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Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Segunda parte da resenha “Celso Furtado: — Trajetória, Pensamento e Método” (Autêntica, 337 páginas), de Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes.

Num primeiro olhar que lancei sobre o livro dos dois Alexandres, imaginei se tratar de mais uma daquelas obras escritas por autores menores sobre o ex-ministro da Cultura do governo José Sarney. Para entender essa minha falta de humildade científica, volto aos tempos em que cursei o mestrado em Energia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Lá, tive o privilégio de conviver com o filho mais velho do professor Celso Furtado.

André Furtado foi meu professor na fase de créditos e também o orientador da minha dissertação. Anos mais tarde, ele viria a ocupar, com pleno merecimento, o cargo de pró-reitor de Pesquisa da Unicamp — função que conquistou graças à excelência de seus trabalhos científicos.

Durante o curso, esse grande pesquisador foi me apresentando obras de autoria de seu pai. Li “Formação Econômica do Brasil” e, ao concluir essa leitura — talvez a mais importante já feita sobre o país sob a ótica da economia e do desenvolvimento —, passei a conhecer outras contribuições de Celso Furtado. Em especial, aquelas voltadas ao estudo de um tema no qual ele se tornaria uma autoridade mundial: o subdesenvolvimento.

Mais que isso, aprendi um novo olhar sobre o Brasil, estruturado por uma abordagem original e fecunda para se compreender a formação econômica do país: o estruturalismo. O método histórico-estrutural de Furtado se tornou uma verdadeira pedra no sapato das ideias neoliberais no Brasil — que ele enfrentou com as armas de seu vasto conhecimento e coerência intelectual.

Celso Furtado e seu livro “Formação Econômica do Brasil” | Foto: Reprodução

Encerro essa reflexão com uma passagem de um pequeno grande livro publicado há alguns anos: “Como se Faz uma Tese”, do notável pensador italiano Umberto Eco.

No livro, Eco conta que, ao procurar em grandes livrarias da França e da Itália algo que o ajudasse a resolver o enigma de sua tese, saiu frustrado. Nenhuma grande obra lhe oferecia a chave que procurava. Até que, ao andar pelo Quartier Latin, entrou numa pequena livraria e começou a ler um livro obscuro de um autor medieval que jamais ouvira falar: um tal de abade Vallet. Ao concluir a leitura, soltou um grito de prazer: ali estava a resposta que buscava.

O episódio, narrado com humor e leveza, nos lembra de algo fundamental: cultivar a humildade científica é condição essencial para quem tem o espírito do eterno aprendiz.

O que aprendi no livro dos dois Alexandres

Aprendi a enxergar o grande pensador Celso Furtado de modo sistêmico. Explico.

A leitura do livro “Celso Furtado — Trajetória, Pensamento e Método”, escrito pelos economistas Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes, permitiu-me enxergar o economista e ex-ministro com olhos renovados. O que antes era, para mim, a imagem de um intelectual vinculado a um momento histórico — especialmente sua atuação como ministro no governo João Goulart — passou a ser a figura complexa e coerente de um pensador plural, mas profundamente centrado na realidade brasileira.

A chave interpretativa proposta pelos autores, ao delinear os “cinco Furtados”, revelou-se decisiva. Ao invés de um Furtado fragmentado, vi um pensador completo, cuja trajetória é marcada por coerência ética, ousadia intelectual e compromisso com o país. Conhecer cada um desses Furtados foi, portanto, uma forma de entender o todo — e esse todo é maior do que a soma das partes.

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Ao me debruçar sobre o livro “Celso Furtado — Trajetória, Pensamento e Método”, dos economistas Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes, descobri um Celso Furtado mais complexo, mais humano e ainda mais necessário. Já conhecia o formulador da Sudene, o intelectual da Cepal e o ministro perseguido após o golpe de 1964. Mas, ao longo das páginas da obra, fui levado a enxergar um pensador com múltiplas camadas — um homem cujo pensamento se reinventa conforme os desafios históricos e que alia método à sensibilidade diante da realidade nacional.

Os autores propõem uma leitura em que Celso Furtado é visto em cinco dimensões analíticas — ou, como chamam, “cinco Furtados”: o homem de ação, o intelectual de formação francesa, o formulador estruturalista, o pensador do desenvolvimento e o crítico da modernidade periférica. Cada uma dessas faces ilumina aspectos de sua trajetória que, integrados, compõem o retrato de um intelectual singular.

No Furtado homem de ação, o livro reconstitui sua intensa participação nos bastidores do Estado brasileiro, sobretudo no momento em que concebeu e dirigiu a Sudene, entre 1959 e 1964. Para os autores, ele foi “um intelectual que aceitou o desafio de planejar o desenvolvimento sob os marcos do Estado nacional” — e mais do que isso, “um formulador de políticas públicas orientadas por um projeto de país”. Essa ação prática, comprometida com a superação das desigualdades regionais, mostra um Furtado que acreditava que a teoria só faz sentido quando se conecta à transformação social.

Mas é ao mergulhar no Furtado intelectual de formação francesa que minha percepção se ampliou decisivamente. O jovem paraibano, que se graduou em Direito no Rio de Janeiro, chega a Paris no pós-guerra — uma cidade que, segundo os autores, o marcou profundamente: “Furtado encontra em Paris não apenas o rigor metodológico da economia clássica, mas também a inquietação existencial da literatura e da filosofia francesas” . Esse encontro o tornaria um pensador de fronteiras — um economista com sensibilidade estética e ética. Foi nessa fase que ele redigiu sua tese de doutorado na Sorbonne, tornando-se o primeiro brasileiro doutor em economia por essa universidade.

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Celso Furtado: um dos economistas brasileiros mais conhecidos no exterior | Foto: Reprodução

O Furtado estruturalista, terceiro da lista, é talvez o mais conhecido. Mas o livro acrescenta nuances importantes ao mostrar como sua passagem pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) o leva a construir uma crítica sólida ao “modelo centro-periferia”. Para os autores, sua maior contribuição nesse campo foi propor “uma ruptura epistemológica com o pensamento econômico ortodoxo”, pois via o subdesenvolvimento não como uma etapa anterior ao desenvolvimento, mas como “uma condição estrutural específica, com raízes históricas próprias” . Essa visão se tornou uma chave interpretativa duradoura para pensar a América Latina.

A quarta dimensão, o Furtado pensador do desenvolvimento, amplia seu escopo de atuação para além do Nordeste ou da América Latina. O livro mostra como, mesmo no exílio, o economista jamais deixou de pensar o Brasil. Seu clássico Formação Econômica do Brasil é revisto pelos autores como “um esforço notável de síntese entre história econômica, sociologia e interpretação nacional” . Nesse ponto, percebi como Furtado jamais se isolou em categorias técnicas: sua economia era também cultura, política, memória. Ele analisava os ciclos econômicos brasileiros com uma rara combinação de densidade histórica e vocação transformadora.

Por fim, o Furtado crítico da modernidade periférica revela um pensador amadurecido, desconfiado das promessas fáceis do progresso. Segundo os autores, esse último Furtado “enxerga os perigos de uma modernização sem conteúdo social, consumista, dependente e alienada”. Aqui, sua crítica ganha contornos quase proféticos. Ele já previa, nas décadas de 1980 e 1990, os riscos da financeirização da economia, da perda de soberania do Estado e da fragmentação do tecido social brasileiro.

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Celso Furtado: o economista que praticamente reinventou o estudo de economia no Brasil | Foto: Reprodução

A leitura integrada dessas cinco dimensões permitiu-me não apenas entender melhor Celso Furtado, mas também repensar o papel do intelectual público. Os autores mostram que ele não era apenas um formulador de políticas, mas um “tradutor de uma nação em busca de si mesma” . Ao colocar o Brasil no centro de suas preocupações, recusando modelos importados e fórmulas rápidas, Furtado demonstrou que pensar exige enraizamento e coragem.

Concluo essa leitura com uma confissão: ganhei um novo olhar sobre Celso Furtado. Aprendi, com o livro dos dois Alexandres, que suas partes — o homem de Estado, o acadêmico europeu, o cepalino, o escritor de sínteses e o crítico do presente — não se anulam, mas se enriquecem. Conhecer essas partes é, paradoxalmente, conhecer melhor o todo. E o todo nos revela um dos maiores intérpretes do Brasil: um pensador que soube unir razão e imaginação, análise e utopia, técnica e ética. Um economista, sim — mas, acima de tudo, um pensador do país real.

Desenvolvimento, subdesenvolvimento e dependência

A leitura do livro “Celso Furtado — Trajetória, Pensamento e Método”, de Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes, oferece não apenas um mergulho biográfico e intelectual na vida do maior economista do Brasil, mas um reencontro com as categorias fundadoras de sua obra: desenvolvimento, subdesenvolvimento e dependência. Longe de conceitos estanques, esses termos, em Furtado, articulam-se como parte de uma visão crítica e histórica da realidade brasileira, pensada a partir da periferia do capitalismo e em confronto com os modelos exógenos de modernização.

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Para Furtado, desenvolvimento não se resume ao crescimento do produto interno bruto ou à elevação de indicadores econômicos. Ele compreendia o desenvolvimento como transformação estrutural e emancipação social, uma mudança profunda nas formas de produção, distribuição de riqueza e acesso à cultura e ao poder. Trata-se de uma visão ampla, que engloba a construção de um projeto nacional autônomo, com raízes históricas, políticas e culturais. Desenvolver, para Furtado, era dotar o país de capacidade endógena de formular seu futuro, enfrentando seus bloqueios internos com planejamento, reforma agrária, educação e democratização econômica.

É nesse ponto que o conceito de subdesenvolvimento ganha centralidade em sua teoria. Diferente da visão evolucionista de que os países periféricos estariam em atraso em relação ao centro desenvolvido, Furtado definiu o subdesenvolvimento como uma estrutura historicamente produzida pela inserção desigual da periferia no sistema capitalista global. Ele não é uma etapa anterior ao desenvolvimento — é um modelo perverso e autônomo de reprodução da desigualdade. Economias subdesenvolvidas, como a brasileira, não são versões incompletas do modelo europeu ou norte-americano, mas resultantes de um processo de dominação, dependência tecnológica, concentração de renda e elitismo político.

A dependência, nesse sentido, surge como expressão das amarras externas que limitam a autonomia dos países latino-americanos. Mas, diferentemente de certos teóricos da dependência que viam essa condição como estruturalmente intransponível, Furtado acreditava na possibilidade de superação mediante planejamento estratégico, vontade política e reforma das estruturas sociais. Sua proposta não era de isolamento, mas de autonomia relativa: construir uma inserção internacional que permitisse ao Brasil preservar seus interesses históricos e sua identidade cultural.

O livro dos “dois Alexandres” é eficaz ao mostrar que esses conceitos — longe de pertencerem apenas ao vocabulário econômico — compõem uma cosmovisão original e comprometida. A integração entre pensamento e método, entre teoria e ação, revela o traço mais marcante de Furtado: um intelectual que nunca se afastou da realidade concreta de seu povo. Seu pensamento é um convite permanente à reflexão sobre o papel do Brasil no mundo e sobre a urgência de se pensar o desenvolvimento não como imitação, mas como invenção de um caminho próprio.

A leitura do livro “Celso Furtado — Trajetória, Pensamento e Método” é altamente recomendada. Muito bem escrito, ele oferece um retrato vívido de uma época em que se acreditava no Estado como indutor do desenvolvimento econômico e social. Nesse Brasil da era Juscelino, Celso Furtado teve participação direta como um verdadeiro homem de Estado, visionário e comprometido com as grandes causas nacionais. Cassado em seus direitos políticos após o golpe de 1964, viu-se impedido de atuar no próprio país, mas foi acolhido com entusiasmo por universidades de prestígio, como a Sorbonne (França), Yale (EUA) e Cambridge (Inglaterra). Naquela época, o mundo já reconhecia Celso Furtado como uma autoridade incontornável nas questões do subdesenvolvimento.

O livro de Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes tem tudo para se tornar um clássico que devemos, vez por outra, revisitar — tanto pela densidade da análise quanto pela atualidade das reflexões sobre o Brasil e seus dilemas históricos.

Trechos do livro sobre Celso Furtado

1

“A história do subdesenvolvimento consiste, fundamentalmente, no desdobramento desse modelo de economia em que o progresso tecnológico serviu muito mais para modernizar os hábitos de consumo do que para transformar processos produtivos.” (O que é o subdesenvolvimento.)

2

“O “milagre brasileiro, para Furtado, era a materialização desse processo: uma rápida industrialização, alicerçada na instalação de empresas transnacionais com elevada intensidade tecnológics, garantindo uma reduzida parcela da população aos bens de consumo mais “modernos” do capitalismo. (Crítica ao “milagre” brasileiro.)

3

“Em 1972, torna-se [Celso Furtado] professor visitante da American University, sediada em Washington, durante o na letivo de 1973 a 1974, regressa à Universidade de Cambridge, quase duas décadas depois de ter escrito ‘Formação Econômica do Brasil’. O jovem e promissor economista do passado havia se transformado num dos principais teóricos do desenvolvimento e num professor de prestígio em universidades da Europa e dos Estados Unidos.” (Respeito de grandes universidades do mundo pela produção acadêmica de Celso Furtado.)

Quem são os dois autores do livro

Alexandre de Freitas Barbosa

Alexandre Macchione Saes e Alexandre de Freitas Barbosa: pesquisadores da obra e da vida do economista parabaino Celso Furtado | Fotos: Reproduções

É professor de História Econômica e Economia Brasileira do de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Brasileiros. Bolsista do CNPQq.

Publicou pela Almeida Editorial os seguintes livros: “O Brasil desenvolvimentista e a trajetória de Rômulo Almeida: projeto interpretação e utopia” (2021) e “A formação do mercado de trabalho no Brasil” (2024).

Alexandre Machione Saes

É professor de História Econômica do Departamento de Economia da faculdade de Administração, Economia e Contabilidade da Universidade de São Paulo, diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Bolsista de Produtividade do CNPQ.

Publicou os livros “Conflitos do capital” (2010) e “História econômica geral”, em coautoria com Flávio Saes. Organizou, com Alexandre de Freitas Barbosa, o livro “Celso Furtado e os 60 anos de Formação Econômica do Brasil”.

Salatiel Soares Correia, engenheiro, mestre em Economia, ensaísta e escritor, é colaborador do Jornal Opção.