Os acontecimentos que por ali pipocavam traduziam, em suma, uma espécie de romper com a estética artística que estava em voga. Eis a Semana de Arte Moderna

O Jornal Opção vai publicar, com a curadoria do presidente da UBE-Goiás, Ademir Luiz, 22 contos de 22 autores evocando de diferentes formas a Semana de Arte Moderna de 1922 — que completa 100 anos em fevereiro, ou seja, nunca acabou — como inspiração. As mais diferentes possibilidades estilísticas foram exploradas. Contos modernos, contos tradicionais, contos pós-modernos. De homenagens assumidas a severas reflexões críticas; narrativas evocativas, narrativas memorialísticas, narrativas ensaísticas, narrativas desconstrutivas. Algumas com humor, outras com amor, mas também com vaias, aplausos e mesmo com o som do coaxar de sapos antropófagos.

Pelos caminhos de Menotti

Sônia Elizabeth

Menotti Del Picchia aos 10 anos de idade | Foto: Reprodução

Veio de Menotti o caboclo Juca Mulato. O que de Del Picchia ficou na história, esse quase insano doutor poeta, prosador, político? O autor modernista que desenhou, em forma literária, um pacato caboclo, imortalizado em longo desenrolar de versos. E o que foi e representou a Semana de Arte Moderna, de 22? A que veio, pergunto? Menotti no centro dela, ativista nela, articulando, colaborando. Pelos braços dele, entro agora no “Correio Paulistano”. Leio a última coluna, toda à disposição da revolução que estava acontecendo nas artes. A poesia ali, alinhada aos tempos modernos, purismo brasileiro, liberdade de toda e qualquer expressão nos versos livres.

 “E o mulato parou/.

Do alto daquela serra/,

cismando, o seu olhar era vago e tristonho:/

Se minha alma surgiu para a glória do sonho,/

o meu braço nasceu para a faina da terra”

Menotti Del Picchia | Foto: Reprodução

Um trecho aí da poética picchiana, esse poema fundamental e importante para a literatura brasileira. Ah, esse marco são paulino, esse romper com as estruturas tradicionais, esse novo rebentando na manhã, esse padrão europeu nas artes, veios de surrealismo, cubismo, futurismo e mais ismos na história! Vou caminhando com Menotti, não paro por aqui. Vou como se desfilasse aos acordes de Villa-Lobos no desenrolar da Semana de 22. Algarismos surgindo, letras, arte por todo lado, liberdade, formas novas, maneiras singulares de dizer muitas coisas. A Primeira Guerra Mundial que tanta influência causou na mudança de mentalidade dos artistas. O novo olhar, o renovar, precisavam instalar-se no Brasil, com o advento da modernidade. Menotti e sua conferência sobre a nova estética, arrancando entusiasmo e vaias da plateia.

Centenário da Independência do Brasil, cenário propício para mudanças de toda ordem, sejam políticas, econômicas, artísticas, e Menotti Del Picchia, além de escritor também artista plástico, advogado, foi participante fundamental na revolução. Semana de Arte Moderna, divisor de águas da cultura nacional. Vou indo pelo Theatro Municipal de São Paulo, em 14 de fevereiro de 1922. Menotti é meu cicerone. Assisto danças, escuto música, vibro com poemas recitados, artes em exposição, palestras — a revolucionária palestra de Del Picchia, movimentando-se em teses polêmicas, Hélios — sol, assim Menotti assinava suas crônicas, atacando o passado e defendendo a arte do futuro. Na verdade, Menotti muitas vezes utilizou em sua obra influências de correntes estéticas com as quais queria romper. Daí a contradição entre muitas vezes o que pregava e o que escrevia. Menotti leva-me pela mão. Ocupo a primeira cadeira para ouvi-lo, na segunda noite, a fundamental noite da Semana de Arte Moderna de 22. Ovacionei-o quando disse da importância de uma arte brasileira própria, genuína.

Pintura de Menotti Del Picchia | Foto: Reprodução

Ora dirão que Menotti caminhou para a literatura de massa (?) mas não esqueçamos: foi um grande escritor. Sua participação na Semana de Arte Moderna talvez tenha sido mais importante que sua obra criada após o Movimento, mas haja talento para ser um dos principais participantes de tão importante revolução nas artes brasileiras. Juca Mulato acaso foi um poema devedor da arte parnasiana tão criticada pelos modernos? Contradições, pois. E o que é o ato de escrever senão o resultado de inúmeras e tantas vezes cruéis contradições?

Adentrando com Menotti vou descobrindo a arte nouveau de Di Cavalcanti e esculturas de Victor Brecheret. Vou curtindo cada detalhe do modernismo que assustou o tradicionalismo puro. Vou sabendo que o jeito de fazer arte modificou-se radicalmente. A arte seria então a melhor forma de traduzir a identidade do país Brasil, em todas as suas manifestações. Passo por Mário de Andrade, vejo de pé, especulando tudo, Plínio Salgado. Flerto com Villa-Lobos, ensaio um passo de dança com Guilherme de Almeida, volvo a atenção para Graça Aranha, invejo o figurino de Anita Malfatti. Menotti quase que ri de minha inocência e perplexidade.

“Seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista” — Di Cavalcanti

Mário de Andrade, Anita Malfatti, Paulo Menotti Del Picchia (no centro, de óculos), Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade | Foto: Reprodução

O Theatro Municipal de São Paulo, cartão postal, aquela toda inspiração na ópera parisiense, palco para a instalação do movimento modernista no Brasil. Di Cavalcanti, o pintor, que expôs suas obras no Teatro, assim se expressou sobre a Semana mais famosa do Brasil: “Seria uma semana de escândalos literários e artísticos, de meter os estribos na barriga da burguesiazinha paulista”. E foi. Realmente a falsa hipocrisia que vem dessas classes altas arrepia-se toda diante da ousadia, do novo, do que abre alas e rompe com o convencional. O que, na mentalidade delas, apresenta-se como um prostituir a moral existente em nome do desgoverno e da insanidade. Prosseguindo sempre ao lado de Menotti, descubro que todos os acontecimentos que por ali pipocavam traduziam, em suma, uma espécie de romper com a estética artística que estava em voga, também uma espécie de, digamos, crítica acadêmica, criar ou recriar um modernismo com fulcro nas vanguardas europeias, firmar a identidade nacional e popularizar a arte (será?).

Sabemos que na frente de todo o movimento de vanguarda, mudanças radicais já estavam acontecendo, feito a chegada da industrialização, crescimento urbano, a questão da imigração de estrangeiro (incutindo influências de outras culturas) e, notadamente, o fim da Primeira Guerra Mundial. E salve os artistas de coragem, como, além dos já citados nessa narrativa, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Sérgio Milliet, Tácito de Almeida, Guiomar Novaes, Manuel Bandeira (que nem pode ter tanta participação devido aos ataques de tuberculose).

Evento de cinco dias, segunda a sexta, cada dia dedicado a uma técnica. Oswald, o mais irreverente e debochado de todos os representantes da literatura, em seus O Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago. E quase ia me esquecendo de citar o seu livro “Pau Brasil”, totalmente distanciado do romantismo que consideravam piegas. Mário de Andrade e sua “Paulicéia Desvairada”. Graça Aranha, o que causou enorme rebuliço. Bandeira que escandalizou com o poema “Os Sapos”.

Menotti Del Picchia aos 90 anos | Foto: Reprodução

E ficamos por aqui que o espaço é nosso mas é escasso (e assim tem que ser). E vamos nós, escritores que não ousamos tanto (ou ousamos e não sabemos?), aplaudindo esses pares que construíram grandes andaimes em prol da libertação seja da palavra escrita, pintada, esculpida ou musicada. Aplausos de pé. E termino minha jornada ao lado de Menotti Del Picchia. Honrada e agradecida pela nobre e imortal companhia. Salve a Semana de Arte Moderna de 22! Correntes ao chão!