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Oiiiss. É vinte e dois? Foi ou não foi? Si foi, foi logo depois, pois passadistas, de novo, já sois

O Jornal Opção vai publicar, com a curadoria do presidente da UBE-Goiás, Ademir Luiz, 22 contos de 22 autores evocando de diferentes formas a Semana de Arte Moderna de 1922 — que completa 100 anos em fevereiro, ou seja, nunca acabou — como inspiração. As mais diferentes possibilidades estilísticas foram exploradas. Contos modernos, contos tradicionais, contos pós-modernos. De homenagens assumidas a severas reflexões críticas; narrativas evocativas, narrativas memorialísticas, narrativas ensaísticas, narrativas desconstrutivas. Algumas com humor, outras com amor, mas também com vaias, aplausos e mesmo com o som do coaxar de sapos antropófagos.

Antropofagia intermitente                                                                                           

Valéria V. Valle

O ano de 1922 prometia vanguardistas e anarquistas com visão estrábica a fim de revolucionar a cidade de SapoPaulo. Entre os apupos dos que jogavam sal nos sapos irreverentes e dos sapos antigos que revidavam com espirros de leite ácido, ouvia-se um sussurro da Belle Époque e a batida ecoada do tambor “Tupy or not tupy”. Era dia 15 de fevereiro e vários sapos enrugados e disformes, cheios de reservas e paradigmas estéreis, ainda zombavam:

— Oiiiss. Vinte e dois? Só se for depois, pois bois sois. – e riam ruidosos, à socapa.

Muitos desses sapos disputavam espaço no Teatro Lacult, no bairro Brasigirino. Entre o coaxar de velhos sapos e o inflar dos jovens anfitriões, desfilavam sapas surrealistas e celebridades cubistas, sempre acompanhados de figurantes expressionistas naquela semana de recíprocos desdéns corrosivos e de críticas ferinas proferidas pelos sapos conservadores.

Ouvindo os roncos dos sapos passadistas, o Sapo-boi, cheio de inquietações, brada eufórico: “Não foi!” – “Foi” – “Não foi”. Ele anuncia, aos berros, a presença do inquieto colega Sapo-Tanoeiro, esperançoso de rupturas, para ironizar e ridicularizar o que já estava martelado, lapidado e burilado pelos velhos sapos da normose intelectualizada.

Esses sapos ranzinzas insistiam em recitar as estéticas anteriores a fim de estimular as vaias irracionais naquele espetáculo de sandice exibido no teatro Lacult durante a “Semana de Mal-às Artes”. Nesse necrológio da mesmice, os versos metrificados, exaltados aos gritos por eles, duelavam contra a decomposição, o ilogismo e a aglutinação caleidoscópica da vanguarda. Os casmurros sapos demoliam a desconstrução cultural defendida pelos sapos modernistas que, cada vez mais, quicavam soltos no cenário da expressividade descontrolada e libertadora do Ode ao Burguês.

As cortinas se abrem e surge o Sapo-tanoeiro, alegremente sarcástico, que incentiva o rompimento formal e a devoração crítica propostos pelos futuristas endiabrados, entre eles Oswald de Andrade. Esse humor erosivo e proibido aglutina vários adeptos, entre eles um novo companheiro: o Sapo-cururu. Esse sapo é divergente, aspirante da liberdade e da simplicidade, e dá piruetas no certame modernista com as armas da desierarquização da linguagem cotidiana, sempre triscando:

— Sou Abapuru! Sou gigante e danço a poraçê, canto a brasilidade, espirro a popularização da arte, rumino a conhecência mítica, devoro e reinvento a cultura. E redigo em Andrade para reverberar: “Para telha dizem teia / Para telhado dizem teiado / E vão fazendo telhados” e, dessa forma, teia após teia, seguimos em busca da Muiraquitã, escondida no mato-virgem, longe de Pasárgada.

Diante de tal assimilação e apropriação poética, a elite retrógada dos sapos tenta reagir, tenta fugir do eminente Pneumotórax. Descontam a frustração num Sapo-Lobos, vestido elegantemente, mas que calça um pé de sapato e outro de chinelo. Espantam o pobrezinho com guarda-chuvas pretos, vangloriando os próprios papos no tutano da ignorância arraigada. Nesse epitáfio para o insignificante, acham-se modernos, mas são antimodernistas, pois não conseguem aceitar a possibilidade de fusão entre o primitivo e o inovador. Torna-se impossível para eles, vislumbrar o robustecimento simbólico de Cobra Norato e da Pauliceia Desvairada, são apenas os puristas, aqueles acorrentados à Poética raquítica e sifilítica que não aceitam os protestos e nem críticas.

Antes que os caturros sapos pudessem tomar mais alguma atitude nessa saga da Profissão de Fé, um outro sapo chega para concretizar o Prefácio Interessantíssimo: O outro Andrade: o Sapo-pipa. Um animal magnífico, em construção para a poética livre de grilhões, um Ser exibidor de seu abrasileiramento temático, tecido em rapsódia antropofágica que deseja devorar e digerir a transculturação. Ele está acompanhado da Ursa Maior, uma constelação de mulheres até então invisibilizadas, lideradas por Tarsila, ancorada nas raízes; Mafaltti, revitalizada no Carnaval e Pagu, revestida de criticidade. Eis aí o feminino que empodera a saparia do novo brejo multifacetado.

Nesta multiplicidade de síntese imaginária, emerge dessas águas fertilizadas, a Sapa-poesis. Vestida de Amar, Verbo Intransitivo, balança a cabeça da Uiara em suas mãos, com uma gota de sangue em cada poemarte e alinhava mais uma teia a fim de proclamar o atestado de óbito das culturas-cópias dominantes no Brasil. No seu corpo, exibe a tatuagem de um oito deitado em conexão com o Desvairismo que comemora o Bicentenário da Independência Brasileira – 1822 e o Centenário da Semana da Arte Moderna – 1922. A celebração no ano de 2022 perdura ciclicamente na compreensão do sem-fim. A Sapa-poesis revisita a saparia Tupy e seus girinos, retoma a repetição obsessiva para aprendizagem:

— Oiiiss. É vinte e dois? Foi ou não foi? Si foi, foi logo depois, pois passadistas, de novo, já sois.