apeou do cavalo pra um dedo de prosa. Passou desenfreada e já deve estar lá pelos lados de Cuiabá.”

Goiânia nas comemorações da Semana de Arte Moderna de 1922

No dia 18 sairá o livro com contos sobre a Semana de Arte Moderna. Os relatos estão sendo publicados pelo Jornal Opção

Semana de Arte Moderna (13): O adepto do Corinthians, de Luiz Gustavo Medeiros

Mário e Oswald querem mostrar que os parnasianos haviam parado no tempo. Paulinho fala do time do Corinthians

Caso Monark: Umberto Eco estava certo: redes sociais deram voz a imbecis

Por Danilo Campagnollo Bueno e José Sérgio do Nascimento Júnior*

O youtuber Monark | Foto: Reprodução

A tão desejada “liberdade de expressão”, conquistada a duras penas no Brasil, parece ter se transformado em um salvo-conduto para idiotas falarem o que quiserem, principalmente por meio das redes sociais. A célebre frase de Umberto Eco serve como uma luva para falar sobre o Caso Monark e Kim Kataguiri: “as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”.

As manifestações do youtuber Monark e do deputado federal Kim Kataguiri no podcast Flow, defendendo a possibilidade de criação de um partido nazista no Brasil para, primeiro, dar voz a ideias abomináveis para depois aboli-las, não encontram respaldo na garantia constitucional da liberdade de expressão, como tentaram argumentar.

A manifestação de um pensamento deixa de ser protegida pela liberdade de expressão quando há abuso, incitação ao ódio e à violência contra determinados grupos. Ideologias que visam subjugar ou exterminar outro ser humano devem ser criminalizadas, diferentemente do que sustentou o deputado Kim Kataguiri. Racismo e perseguições a quaisquer identidades não são liberdade de expressão, e sim claras apologias ao ódio.

No Brasil, é crime fazer apologia ao nazismo, cuja conduta se amolda ao tipo penal previsto no art. 20, da Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Se a apologia é realizada por meio de fabricação, comercialização, distribuição ou veiculação de símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a suástica ou gamada a pena é maior (§1º do mesmo art.20).

Descriminalizar a apologia ao nazismo para se rediscutir seu conteúdo preconceituoso, discriminatório e genocida seria um retrocesso social, tendo em vista as atrocidades históricas notoriamente conhecidas.

O exercício absoluto à máxima liberdade expressão, como pretende Kataguiri, sem o respeito à dignidade humana alheia, serviria como pretexto para se discutir a retomada da escravidão; a permissão para relação sexual com menores de 14 anos e o direito de o homem matar a mulher por ciúme para limpar a sua honra. Todas, atitudes execráveis e que devem ser combatidas, sem permissão para apologias em sentido contrário.

A lei 7.716/89 elenca os crimes de racismo e se fundamenta na norma Constitucional que os descreve como inafiançáveis e imprescritíveis. Pertinente destacar que, a lei se concentrava no racismo sofrido pela população negra e não tocava de forma explícita no nazismo e na sua ideologia racista. A primeira referência à apologia ao nazismo com base nesta lei ocorreu em 1994. Em 1997 a Lei 9.459/97 incluiu a figura qualificadora do parágrafo 1§º, acima mencionado.

Na época houve quem achasse exagerado o acréscimo na lei, com o argumento de que as ideias extremistas de Hitler jamais encontrariam solo fértil no Brasil, tão pacífico e distante da Europa. O tempo mostrou que estavam errados.

Adrilles Jorge durante participação em um dos programas da Jovem Pan | Foto: Reprodução

Nessa semana os casos do youtuber Monark e do deputado federal Kim Kataguiri, se somaram ao episódio do apresentador da Jovem Pan, Adrilles Jorge, que fez um aceno nazista durante a apresentação de um programa da emissora. As consequências para os apresentadores foram imediatas. Monark deixou o podcast de maior audiência da internet e Adrilles foi demitido.

Apesar de muito já ter sido discutido sobre o nazismo em salas de aula, documentários, cinema e imprensa, sempre aparece alguém querendo apoiar o genocídio de um povo, uma raça ou identidade, usando o pretexto da liberdade de expressão. Enquanto ainda houver esse tipo de manifestação, nós estaremos aqui para lembrar: racismo e homofobia são crimes; apologia ao nazismo também. E a democracia não tem espaço para esse tipo de manifestação.

*Advogados criminalistas do escritório Campagnollo Bueno Advocacia.

Levou apenas um minuto

Conto de Rafaela Ferreira

Foto: Renato Araújo/ABr

 Acordar às 04 horas da manhã e pegar o primeiro ônibus do dia. Lotado, já de início. Um caminho árduo até chegar na universidade. O relógio marca 08h. Já começou a aula. Ainda na metade do caminho, Maria Luz só consegue chegar depois de 30 minutos. “Poxa, Maria, atrasada de novo? Na próxima não vou te deixar entrar na sala”, diz o professor de histologia. O dia começa assim. Na verdade, todos os dias começam assim. 

Sair da periferia rumo a universidade não é um trajeto fácil na vida de Maria Luz Gonçalves. Outro dia, a garota relembrou como, nas primeiras semanas de aula, um colega se espantou ao ouvi-la falar que mora no Papillon Park: “Mas não é em outra cidade esse bairro?! Nossa, se eu morasse tão longe assim, nem nessa faculdade eu tava…”. Mas o que ela poderia fazer se a federal é a única forma dela se graduar? E ela não iria dar o desgosto de abandonar o curso de biologia. Não para sua mãe, que foi a primeira da família a ter um curso superior. Não. Ela ia continuar esse legado. 

Na volta para casa, Maria resolveu ir na farmácia comprar um remédio para uma cólica que estava sentindo desde manhã, quando pegou aquele ônibus maldito. Maldito. Maldito homem que não desencostava dela e quando o confrontou recebeu logo um: “Qual é, morena! O ônibus tá lotado, tô passando a mão em você não. Tá doida?”. Sim, doida. Doida de achar que alguém ia pelo menos trocar de lugar com ela. Porém, tudo que recebeu foi olhares tortos de gente já cansada demais um dia de serviço, antes mesmo dele começar.

Outro erro: entrar na farmácia. Maria Luz escolheu parar em uma dessas farmácias grandes e de rede que ficam no centro da cidade. Que erro. “Por que eu não fui na banquinha do Sr. Pedro?!”, pensou. Nada muito grave lhe aconteceu, dessa vez. Porém, os olhares de dúvidas e questionamentos, sobre se ela realmente poderia pagar por aquela simples pílula, eram enormes. De fato, ela não podia. “25 reais em um ibuprofeno? Rico paga por cada coisa! Eu realmente  deveria ter ido na banquinha…”

O pensamento é interrompido quando ela vê a condução rumo ao Terminal Cruzeiro passar bem na sua frente, e então, a jovem começa a correr. Ufa! Conseguiu entrar. “Olha! Tem um banco vago!”, pensou. Sentada na janela - e no banco alto, seu favorito - Maria Luz pega seu fone de ouvido e inicia um vídeo que seu amigo (quase namorado) Raul acabou de enviar, juntamente da mensagem: “Minha preta, cuidado na volta pra casa, hein!”. 

“Quatro viaturas da Rotam acabam de adentrar as ruas do Bairro da Conceição em uma busca e apreensão depois de uma denúncia de tráfico na região", começou a jornalista. “Merda!”, pensou a jovem, “Mais um dia da visita dos porcos…”. Já em seu destino final, a jovem se questiona se já deve ir para a casa ou esperar dentro do mercadinho que tem ao lado de seu ponto de ônibus, já que a notícia havia lhe assustado. “Não vi nada no caminho para cá e a rua parece normal”, pensou. 

Em um onda súbita de saudades, Maluz resolve ir visitar a avó, a mesma que a apelidou dessa forma. Descendo as ruas da selva de pedra, a jovem respira bem fundo o ar da tarde quente da terça-feira, porém, é surpreendida com um som de pneus sendo gastos nos asfalto.

 De repente, duas viaturas passam zumbindo ao seu lado. “Ah, aí estão eles”, pensou. Quando Maria Luz fez para dar mais um passo, mais dois carros apareceram, mas nessa leva, um gol preto se encontrava no meio dos camburões. Ela então percebeu que era o tal traficante que anunciaram no vídeo. “Ah, não”, pensou enquanto procurava um lugar para se esconder. Ao terminar seu pensamento, barulhos começaram a ressoar. “Ah, não!”, pensou mais uma vez. 

A troca de tiros aconteceu às 16h30. Levou 10 minutos até que os vizinhos vissem seu corpo. 20 até sua avó sair no portão, já que estava com medo do barulho dos carros. 30 até sua mãe ficar sabendo. 45 até Raul mandar “E aí, chegou bem?”. 50 até que os jornais chegassem no local. Nos jornais, menos de três parágrafos de notícias, que se lia: “Jovem morreu após a troca de tiros depois de uma invasão policial”. Porém, uma vida inteira para superar que mais uma jovem negra morreu de forma brutal nas periferias do Brasil. Mais uma. Somos números.

“Certos Casais”, de Hugo Almeida: contos escritos com raro talento

O texto de um conto, com frases curtas, exibe uma técnica inédita: frases insinuantes ou ditas em sussurros aparecem com letras em corpo menor e outras em itálico

Semana de Arte Moderna (12): A semana invisível, de Ademir Luiz

A Semana de Arte Moderna de 1922, evento invisível aos olhos, mas onipresente na vontade, foi o primeiro evento pós-moderno não registrado

Semana de Arte Moderna (11): O pedido de escusas de Cora Coralina, de Iraides Barbosa

Que o acontecimento atinja o seu objetivo com a renovação do ambiente artístico-cultural e consolide a informalidade, o improviso e a liberdade de produção

Semana de Arte Moderna (10): Antropofagia intermitente, de Valéria V. Valle

Oiiiss. É vinte e dois? Foi ou não foi? Si foi, foi logo depois, pois passadistas, de novo, já sois

Semana de Arte Moderna (9): À sombra de Lima Barreto, de Itaney Campos

Confira a micro história do escritor que a Semana de Arte Moderna “cancelou”. Dele “só restaram” dois versos. Lima Barreto era um de seus críticos

Semana de Arte Moderna (8): A cidade antropofágica, de Pablo Mathias

“Goyazes levantem-se! Avante seus arpões e flechas. Ergam seus martelos e ferramentas. Urbanos! Mastigados pelos dentes de tijolo e concreto, digeridos pelo ácido solo — Cerrado”

Semana de Arte Moderna (7): Miúdos, por dentro da garoa, de Edival Lourenço

“Vocês voltam de Paris com ideias frívolas para aplicá-las aqui como se fossem a quintessência da brasilidade. Isso é o aprofundamento da colonização”

Semana de Arte Moderna (6): Pelos caminhos de Menotti, de Sônia Elizabeth

Os acontecimentos que por ali pipocavam traduziam, em suma, uma espécie de romper com a estética artística que estava em voga. Eis a Semana de Arte Moderna

Deusnir Souza: aposta nacional e internacional dos teclados

Com apenas 22 anos, tecladista tem curso para músicos com mais de dois mil alunos e participou de projeto da marca sueca, Nord Keyboards