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Jô Sampaio

Especial para o Jornal Opção

No livro “Poesia Reunida”, publicado pela Editora Ex Machina, estão todas as produções poéticas de Edival Lourenço, do primeiro (“Estação do Cio”) ao mais recente livro.

Dessa coletânea de Edival Lourenço, apresento algumas considerações sobre “Pela Alvorada dos Nirvanas”, o mais longo de todos os textos líricos do citado livro, e surge como o abre-alas de sua “Poesia Reunida”.

O título “Pela Alvorada dos Nirvanas”, composto por um sintagma nominal, condensa em si o momento de transição entre o escuro e a luz e, na perspectiva poética, essa imagem, no poema, sugere uma viagem pela vida, onde os momentos de trevas e de dificuldades cedem lugar a um novo amanhecer, a um novo começo.

A substituição do adjetivo “nirvânicas” pela locução que lhe é correspondente “dos nirvanas” e a flexão de número (plural) sugerem ao leitor deduzir que o poeta busca atingir os dois estados da espiritualidade, segundo o Budismo: o da extinção e o da libertação, ou seja, com e sem remanescente.

Edival Lourenço capa de Poesia Reunida 1

Assim, o poeta Edival Lourenço inicia seu longo poema de caráter autobiográfico: “Essa manhã de dezembro/ comete atrocidades/ ao meu coração/ é como um trem contrário/ que atropela operários/ sem apelo”.

Nesses versos acima se dá a explosão da natureza poética contida nas imagens que se apresentam mediante a associação das ideias simbolizadas (manhã de dezembro X trem ao contrário) num paralelismo formal e semântico, em que o poeta (o operário) vai assentando nessas duas estrofes, evidenciando, assim, o fim de um ciclo referendado na palavra “dezembro” (último mês do ano) e as lembranças que esse célere ritmo temporal (um trem correndo ao contrário) trazem do passado para o presente. Tal analogia tem o reforço da conexão feita pela conjunção comparativa “como”.

Nessa avalanche de lembranças (que atropela operários), o poeta, na construção do seu edifício, sente-se indeciso, sufocado quanto ao uso adequado das ferramentas (as palavras) apropriadas ao ofício de lutar com o signo linguístico em todas as suas potencialidades. Nessa batalha metalinguística, percebe-se a busca do reinado absolutista do triunvirato da palavra – poema – poesia.

Assim, tijolo por tijolo, num encadeamento paralelístico das imagens (visto nas primeiras estrofes) vem a sensação de morte que a palavra pode trazer aos que a têm engasgada na garganta, em ânsias de ser expelida:

“Estou pela hora de cometer/ um haraquiri com o gume/ das palavras

Estou a ponto de sofrer/ um aneurisma/ na jugular poética”

A palavra pede espaço. Exige passagem. Exige ser decifrada. Exige ser transportada para o mundo da poesia. “A Poesia elide sujeito e objeto”, disse Drummond. Palavra, poesia e Poema virão juntos numa só golfada, no mesmo gorgolejo, no mesmo arroto, erectação?

Edival Lourenço 420 capa de Pela Alvorada dos Nirvanas 1q

O poeta, ainda em espasmos, ainda no estupor do engasgo, sente o gosto do “Pão dos eleitos, alimento maldito que isola e une” no dizer de Otávio Paz em “O Arco e a Lira”.

Como se livrar desse pomo de Adão que cresceu para dentro? Como se livrar da angústia da palavra encravada? Interroga o poeta:

“Quem me salvará do furor/ lírico nessa estuporada/ manhã de dezembro?”

Eis que o poder salvífico surge no retorno à infância, no regresso à casa paterna:

“A velha casa está repleta/ de antigos retratos/ congelando seus entes/ – coleção de insetos fixada a alfinetes/ sobre um feltro de emoções/ – Onde meus filhos estão todos/ – um por um – vivos e ainda crianças/ e portam esperanças de um futuro/ tão promissor/ cujos limites se alongam/ pelas resinas do amanhã”

Surge, então, a casinha da infância, ponto de partida da viagem “Pela Alvorada dos Nirvanas”. Não era noite, não era dia, claro e escuro, à espera da luz. Essa alvorada poética traz os sons, as cores e as imagens da casinha da infância.

Os fenomenologistas, em seus estudos sobre os valores e intimidades do espaço, colocam a casa como um ser privilegiado. Em “A Poética do Espaço”, Gaston Bachelard disse: “A Casa é nosso canto do mundo. Ela é nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo… Os escritores da ‘casinha pequenina’ evocam com frequência esse elemento da Poética do Espaço”.

Assim, na carona do “trem ao contrário”, o ser do poeta adentra a casinha da infância, e esta se transforma em um verdadeiro santuário de imagens:

“Nesses retratos de sépia e nostalgia/ arca de memórias/ nossos olhos estão repletos/ de promessas/ jamais confirmadas/ nossos sorrisos (estagnados de tantos anos atrás)/ como que adornam/ os outdoors de uma/ campanha eleitoral/ frustrada.”

Edival Lourenço: um dos mais importantes prosadores e poetas do país | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

As “resinas do amanhã”, cadeias de moléculas repetidas, vão se ligando, unindo-se no entrelaçamento desse longo poema narrativo, em cuja tessitura predominam doces, tristes e profundas reflexões sobre a relação do poeta com o passado, presente e projeções futuras.

Abre-se a arca, “arca de memórias”, donde saem os retratos, os sorrisos, as promessas, as frustrações, tudo, enfim, confirmando o que disse Henry Bergson: “A memória desempenha um papel crucial na compreensão do tempo. Ela não é apenas um armazenamento passivo de experiências, mas uma força que integra o passado e o presente”.

A arca – arca da memória – é inesgotavelmente mágica, fonte de fantasmas, de visões e de imagens para as quais não há limites, como disse Mircea Eliade, em Imagens e Símbolos: “As imagens constituem abertura para um mundo trans-histórico; não é, entretanto, seu menor mérito. Graças a elas, as diversas histórias podem se comunicar”.

O poema segue seu curso na força da “Evolução Criadora”. Evolui em profundidades, em correntezas e cascatas que destroem barreiras, inclusive os limites temporais. Presente, passado, futuro, passado-histórico, passado-imaginado, futuro projetado, enfim, tudo o que foi e “a vida inteira que poderia ter sido e que não foi”, no dizer de Manuel Bandeira, em Pneumotórax.

O poema evolui, evolui e se torna poesia mediante o jogo que o poeta Edival Lourenço faz com a linguagem e a vida. As histórias surgem trazendo a terra natal, a família, os amigos, o indivíduo, o conhecimento amoroso, as frustrações, o choque social. Nada escapa à lente poética do autor.

“Mas no presente instante/ pelos prodígios da memória/ na mansidão de uma tarde/ antiga sobre os fenos/ das estações de outrora/ eu pego aqueles fatos/ sem laço sem fúria/ e posso viver um tempo/ (não aquele que não volta, mas o)/ que não passa nunca.

São muitos os fatos: o zelo da mãe, a morte do pai, os remédios (capivarol, cibalena e outros), o pôster de Rose de Primo (sem forças para acionar os monjolos do corpo), o primeiro goró, Agda Formiga, a macutema do Tote, a casa de saliência, o voo do teco-teco e… e… e…

E até a dor e a vertigem da ausência, do alheamento “não podem modificar/ sequer uma vírgula de luz/ de qualquer amanhecer”. A luz do amanhecer seria a presença das verdades apenas intuídas, captadas pela percepção? Em A Metáfora Viva, Paul Ricoeur diz: “Sem dúvida, a imagem introduz um momento de ausência e, nesse sentido, uma primeira neutralização da posição inerente à fé perceptiva”.

“Minha definitiva ausência/ que a suponho de dor e vertigem/ sei que em verdade/ A não ser por alguns dados/ de cartório e previdência/ não há de modificar/ sequer uma vírgula de luz/ de qualquer amanhecer.

O poema cresce, avoluma-se, agiganta-se como um rio que sai do seu leito (a casinha da infância) e, ao receber águas de outros afluentes, transborda por caminhos vários e se universaliza.

Vêm as inquietações, as dúvidas, as reflexões: O que é a realidade? O que é a lucidez? O que é a esperança? O que é a verdade? Quem é Deus?

“Deus é aranha/ que trama sua teia/ em pilastras de rapel/ vingamentos insondáveis/ de engenharia flutuante/ na lacuna pré-universal.

O poeta liberta o poema e lhe dá ordem de seguir em frente, de cumprir sua missão de palavra com força de depuração, de salvação, mesmo com todos os obstáculos:

“SEM amparo de manifesto/ que o poema se vá/ e se manifeste/ no many fast/ livre, ainda que em queda/ com carnedura/ strong enough ó my dog!/ para nutrir a matilha/ no auge da penúria/ de esbulhados chacais do tempo/ mesmo que o poeta/ tenha limitado seu verso/ com paciência mórbida/ de quem lapida/ a própria lápide”.

O poeta Edival Lourenço deixa expressa a consciência de que “lutar com as palavras é a luta mais vã”, segundo disse Drummond. Num misto de desalento, fica sugerida sua incerteza quanto à vitória travada através da linguagem. Perceptíveis também são as frustrações e dificuldades que o poder da palavra possa ter por parte de quem a recebe, dúvida, aliás, incômoda a todo semeador. Saberia o interlocutor captar todo o significado expresso com ideias e sentimentos?

A gestação de um poema traz dor e angústias, já citadas no início. Mister se faz que o cordão umbilical transporte oxigênio e nutrientes essenciais ao desenvolvimento do feto (a palavra na placenta da poesia), nutrida com profundeza de sentimentos e originalidade. Mas… todo poeta empreende essa luta? Todo poeta se debate com os malabarismos verbais? O processo de criação é o mesmo para todos?

“Para o poeta sem talento/ existe o intertexto/ a cola a influência/ o pastiche o diálogo/ a compilação o post-it/ o plágio descarado/ o déjà vu/ a citação a epígrafe/ o ipsis litteris/ o Ctrl C + Ctrl V.”

O poema é fiel ao seu propósito e segue sua busca “Pela Alvorada dos Nirvanas” e o final é epifânico “e tudo se revela pleno/ assombrosamente pleno/ e cristalino”. Mas… ao poeta, essa revelação lhe traz dúvidas.

“Eis que/ ó meu Deus!/ eis que nessa hora/ ao mesmo tempo densa e fluida/ nesse momento fatídico/ de eventos improrrogáveis/ a carapaça dos mistérios/ se rompe em mil pedaços/ cujos cacos são logo varridos/ pela viração sobrenatural/ e tudo se me revelou pleno/ assombrosamente pleno/ e cristalino/ sem alvéolos nem novelos/ na justa medida/ de tolerância das retinas.

Mas de que me vale/ ó meu Deus/ essa súbita revelação / (mais que mera/ calamidade de luz/ se tudo agora é infinito?”

Além do que se pode intuir, captar, deduzir, descobrir consoante o nível da mensagem veiculada no poema “Pela Alvorada dos Nirvanas”, há também que se considerar o aspecto formal.

Nesse plano, o poeta Edival Lourenço usou na tessitura do seu poema grande riqueza de recursos estilísticos denotadores da habilidade do poeta no trato da tríade “palavra-poema-poesia”.

Assonâncias, aliterações, onomatopeias e a musicalidade respondem pela riqueza do estrato fônico.

A repetição dos paralelismos sintáticos e o uso de frases nominais em algumas estrofes sugerem um cenário de monotonia, de pouca mutabilidade, além de dar maior intensidade às descrições, trazem também certo impacto visual.

“[…] entre alarmes e buzinas/ e lamentos de ambulância/ entre a cantilena dos bêbados/ e o escasso canto de galos/ entre cantares de pneus/ e reclames de ilusões entre nostálgica vinheta do gás/ e o berro sem bezerro que tem/ o vendilhão de cuscuz”.

O livro “Poesia Reunida” traz uma rica e elucidativa apresentação feita por Iuri Pereira, mestre em Teoria Literária pela Unicamp, editor e professor de Literatura. Em suas palavras, o professor Iuri expôs a trajetória de EL pelos caminhos da poesia, descobrindo em sua poética fortes ligações com o Modernismo e várias características, influências, tendências, preciosidades linguísticas e estilísticas que associam nosso poeta ao Concretismo vigente no cenário da poesia dos anos 1980.

A apresentação feita por Iuri Pereira é tão profunda que poderia até servir de bloqueio a qualquer outra pessoa que, abelhudamente (como eu), resolvesse expor seu encantamento sobre os escritos de Edival Lourenço, o escritor goiano mais premiado no cenário nacional.

Edival Lourenço é bacharel em Direito, membro da Academia Goiana de Letras, ex-presidente da União Brasileira de Escritores-seção de Goiás. “Centopeia de Neon” recebeu o Prêmio Nacional de Romance do Estado do Paraná (1994). Ganhou o segundo lugar do Prêmio Jabuti com o livro “Naqueles Morros, Depois da Chuva”, foi também agraciado com a Comenda Jorge Amado, da UBE do Rio de Janeiro, figurando, até o presente momento, como o escritor goiano mais premiado no cenário nacional.

Jô Sampaio, mestre em Literatura e Crítica Literária, membro do ICEBE, da UBE-GO e da Agnl, é colaboradora do Jornal Opção.