A guerra precisa de vanguarda, não a arte; a arte tem que ser evidente por si mesma e não precisa de proselitismo

O Jornal Opção vai publicar, com a curadoria do presidente da UBE-Goiás, Ademir Luiz, 22 contos de 22 autores evocando de diferentes formas a Semana de Arte Moderna de 1922 — que completa 100 anos em fevereiro, ou seja, nunca acabou — como inspiração. As mais diferentes possibilidades estilísticas foram exploradas. Contos modernos, contos tradicionais, contos pós-modernos. De homenagens assumidas a severas reflexões críticas; narrativas evocativas, narrativas memorialísticas, narrativas ensaísticas, narrativas desconstrutivas. Algumas com humor, outras com amor, mas também com vaias, aplausos e mesmo com o som do coaxar de sapos antropófagos.

Palmas e vaias

Eliézer C. Oliveira

Aparecido de Oliveira Silva, vinte e dois anos, solteiro, brasileiro, mulato rosado de cabelos lisos, estatura mediana, boa procedência familiar, temente a Deus, estudante da Faculdade de Direito São Francisco e suplente do 3º secretário do Centro Acadêmico XI de Agosto, escriturário de meio expediente do Banco Alemão. Na noite de quarta-feira, dia 15 de fevereiro, Aparecido comprou um bilhete de entrada para o Teatro Municipal de São Paulo no valor de cinco mil e trezentos réis, para assistir a um evento denominado Semana de Arte Moderna.

Aparecido, um iconoclasta das inovações estéticas, achava o termo “arte moderna” um oximoro (Aparecido começou a usar palavras difíceis e bengala com cabo de prata depois que ele entrou na Faculdade de Direito). A verdadeira arte deve ser velha, pois só o tempo poderia garantir o valor estético de uma produção; o tempo filtrava o relativismo do gosto de cada um, garantido que as obras estéticas se tornassem referências para os outros artistas. Não se tratava de imitar o passado, mas inspirar-se no passado. O próprio prédio do Theatro Municipal demonstrava isso, já que era um edifício novo — com pouco mais de dez anos — que já nascera velho, inspirado em estilos barroco e clássico.

“A Boba”, de Anita Malfatti | Foto: Reprodução

Aparecido era um homem metódico e pontual nos seus compromissos. O mundo sem regras era um mundo de caos e incerteza. Deus inspirou a Santa Escritura para orientar os homens a encontrar o caminho do Céu; as leis terrenas orientavam os homens a encontrar o caminho da justiça; as leis da natureza garantiam a previsibilidade das chuvas, as estações do ano, os ciclos das migrações dos pássaros, os movimentos dos astros. Tudo tinha regras. (Aparecido, por um instante, desviou os seus sublimes pensamentos para o fato de que o seu intestino sempre fora desregulado, ao ponto de ter que comprar um clister na Pharmacia do Alípio enfrentando os olhos zombeteiros da mocinha do balcão.) Por que diabos, então, as obras de artes não teriam regras? (Inconscientemente Aparecido cerrou os punhos, enquanto pensava nisso, o que levaria um entendido em linguagem corporal a descobrir uma personalidade colérica escondida sob uma aparência fleumática). A anarquia dos gostos de cada um não poderia ser o critério para avaliar a beleza da arte.

É verdade, admitiu Aparecido, que ele nunca havia gostado de ópera antes de entrar para a Faculdade de Direito e trabalhar no Banco Alemão. Antes disso, ele vivia dançando maxixe com as mulatas. Mas agora, não. Ele apreciava ópera, principalmente as italianas, que, de vez em quando, davam o ar da graça no Theatro Municipal. Mas a mudança no seu gosto musical não significava que regras podiam ser alteradas da mesma forma que se troca uma camisa. O seu gosto musical não mudou, apenas evoluiu. Era a falta de cultura que o fazia gostar de uma música primitiva, mas, quando ele saiu da caverna acústica popular, suas faculdades auditivas se abriram para sons mais belos e sofisticados.  (Aparecido ficou impressionado com a leitura da Alegoria da Caverna na aula de Filosofia do Direito.)

No saguão do Theatro, onde estavam sendo expostos quadros e esculturas, Aparecido contemplou “A Boba”, de Anita Malfatti. Dos nus fabulosos de Jean-Léon Gerôme, estamos caminhando para isso… O artista tem que retratar a excepcionalidade da beleza do mundo; já a feiura, ela é evidente por si mesma.

“Morro na favela”, de Tarsila do Amaral | Foto: Reprodução

Já sentado nas cadeiras do auditório (Aparecido desistira de ver o restante das obras), esperava ouvir a palestra do moço de nome esquisito que usava óculos redondos. Suas palavras ardiam em sua cabeça: “Aos nossos olhos riscados pela velocidade dos bondes elétricos e dos aviões, choca a visão das múmias eternizadas pela arte dos embalsamadores”. Múmias eternizadas é a sua mãe… “Basta de se exaltar as artimanhas de Ulisses, num século em que o conto do vigário atingiu a perfeição da obra prima.” Que absurdo comparar Ulisses a um malandro de rua.  “Morra a Elíade! Organizemos um zé-pereira canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do parnaso!”. Você vai ver o que é um charivari de vaias…

A palavra “vaia” teve um efeito de um comando automático em cão adestrado. O homem ficou possesso, levantou-se da cadeira e começou a vaiar, olhando para os lados, tentando influenciar os demais. Deu certo. Outros aparecidos seguiram o seu exemplo e houve uma batalha campal entre vaias e palmas, uma batalha com resultado previsível, já que a tecnologia bélica das vaias é muito mais eficiente e especializada do que a improvisação das palmas. Vaia é o animalesco do ser humano que se manifesta em meio aos sons guturais. Palmas é a demonstração civilizada de apreço, de modo calmo e sincronizado. As palmas alimentam os grandes oradores, as vaias lhes provocam indigestão.

O narrador onisciente já não tem condições de descrever o que se passava na cabeça do Aparecido naquele momento em que vaiava e uivava. Já sentado, os seus pensamentos já podiam ser concatenados em algo comunicável aos outros de sua espécie. A guerra precisa de vanguarda, não a arte; a arte tem que ser evidente por si mesma e não precisa de proselitismo. Inovação é tecnologia, útil para fazer máquinas, mas sem serventia para fazer arte. No palco, um jovem lia um poema: “O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: — ‘Meu cancioneiro. É bem martelado’”.

Aparecido levantou-se, novamente, completamente animalizado, arredondando a boca, enquanto expelia o som.

Dr. Aparecido de Oliveira Silva, cinquenta e dois anos, casado com Ângela da Silva Prado, branco, cabelo liso, de família ilustre, crente na existência do Grande Arquiteto do Universo, juiz federal e cafeicultor, udenista convicto. Enquanto esperava Ângela se arrumar para irem a um espetáculo de Jazz Band, no Municipal, Dr. Aparecido, na sua imponente biblioteca, guardava o “Macunaíma” na estante. Vamos chegar atrasados ao Teatro, mas e daí? (O poder fez Dr. Aparecido a se achar senhor de tempo, o tempo seu e dos outros). Na parede desnudada do cômodo, via-se com destaque o quadro “Morro na Favela”, de Tarsila do Amaral. (Dr. Aparecido lembrou-se satisfeito dos aplausos que recebera quando o leiloeiro batera o martelo para o seu lance ostentoso na compra dessa preciosidade.)