Opção cultural

Com novo álbum, lançado em 24 de agosto, os velhos ícones não criam; soam recursos estilísticos já desbotados, surrados, suados
[caption id="attachment_104486" align="aligncenter" width="620"] Tribalistas: Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes | Foto: divulgação
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André Luiz Pacheco da Silva
Especial para o Jornal Opção
Os talentos individuais de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown e suas respectivas carreiras são incontestáveis. Suas posições, funções e contribuições para o surgimento do Tribalismo na música brasileira fizeram do projeto um happening, genial. Fizeram um espetáculo, saíram do palco sem bis, imaculados e amados. No entanto, a relevância do novo trabalho em conjunto é questionável.
Após o boom que causaram, o trio fez jus aos versos da canção que o apresenta enquanto um antimovimento, desintegrando-se logo em seguida e desiludindo a nação. Ainda que as parcerias tenham se mantido nos respectivos projetos individuais, o retorno dos Tribalistas era apenas uma expectativa e, depois de tantos anos, restava apenas se contentar com aquelas treze faixas. Porém, no fim do ano passado, os três se apresentaram juntos e surgiram rumores de um novo álbum acontecer. E aconteceu. Antes não tivesse acontecido.
Os três são mais que um grupo, são uma tribo com identidade musical própria, costumes sonoros próprios, método de composição instituído e pouca amplitude criativa. Como eles mesmo dizem, na segunda faixa do novo álbum, juntos são um só. Um só artista com dificuldades criativas, com recursos artísticos desbotados, que vive na sombra dos louros de outra época.
Em 2002, quando Arnaldo, Marisa e Brown se apresentaram como “Tribalistas”, as testemunhas do fenômeno Marisa no Jazzmania, os reminiscentes do Rock Brasil, os emepebistas, bossanovistas, os fãs do axé music, os viúvos do tropicalismo e as torcidas de Flamengo e Corinthians puseram seus olhos grandes sobre eles. O hit “Já sei namorar” estourou nas rodas de violão, nas rádios e nas boates: na crista da onda da febre do remix, embalava os solteiros.
Do outro lado, o clássico da MPB deste século, “Velha Infância” fascinava todo mundo, era trilha de paixões secretas e declaradas; com seus quatro acordes, soava de todo e qualquer violão; quem não tinha um amor, queria ter só para cantar de um coração para outro. Manifestos como as faixas “Carnavália”, “Carnalismo” e “Tribalistas” mexeram com a nostalgia dos saudosos e atiçaram a fraca brasa da esperança do surgimento de um movimento na música brasileira. Versos como “segredos de liquidificador” e “um dia eu já fui chimpanzé” eram familiares a quem se deliciou em saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina e que respondia de peito inflado: “Yes, nós temos banana!”. Na cozinha da música brasileira, os tropicalistas já haviam deixado receitas e ingredientes para fazer a salada e os tribalistas aproveitaram.
A neobossa “Pecado é lhe deixar de molho” é uma bonita homenagem, sem excessos, com um arranjo para João Gilberto nenhum botar defeito. Além disso, ao longo daquele álbum, as dissonâncias ressoam bem distribuídas. Outras canções encorpam o debut com bom desenvolvimento, com leveza e peso, simplicidade e sofisticação, ingenuidade e maturidade. Enfim, há 15 anos, essa tríade, esse trinômio, essa trindade, esse trímero mostrava a extensão de seu talento, suas matizes estéticas e sua capacidade inventiva, agradando a gregos, troianos, egípcios. Republicanos, monarquistas, tribalistas aplaudiam enquanto o trio saía de cena.
Em sua diáspora tribalista para o Novo Mundo fonográfico, o novo álbum começa com uma canção tratando sobre retirantes, refugiados. Logo de início, há a presença de dois recursos típicos dos Tribalistas já explorados à exaustão: a gravíssima voz de Arnaldo recitando versos e as agudíssimas e manjadas vocalizações de Marisa. Cada um se repete posteriormente. Nem mesmo as referências às obras O Guesa e Vozes d’África dos poetas românticos Sousândrade e Castro Alves, respectivamente, desviam a atenção da já cansada fórmula tribal de cantar. Com letra instigante e reflexiva, com exceção do desnecessário refrão em inglês, a primeira canção política dos Tribalistas deixa a desejar.
A quarta faixa do álbum é irmã de outra canção gravada por Marisa em seu “Infinito Particular”, lançado em 2006. “Vilarejo” é composta pelo trio em parceria com Pedro Baby; Pretinho da Serrinha se junta aos compositores para assinar a apaixonada “Aliança”, que encaixa com a mesma proposta de “Velha Infância” no álbum anterior. O arranjo requentado não é nada criativo, tampouco o é a letra, mas a faixa é amorosa, cativante, bonitinha e gruda como chiclete, é forte candidata a cair no gosto popular.
Ao longo do disco, encontramos a interessante “Baião do Mundo”, uma oração tribalista ao elemento água. Os versos vazam para dentro dos nossos ouvidos e trazem na correnteza uma sensibilidade estética, com a percussão de Brown marcando o jorrar rítmico. Uma das poucas faixas originais deste álbum, pode passar despercebida em meio a tanta repetição estilística por ser, ironicamente, destoante do conjunto.
Ao ouvir “Feliz e Saudável”, é possível que soe familiar, isso porque a introdução tem como referência “A Minha Menina” d’Os Mutantes. Ambivalente, ora amorosa, ora vingativa, essa faixa nos faz lembrar a versatilidade com a qual os Tribalistas surgiram no início do século. Um background tropical, arranjo criando diferentes ambientes para casar letra e música e sem perder o fio da meada, tudo isso em menos de três minutos.
De forma geral, cada faixa tem a tatuagem tribal. “Ânima” e “Fora da Memória” não fogem ao quadrado e “Peixinhos”, tal como “Mary Cristo” em 2002, parece corresponder à cota de ingenuidade e leveza presente nas obras do trio, sobretudo, nas de Marisa. A participação da cantora portuguesa Carminho é um charme para a canção. Ponto positivo. A vocalização de Marisa se repetindo em todas as faixas cansa, aqui não será diferente. Ponto negativo. E por falar em características individuais que se sobressaem, a faixa “Trabalivre” é a cara de Arnaldo, tem o seu DNA, figuraria em um de seus álbuns solo sem nenhum estranhamento.
Se a última faixa do álbum de 2002 era um cartão de visitas que inspirava, que animava, que colocava mão no teto e chão no pé, o mesmo não acontece agora com “Lutar e Vencer” que convida a participar dessa “ocupação tribalista”. E, apesar de parecer ser um b-side de “Tribalistas”, não convence, não tem a mesma força, nem a mesma jovialidade. Um retorno já não era tão necessário, um álbum novo menos ainda. Caíram no erro do revival. Time que vence no tempo regulamentar não volta a campo para mais alguns minutos.
André Luiz Pacheco da Silva é estudante de psicologia e psicanálise, escritor e melômano.

O quadro, comandado por Michel Teló, foi uma grande sacada da TV Globo e deve se repetir mais vezes nos próximos anos
[caption id="attachment_104470" align="aligncenter" width="620"] Cantor Michel Teló esteve à frente do quadro "Bem Sertanejo"[/caption]
Chega ao fim a terceira temporada do quadro “Bem Sertanejo”, comandado pelo cantor Michel Teló no Fantástico da TV Globo. As histórias, entrevistas e canções com grandes nomes da música sertaneja alavancaram ainda mais a audiência do programa dominical e contabilizaram milhões de visualizações nas redes sociais.
Essa é uma prova concreta que o sertanejo é o gênero musical mais popular do Brasil, conquistando por isso, grande espaço na mídia. Conhecido até em outros países devido ao estouro do “Ai se eu te pego”, Michel Teló já é figura carimbada na música e na televisão. O cantor esbanja carisma em programas como o The Voice Brasil e agora no Fantástico.
Nesta terceira temporada, o Bem Sertanejo viajou num “food truck” pelos estados brasileiros que influenciaram e ainda influenciam o sertanejo. São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Tocantins, Mato Grosso do Sul e claro Goiás, tiveram destaque no quadro. Michel Teló bateu papo sobre vida, carreira e música com grandes ícones como Almir Sater, Bruno, Chitãozinho e Xororó, Leonardo, Zezé di Camargo, Jorge, Renato Teixeira, Sérgio Reis e Luan Santana. E ainda teve pratos típicos de cada região ao final de cada gravação.
Em Goiânia, talvez um dos melhores episódios desta temporada, o quadro foi gravado no Memorial do Cerrado, um dos pontos turísticos da capital. Michel Teló encontrou as principais vozes sertanejas do estado: Zezé di Camargo, Leonardo, Bruno (da dupla com Marrone) e Jorge (da dupla com Mateus). No cardápio, galinhada com pequi e doce de leite goiano.
O projeto rendeu até um DVD, gravado em Curitiba no início do ano. No trabalho, Michel Teló canta com feras como Maiara e Maraísa, Jorge e Mateus, Marília Mendonça e Luan Santana. O repertório contou com vários clássicos da música sertaneja como “Menino da Porteira”, “Chico Mineiro”, “Estrada da Vida”, “Fio de Cabelo” e “Pense em Mim”, além de dez músicas inéditas.
O fato é que o quadro foi uma grande sacada da TV Globo e deve se repetir mais vezes nos próximos anos. Por um lado é bom ver o estilo ganhando cada vez mais espaço e respeito em todos os cantos do Brasil.

Um dos grandes poetas modernos dos Estados Unidos da América, John Ashbery, vinculado à “Escola de Nova York”, que despontou no cenário cultural nas décadas de 1950 e 1960, ao lado de nomes como Frank O’Hara, faleceu no domingo, 3, em sua residência, de causas naturais.
Bastante elogiado por críticos de grande estatura, como Harold Bloom, Ashbery ganhou o Pulitzer, em 1975, pelo livro “Self-Portrait in Convex Mirror”.
Abaixo, uma tradução de seu poema “A blessing in disguise”, feita por Adriano Scandolara, e publicada no site Escamandro em 1º de janeiro de 2014.
[caption id="attachment_104365" align="alignleft" width="300"] John Ashbery (1927 - 2017)[/caption]
Um mal que vem para bem
Sim, eles estão vivos e podem ter essas cores, Mas eu, em minha alma, estou vivo também. Sinto que devo cantar e dançar, para dizer Isso de certo jeito, sabendo que você pode estar atraído por mim. E canto em meio ao desespero e o isolamento A chance de te conhecer, de cantar de mim O que é você. Você vê, Você me segura contra a luz de um modo Que nunca esperei ou suspeitei, talvez Porque você sempre me diz que eu sou você, E tenho razão. As grandes píceas rondam. Sou seu para morrer junto, desejar. Não posso jamais pensar em mim, eu desejo você Num quarto em que as cadeiras Estão com as costas viradas para a luz Infligida sobre a pedra e os caminhos, as árvores reais Que parecem brilhar para mim através das gelosias na sua direção. Se a luz selvagem deste dia de janeiro é real Eu me comprometo em ser-te verdadeiro, Você que não consigo mais parar de lembrar. Lembrar de perdoar. Lembrar de passar além de você, rumo ao dia Nas asas do segredo que você jamais saberá. Assumindo-me por mim mesmo, no caminho Que os contornos pasteis do dia me atribuíram. Prefiro “vocês” no plural, quero vocês Vocês devem vir até mim, todos dourados e pálidos Como o orvalho e o ar. E então me começa a vir esse sentimento de exaltação.A blessing in disguise
Yes, they are alive and can have those colors, But I, in my soul, am alive too. I feel I must sing and dance, to tell Of this in a way, that knowing you may be drawn to me. And I sing amid despair and isolation Of the chance to know you, to sing of me Which are you. You see, You hold me up to the light in a way I should never have expected, or suspected, perhaps Because you always tell me I am you, And right. The great spruces loom. I am yours to die with, to desire. I cannot ever think of me, I desire you For a room in which the chairs ever Have their backs turned to the light Inflicted on the stone and paths, the real trees That seem to shine at me through a lattice toward you. If the wild light of this January day is true I pledge me to be truthful unto you Whom I cannot ever stop remembering. Remembering to forgive. Remember to pass beyond you into the day On the wings of the secret you will never know. Taking me from myself, in the path Which the pastel girth of the day has assigned to me. I prefer “you” in the plural, I want “you” You must come to me, all golden and pale Like the dew and the air. And then I start getting this feeling of exaltation.
Fábio Zanini percorreu diversos países, entrevistou autoridades e teve acesso a documentos diplomáticos que ajudam a explicar a “Euforia e Fracasso do Brasil Grande”

Um aspecto instigante da obra é a opção dos autores de não se fixarem numa forma rígida de narrativa. Reflexões íntimas se desatam no delírio de uma escrita desabrida e sem peias, caótica e despida de censura

O escritor Edival Lourenço aventura-se em fazer aquilo que nomes como Machado de Assis, Fernando Pessoa e Milton Amado fizeram: verter para o português o célebre poema do autor norte-americano

Whitman é o fundamento para as falas dos personagens da tríade de histórias de Cunningham, as personagens absorvem muitos de seus hábitos e comportamentos descritos em detalhes no original de prosa “Specimen days”
[caption id="attachment_104022" align="alignleft" width="620"] Walt Whitman (1819 - 1892)[/caption]
“Os dias exemplares” (Companhia das Letras, 408 páginas), de Michael Cunningham, é uma espécie de “painel tríptico” pintado por um artista da literatura sobre uma moldura canônica, que inova o quadro do romance, dentro do espectro da chamada “ficção histórica”, funcionando para o leitor como o olhar para três telas diversas, sob uma perspectiva unificada e unificadora. Neste “Specimem days” (título original) são recolhidas amostras do que pode configurar a América do Norte e sua tradição poética em três momentos diversos – o passado, o presente e uma mirada para o futuro.
Cunningham se sustenta em seu passado, respeitando o cânone e a tradição, mas também lança luzes sobre o futuro – pode até vir ele próprio a fazer parte dos livros emblemáticos do século XXI, ainda que tenhamos que levar em conta a má recepção crítica, se comparada àquela dada ao tão prestigiado romance “As horas” (ganhador dos prêmios Pen/Faulkner Award & Pulitzer Prize 1999), que foi adaptado para o cinema. No entanto, “Os dias...” tem todos os elementos de um livro respeitoso para com o passado e inovador quando projetamos o olhar para a literatura do futuro.
No livro, o profeta-poeta Whitman é o fio condutor da narrativa e, se o leitor atento observar, desde o título original (“Specimen days”) – similar ao de um volume de prosa do poeta já ao final de sua vida – contém aí uma espécie de pan-americanismo, comparável ao pan-eslavismo que fez a crítica torcer o nariz para Nikolai Gógol e outros russos, incluindo Dostoiévski. Por razões similares, há quem não goste de “Os dias...” (ao menos não tanto quanto de “As Horas”). Talvez para certa parcela da crítica, apenas porque a América sai dessas páginas reafirmada como um país de heróis, em meio a uma história única, onde os personagens, mesmo em meio às enormes dificuldades e percalços, pelos quais passam ao longo da narrativa, saem do quadro final de forma otimista.
É útil para compreendermos essa perspectiva, voltarmos ao prefácio da primeira edição de “Folhas da relva” (1855), de Walt Whitman que se abre com uma nota, donde retiro três parágrafos, que bem poderiam servir como pilares para a compreensão de “Os dias exemplares”:
“A América não rejeita seu passado nem o que foi produzido sob suas formas ou em outras políticas nem a ideia de castas nem de velhas religiões... recebe a lição com tranquilidade ...não é tão impaciente quanto se supunha já que o tecido necrosado ainda está grudado nas opiniões e maneiras e literatura enquanto a vida que já cumpriu seus pré-requisitos passou para a nova vida das formas... percebe que o cadáver sai devagar dos quartos e da cozinha da casa...percebe que ele espera um pouco enquanto está na porta... que foi o mais adequado para seu tempo... que sua ação descende do herdeiro robusto e de boa forma que está chegando...e que ele será mais adequado para seu tempo.
“Os americanos de todas as nações em qualquer era sobre a terra provavelmente têm a natureza poética mais completa. Os Estados Unidos são essencialmente o maior de todos os poemas. De agora em diante na história da terra os maiores e mais agitados poemas vão parecer domesticados e bem-comportados diante da sua grandeza e agitação ainda maiores. Enfim aqui alguma coisa nos atos humanos que corresponde com os atos que o dia e a noite transmitem. Enfim aqui não só uma nação, mas uma nação proliferante de nações. Enfim aqui a ação livre de amarras necessariamente cega aos destacamentos e particularidades que se movem magnificamente em imensas massas. (...).
“Outros estados se revelam em seus representantes...mas o gênio dos Estados Unidos não está nem no melhor ou na maioria dos seus executivos e legislaturas, nem nos seus embaixadores ou autores ou faculdades ou igrejas ou gabinetes, nem mesmo nos seus jornais ou inventores... mas sobretudo e sempre nas pessoas comuns. Seus modos jeitos de falar de se vestir fazer amigos – na frescura e na candura de suas fisionomias – a descontração pitoresca de seus jeitos de andar... seu amor imortal pela liberdade... (Tradução de Rodrigo Garcia Lopes, Iluminuras, 2006).
Ora, é este Whitman que reúne “espécimenes” – pequenas amostras ou partes feitas para mostrar a natureza do conjunto humano, botânico, biológico, sentimental do que é esse imenso e generoso país (os Estados Unidos), onde o Quaker Whitman passou sua vida, por onde viajou e exerceu os mais diversos ofícios, até encontrar-se com a poesia profética e criar uma espécie de “evangelho norte-americano” com fins civilizatórios, de olho no futuro.
O poeta que é retratado por Van Wyck Brooks em “The times of Melville and Whitman”, como o homem capaz de verter este “liquid mystic theme” – assim o fez trabalhando em um único livro de poesia (nada açucarada!), legando uma lírica mística que foi construída através da observação do humano, do homem comum, do senso comum, a partir da vastidão da América que ele palmilhou – caminhando e navegando em seus rios, “em busca do vadio e do filho da indolência” e dos heróis da guerra civil, dos heróis do dia-a-dia do país que começava sua industrialização – com direito à referência a Diógenes, o filósofo-mendigo que habitava as ruas de Atenas, fazendo da pobreza extrema uma virtude; aquele mesmo que fez do barril sua casa, e perambulava pelas ruas carregando uma lamparina, durante o dia, alegando estar procurando por um homem honesto.
Este Whitman foi o homem das ruas, o visitante dos hospitais onde padeciam feridos da Guerra Civil Americana, o que amava os barcos, e a ordem dos campos de sua Long Island, com suas influências de um pai Quaker e uma mãe de origem holandesa. Esse poeta – que é a própria face da poesia norte-americana (ao lado de Emily Dickinson), talvez o maior entre os maiores; este Whitman, dizia eu, habita o livro que ora convido você, leitor, a conhecer.
Não se importando com o que diz a crítica, você pode começar a observar a estrutura inovadora construída por Michael Cunningham, autor de oito romances e um livro de não-ficção (“Land´s end”).
Ora, por se tratar de ficção de cunho histórico, o Autor foi sensível em anunciar em nota inicial que procurou ser “fiel aos pormenores históricos nas cenas que situei no passado”. Esse procedimento se justifica porque a ficção histórica muitas vezes tem feito descambar a narrativa para a manipulação da verdade histórica. Ora, embora não sendo historiador, cabe – a meu ver, ao ficcionista buscar um equilíbrio diante dos riscos extremos do “ah, tudo isso-é-pura-ficção! ”, tudo (re)inventando de modo a causar uma dissonância cognitiva no leitor, com a consequente perda de consciência da leitura e do personagem histórico enfocado.
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Michael Cunningham, autor de "Dias Exemplares"[/caption]
“Os dias exemplares” (na bela tradução de José Geraldo Couto) não cai neste erro. O livro está assentado em três narrativas entrelaçadas, forma inovadora dentro da tradicional manutenção de um “fio condutor” que amarra as narrativas. Na primeira delas (“Na máquina”) temos Simon (morto desde logo), Lucas – que lhe carrega a chama da vida e conduz a máquina que engolira seu irmão – e temos Catherine. Situada na Manhattan industrial do século XIX, esta primeira parte é narrada em ambiente de conto gótico.
O segundo painel do tríptico, intitulado “A cruzada das crianças” – nos transporta para mais de cem anos depois da primeira parte do livro, e lá, novamente, surge um Simon, um Luke e uma Cat - personagens do período pós-atentado às torres gêmeas em Nova York (conhecido por “September Eleven”), quando o medo e a vigilância rondam a todos e o autor dá ao painel o ritmo de "thriller contemporâneo" ou, como disse Jan Clausen, do Boston Review, “saímos de um sonho em câmera lenta [da parte 1] para uma novela detetivesca habilmente impulsionada por uma história conduzida no modo “enredo-diálogo” (“plot-and-dialogue driven”).
No fim, temos uma terceira e última história – “Como a Beleza” –, onde conhecemos Simon, Luke e [E.T.] Catareen – personagens situados num cenário do século XXIII, como num curto romance de ficção científica em que tudo aponta para os fracassos do presente, porém sem perda da esperança futura.
Se tomamos o título original de Whitman como a chave do romance de Cunningham, caberia de novo uma volta às origens, justamente àquele trecho de “Specimen Days” (Whitman) em que o poeta diz ser aquele “o mais rebelde, espontâneo e fragmentário livro já impresso”. E nessa espécie de memorabilia encomendada ao poeta (em 1881), na época inválido por conta de um “derrame ou paralisia – um hemiplégico, especialmente da perna direita” (desde 1873) – como se essas fossem suas últimas palavras. Não foram.
Tal como este romance “Os dias...” de Cunningham, malgrado o desprezo de boa parte da crítica, não é o último e pode ser lido como a expressão de um autor em sua maturidade literária, embora com uma obra em construção.
Whitman é o fundamento para as falas dos personagens da tríade de histórias de Cunningham, as personagens absorvem muitos de seus hábitos e comportamentos descritos em detalhes no original de prosa “Specimen days”. A expressão do menino irlandês Lucas de “Na máquina” é a voz histórica e poética de Whitman; bem assim para o personagem Luke, espécie de “Gollum (feito o personagem de J.R.R. Tolkien), “um menino encantado” que é central na segunda parte – “A cruzada das crianças” – “o poema é a linguagem”; e, por último, também o é Simon – o “símulo” criado por uma empresa de biotecnologia, um humanoide capaz de compreender, mas não sentir a Beleza.
A narrativa de cada parte do tríptico tem diferentes vozes. Essa multiplicidade de pontos-de-vista narrativos, entretanto, segundo Ian Clausen (do Boston Review), isso torna-se o problema de Cunningham (desde o seu “Uma casa no fim do mundo” até este “Os dias...”). Clausen não é nada generoso em sua crítica a Cunningham quando diz que o problema reside na multiplicidade de pontos-de-vista das diversas narrativas. Isso poderia deixar o leitor confuso para decidir qual a voz central da obra que deva seguir e qual perspectiva deve ser adotada. Ainda segundo Clausen, esta é a nova técnica do velho “narrador onisciente”. A técnica de Cunningham evita explicitar conclusões e cria uma ilusão de que os personagens são deixados livres no campo de ação e falam por si mesmos, sem que um narrador os conduza – conclui Clausen.
O que para Clausen é uma prisão do leitor, para mim é uma liberação (vejam que não digo libertação). Fica “o leitor que queima pestanas” – para usar a expressão do poeta-crítico gaúcho Augusto Meyer na posição satisfatória de criar, de ser o que Meyer chamara de “leitor petulante” livre para reinventar e escolher seus finais –; baseado numa camada que não é a camada primária do romance. Se a morte está presente nos três episódios há uma esperança de vida que alimenta o leitor a refletir sobre a transitoriedade e o destino, sobre imaginação e beleza, sobre o senso comum e a consciência individual.
Um exemplo bem tangível disso foi que justamente no dia em que estava lendo sobre o “símulo-Simon”, o mundo assistia à realização de experiências com DNA em humanos – “experimentos que ajudam, conforme relato do site da Deutsche Welle, a entender melhor como funcionam nossos genes e quais mecanismos participam do processo – experiências que representam uma revolução para a pesquisa fundamental. Desta vez, constatou-se, com om técnica Crispr-Cas 9, que células embrionárias dispõem de mecanismos próprios de reparo não encontrados em outras células-tronco ” – que ressalva: “correção de DNA de embrião para evitar doença hereditária é revolução na ciência, mas o foco de pesquisadores deve ser ganho de conhecimentos científicos, e não "editar" bebês a pedido dos pais, opina Fabian Schmidt. ” Ora, mas quem nos pode garantir que se pode manter o controle completo sobre a experiência, sem que essa fuja ao controle, como ocorreu no episódio relatado nas páginas 308 e 309 de “Os dias exemplares”.
Simon é o menino robotizado, em busca do seu pai – Emory Lowell, o inventor autônomo das criaturas do tipo de “Simon-símulo”, terceirizado por uma empresa chamada ‘Biologe´, bem pago com a condição que o nome da firma não fosse citado se “o experimento desse errado. ” Simon é fruto desse “erro”, nascido de uma combinação de seres humanos e chips, fora de controle de seus criadores – “humanoides para viagens de longo alcance pelo espaço, mas capazes de raciocínio abstrato”. Um dos circuitos de Simon conhecia a poesia inteira de Walt Whitman, mas não a sente: “compreendo a Beleza, domino o conceito, sei quais são os critérios, mas não a sinto”, diz ele.
Quantos Simons temos hoje em dia? Estáticos, diante das TV, paralisado diante das séries midiáticas, do cinema e dos jogos de ação, de comerciais e filmes exibindo mortes por segundo, que se negam a ler; ou que, lendo não são capazes de compreender, ou compreendendo, são incapazes de sentir a Beleza. Para esses Simons e, tal como para o “Luke-Gollum-menino encantado” da segunda parte do livro: “A Poesia significa alguma coisa..., mas ele não é capaz de dizer o que é.”
Ora, a lição aprendida de René Girard, em seu “Mentira Romântica e Verdade Romanesca”, é que a busca de significado se esconde no desejo de expressão. “A emoção estética não é desejo e sim cessamento de todo desejo, retorno à calma e à alegria.” Só o leitor apaziguado consigo mesmo e que se põe em calma atitude de percepção pode ser dar essa alegria. Este será o que fugiu do mundo robotizado e mecânico que não gera leitores, mas colecionadores de livros e de listas de leituras – como se os livros fossem uma espécie de “rol de roupa suja” no caminho das suas vidas sem sentido.
Eis um livro a se ler e, ao final, perguntar-se: – Por que não o li antes? e poder repetir com Whitman (excetuado o animismo do poeta):
“ Oh, minha alma! Se a percebo me satisfaço,
Animais e vegetais! Se os percebo me satisfaço,
Leis da terra e do ar! Se as percebo me satisfaço.
(...)
Juro achar que só a imortalidade existe! ”
Pois sabemos das lições demonstradas em “Os dias exemplares”, tomadas ao senso comum da poesia de Whitman que: “Grande é a vida...é real e mística...seja aonde for e o que for,//Grande é a morte...Certa como a vida junta todas as partes, a morte junta todas as partes;//Certa como as estrelas retornam depois de fundirem-se na luz, a morte é tão grande como a vida”.
Ao jornal Público (de Portugal), Michael Cunningham, afirmou, logo após o lançamento deste livro (2005), que "queria que esta novela registrasse o arco temporal do "progresso" entre a Revolução Industrial e o fim, com a clonagem e as viagens interestelares". Disse que "o nosso grande humanista, o nosso grande bardo da vida [o poeta Walt Whitman] em todas as suas formas tinha que estar lá".
“Os poetas americanos devem trazer em si o antigo e o novo porque a América é a raça das raças. Delas um bardo será proporcional à sua gente. Para ele os outros continentes chegam como contribuições... e lhes dá as boas-vindas por eles e por ele mesmo. Seu espírito corresponde ao espírito de seu país... ele encarna sua geografia e a vida natural e rios e lagos. ”
Seria a poesia de Whitman e a poesia em geral a tábua de salvação ? A resposta provisória, mas intensa vem da poetisa polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012 – prêmio Nobel de Literatura de 1996): “(...) mas o que é isso, poesia? / muita resposta vaga/já foi dada a essa pergunta. //pois eu não sei e não sei e me agarro a isso/como a uma tábua de salvação. ” Agarre-se a ela, leitor.
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Capa do livro "Dias Exemplares"[/caption]
Trechos do livro
“Queria traduzir as pistas sobre essas moças e esses moços mortos, E as pistas sobre os velhos e as mães, e sobre os rebentos tirados antes do tempo de seus ventres. Que fim levaram os velhos e os jovens? E que fim levaram as mulheres e as crianças? Todos estão bem e vivos em algum lugar; O menor broto mostra que a morte na verdade não existe, E se um dia existiu, seguiu tocando a vida, sem ficar à espera para interrompê-la, E deixou de ser assim que a vida apareceu.” (*Trad. Rodrigo Garcia Lopes para o trecho do poema de Whitman, citado por Cunningham à p.79. Aqui caberia uma observação: se um pequeno reparo pode ser feito à tradução correta de José Geraldo Couto seria porque não aproveitou nas citações aos poemas de Whitman as boas traduções dos poemas feitas por especialistas, como esta de Rodrigo G. Lopes?!). (...) “Uma mulher surgiu na janela, sete andares acima. Ficou em pé na janela, segurando-se no batente. Sua saia azul ondulava. O reluzente quadrado laranja fazia dela uma silhueta azul, frágil e precisa... Ouviu alguma coisa que o fogo lhe disse. “Saltou. “Catherine gritou. Lucas agarrou-a e a envolveu enquanto ela caía. Ela ergueu os braços, como que para agarrar mãos invisíveis estendidas para ela. “Ao atingir o chão, ela desapareceu. (...) “Oh, Senhor”, disse Catherine. Não falou em voz alta. “Lucas a abraçou. Lamentava pela mulher, mas ela não era Catherine. “Sussurrou a ela: “Você teme que uma escrófula venha com a inquebrantável gravidez? Acha que as leis celestiais ainda devem ser aperfeiçoadas e retificadas?” “Com a mão sangrenta, Lucas tocou o medalhão em seu peito. “O ar ficou mais espesso. Ele podia sentir seu gosto. Podia senti-lo nos pulmões. Uma chuva de brasas caía do céu, dançava no calçamento ao redor dos policiais e dos bombeiros, ao redor da mulher desaparecida e de sua saia. (...) “As pessoas da multidão estavam horrorizadas e excitadas, com os rostos iluminados pelo fogo. “Era Walt ali, à distância, entre os outros, Walt com sua expressão de espantado apetite por tudo o que pudesse acontecer? Lucas via um homem barbudo que podia ser Walt e podia não ser. Havia uma mulher em pé a seu lado. Seria santa Brígida, olhando para o alto com o seu rosto lívido e compassivo, seu halo discretamente escondido sob um chapéu de feltro marrom? Era parecida com ela. (...) “Walt, porém, o encontraria no momento certo. Encontrara-o na Broadway o seu momento de necessidade; certamente o encontraria de novo. Lucas e Catherine entrariam no livro, pois o livro não acabava nunca. Lucas o recitaria para Walt e para todo mundo. Recitaria o que Walt ainda não tinha escrito, pois sua vida e o livro eram uma coisa só, e tudo o que ele fazia ou dizia era parte do livro” (p.126/128, excertos). (...) Whitman, como você provavelmente sabe, foi o primeiro grande poeta visionário americano. Ele não celebrava somente a si próprio. Celebrava todas as pessoas e todas as coisas.” “Certo” “Ele passou a vida, e foi uma vida longa, ampliando e revisando ´Folhas da relva`. Publicou o livro por conta própria. A primeira edição apareceu em 1855. Houve nove edições ao todo. A última, que é chamada edição do leito de morte, apareceu em 1891. Você pode dizer que ele estava escrevendo o poema que era os Estados Unidos.” “Que ele amava” “Que ele de fato amava.” “Você o chamaria de patriótico então?” “Não é bem o termo correto para Whitman. Não acho que seja. Homero amara a Grécia, mas a palavra ´patriótico` lhe parece certa para ele? Acho que não. Um grande poeta nunca é algo tão provinciano. (...) “Cat disse: “Mas lendo-o hoje, alguém poderia interpretá-lo como patriótico? Poderia Folhas da relva ser lido como uma espécie de hino nacional ampliado?” “Bem, você não acreditaria em algumas interpretações que já ouvi. Mas, na realidade, Whitman era um extático. Era uma espécie de dervixe. O patriotismo, você não acha, implica uma determinada noção fixa de certo e errado. Whitman simplesmente amava o que existia. (...) “Montou no cavalo e partiu. Cavalgaria para o oeste, pensou. Cavalgaria para a Califórnia. Cavalgaria naquela direção. Ele e o cavalo talvez morressem de fome ou de insolação. Ou talvez chegassem ao Pacífico. Talvez percorressem todo o caminho até o outro lado do continente e parassem numa praia diante do que ele imaginava ser um azul inquieto e infinito. Supondo, claro, que o oceano ainda estava intacto. Não havia como saber, havia? “Cavalgou para o oeste...” (...) “A mulher estava enterrada. A criança estava a caminho de um novo mundo. Simon estava a caminho de algum lugar, e talvez não houvesse nada lá. Não, em todos os lugares havia alguma coisa. Ele estava indo para o seu futuro. Não havia nada a fazer senão cavalgar para dentro dele. “Uma clara mudança ocorreu. Ele a sentiu percorrendo seus circuitos. Não tinha nome para ela. “Disse em voz alta: “A Terra, eis o que basta, não quero ter as constelações mais perto, sei que elas estão muito bem lá onde estão, sei que bastam àqueles que pertencem a elas”. “Então seguiu cavalgando pela extensa relva em direção às montanhas”.
Enquanto espaços fechados tradicionais tentam driblar crise econômica, obras de arte são expostas em lugares inusitados da cidade. Veja onde encontrar

Será possível, ainda hoje, seguir romanceando o abandono do lar como bela figura poética? Longe de ser uma ironia, essa pergunta é um desafio a ser tomado a sério

Tradutor do livro “Campos de Castela”, a ser lançado pela editora goiana Caminhos, em setembro de 2017, expõe as particularidades da poética do autor de “Retrato” e “O Deus Ibero”

A fé dos bolcheviques russos é uma fé implícita, de carvoeiro, uma fé de servos não menos que a dos seus avós. A ateologia é uma teologia

Se você quer ouvir, com os amigos, música sertaneja de qualidade, com grandes sucessos do passado e com boas músicas inéditas, o novo disco da dupla é a dica perfeita
[caption id="attachment_103436" align="aligncenter" width="620"] Dupla Cleber e Cauan[/caption]
Quem é que não curte um “voz e violão”? Na festa com os amigos, em casa com a família, nas famosas “resenhas”. E é justamente esse o título do novo trabalho da dupla Cleber e Cauan. Os rapazes que já vinham há alguns anos emplacando sucessos, agora conquistam de vez um espaço no disputado mercado sertanejo.
Como o próprio nome já diz, o projeto, gravado ao vivo no “Deu Praia”, em Goiânia, reproduz o clima das resenhas e cantorias, preservando o formato “voz e violão”, principalmente. Este é um dos vários projetos de grandes duplas que vem sendo lançados com esse formato nos últimos tempos, sempre com grande aceitação, o que mostra que o “voz e violão” voltou com tudo.
O projeto acaba de ser lançado na íntegra nas plataformas digitais e já pode ser conferido também no Youtube. O disco mescla regravações de grandes hits sertanejos da década de 90 com algumas canções da dupla, inclusive o sucesso “Quase”, um hit já em várias regiões do Brasil. Traz ainda as participações de Fernando Zor, Thaeme e Thiago, Gian, André e Andrade, Israel e Rodolffo e Tribo da Periferia.
Donos de um carisma próprio, Cleber e Cauan se conheceram ainda na infância, no interior de Goiás. Cleber canta profissionalmente desde os 8 anos de idade, já teve duas duplas e se apresentava em rádios e festas goianas. Já Cauan cantou ao lado da irmã por anos em festivais e eventos locais, mas apenas por hobby. Ambos seguiram seus caminhos. Cauan se formou em Direito, chegou a ser funcionário público do Estado de Goiás, mas nunca abandonou a música, que sempre foi seu maior objetivo de vida. Já Cleber, estudou Publicidade por alguns semestres, e sempre trabalhou no ramo fonográfico. Com 7 anos de carreira, a dupla tem vozes bonitas que combinam bem com canções dançantes e também românticas.
Se na sua resenha com amigos, você quer ouvir música sertaneja de qualidade, com grandes sucessos do passado e com boas músicas inéditas, o novo disco de Cleber e Cauan é a dica perfeita.

Será lançado hoje, no Restaurante Cateretê, localizado na avenida T-2, nº 318, Setor Bueno, em Goiânia, o livro "Janta às 11h", do escritor Cristiano Deveras. O evento começará às 20h. "Jantar às 11h", publicado pela editora Nova Alexandria, reúne contos do autor, dentre os quais Fim de semana amoroso ou da efemeridade do eterno, que pode ser lido abaixo. ***
Fim de semana amoroso ou da efemeridade do eterno
por Cristiano Deveras
Ela vivia entre cifras e números. Trainee de uma multinacional, MBA quase concluído, ótimas notas, curriculum perfeito; ele, entre palavras e estrofes. Poeta semi-profissional, escritor por opção, ex-executivo, ex-empresário, extenuado pela busca da carreira correta, alguns contos reconhecidos, alguns rabiscos elogiados.
Conheceram-se em uma sexta-feira. Ela animada com o começo do final de semana; ele, buscando beber de graça no coquetel da empresa dela. Alguns passos para o mesmo lado, a escolha da mesma bebida (sem gelo, por favor!), um olhar correspondido e uma avassaladora paixão nascendo; conversas até a madrugada sobre tudo o que cerca os antenados... Uma despedida na manhã, dois telefones trocados e um beijo para ser lembrado.
Saíram no sábado, conforme o combinado na sexta, ela mostrou a ele o prédio da Bolsa (ainda vou trabalhar ali!), ele profetizou que ainda lançaria alguma coisa no prédio do Masp (nem que fosse o próprio corpo, lá do alto...). Os beijos se tornaram mais ardentes e os olhares mais profundos; a lua na madrugada os encontrou se amando por entre sussurros e desejos, as primeiras promessas brotando.
No domingo acordaram abraçados, beijando-se sem se escovar, rindo-se das mesmas coisas, bebendo do mesmo copo, trocando apelidos e segredos, constatando na pele as marcas físicas de uma noite de amores... Constatação essa que reiniciou todo o fogo, todos os movimentos. No auge do calor, a bomba: prometeram-se mutuamente amor infinito por todos os séculos que ainda restassem, juraram que seus sentimentos estavam em sintonia para todo o sempre...
Na segunda ela saiu para trabalhar cedo, ele ficou deitado de cuecas... Ela ligou de tarde dizendo que estava tudo acabado: iria se transferir para Nova York com um dos filhos do presidente da empresa; ele suspirou aliviado: a mulher e os quatro filhos deveriam estar putos da vida com seu desaparecimento... Esvaziou o barzinho dela e se escafedeu para o subúrbio.

Pois entre a águia com sua cólera divina e o anjo do devaneio e do carinho pelo Outro, encontramo-nos com Bernanos, neste opúsculo, que de todo não desejo revelar, mas sim, desejar ardentemente que você o leia e comece a descobrir o “grande urso”
[caption id="attachment_103391" align="aligncenter" width="620"] Imagem rara de Georges Bernanos
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Sob o impacto da leitura de “Monsieur Ouine”, do francês Georges Bernanos, que neste caso teve que ser lido no original, pois este livro, infelizmente, ainda não tem uma tradução em português – disponho-me a comentar um pequeno livro do mesmo autor já traduzido pela editora É Realizações, em 2013. Trata-se de “Joana, Relapsa e Santa”, tradução de Pedro Sette-Câmara e apresentação de Jean Bastaire que se junta a vários outros dando uma boa visão da literatura do francês que morou no Brasil.
Bernanos é um dos mais representativos católicos escritores (não gostava da designação “escritores católicos”, por achá-la reducionista) da França no século XX; viveu no Brasil por quase oito anos, de 1938-1945, tendo aqui escrito o maior de seus romances – “Monsieur Ouine”.
Joana d´Arc é retratada neste livro, escrito por Bernanos para atender encomenda do periódico “Revue Hebdomadaire”, em 1929, data de celebração de cinco séculos da libertação de Orléans, em que Joana d'Arc teve decisivo papel na batalha e, ainda muito jovem, comandou um exército para expulsar os ingleses da França.
Beatificada em 1909, Joana d'Arc foi canonizada em 1920, “feliz decisão da Igreja que, em meio milênio, como que realizou uma inversão completa de sua posição” (diz Jean Bastaire) – isto é, o pessoal da Igreja faz a revisão completa de uma pena capital contra uma filha da própria Igreja.
Se a literatura dita católica (ou feita por católicos escritores) já teve seu período de grande brilho, foi na França, sobretudo em que este mostrou suas primeiras fagulhas brilhantes com escritos de gente como Léon Bloy, Charles Péguy, Paul Claudel, François Mauriac e Georges Bernanos. No Brasil, muitos dos amigos da temporada bernanosiana foram também membros da inteligência católica (cf. Antonio C. Villaça), entre os quais se contam Jorge de Lima, Alceu Amoroso Lima, Henrique J. Hargreaves, Virgílio de Melo Franco, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins, Geraldo França de Lima, Edgar da Mata-Machado e Paulus Gordan etc.
Agora que temos a chance de ver reeditados vários livros do “Dostoievski francês”, título que a imprensa alemã dera a Bernanos depois do sucesso de crítica e público de seu “Soleil de Satan” entre os germânicos; agora, dizia, é hora de se fazer o bom uso da crítica para situar o público leitor para a grandeza da literatura do mais brasileiro dos franceses escritores.
A figura histórica de Joana d'Arc está por demais estudada e a fortuna crítica do que lhe vale a memória histórica é por todos sabida. Não é sobejo, no entanto, dizer que ela era católica e que o livro de Bernanos (casado com uma descendente direta dos Talbert-d'Arc) nada tem de apologético nem dogmático, muito ao contrário.
Este livro em destaque pode ser considerado uma monografia, publicada em 1934, e tem como meta examinar a santidade de Joana d´Arc, não a função clerical ou administrativa da Igreja. A igreja dos santos se opõe fortemente à igreja dos clérigos, por todas as razões de fato e pelas práticas do que Jacques Maritain já afirmara em “A Igreja de Cristo” (“A pessoa da Igreja e o seu Pessoal” ) – Bernanos é parte dos leigos-profetas. Suas palavras, seja nessa monografia, seja em “Monsieur Ouine” – necessitaram, como bom vinho de guarda, que os anos as mantivessem distantes da malícia da crítica para voltar exuberantes a encher-nos o cálice sagrado da leitura.
Sabemos que no caso de Joana d´Arc “a Igreja pura e simplesmente condenou uma santa” (Bastaire), cabendo ao profeta Georges Bernanos recuperar-nos sua memória como a memória da infância, como o coração do mundo e o espírito da Igreja viva. O panfletário Bernanos é o cristão sem compromisso com hierarquias, o cristão Bernanos como o católico idealista que é, foi tomado pela Graça e o misticismo na linha traçada por Péguy e Bloy, na literatura francesa e mundial.
[caption id="attachment_103395" align="alignleft" width="300"] Georges Bernanos. "Joana, Relapsa e Santa". (Tradução de Pedro Sette-Câmara). É Realizações, 2013.[/caption]
Bernanos tinha um temperamento difícil – comprovam-no os próprios amigos próximos (como em “Bernanos no Brasil, 1968, org. Hubert Sarrazin), mas “pode-se estimar que, descontado o temperamento de Bernanos, ele se refere [ao desprezar direito canônico usado para condenar Joana] sobretudo a um certo poder intelectual, a um arrogante orgulho do saber que desavergonhadamente transforma a ciência sagrada num meio de coagir as consciências” (Bastaire).
Bernanos, no entanto, tinha plena consciência de sua missão profética e de seu Cristianismo idealista. “Não é um apaixonado pelo isolamento como foram Kierkegaard ou Nietzsche. Como todo ser humano profundo, ele teve seus momentos de solidão, mas termina como Péguy aquele “cristão em sua paróquia”, exercendo seu dom profético (“serei compreendido daqui a 20 anos, disse ele a um amigo brasileiro, sobre Monsieur Ouine” – o que estaria bem aplicado também a esse livro sobre Joana d´Arc). Bernanos não fala a um auditório imaginário, mas nos olha com seus olhos profundos (“Seu olhar ! Seus extraordinários olhos, realmente transfigurados pela cólera ou pelo carinho! Quando discutiam, fuzilavam. Bruscamente se revestiam de uma doçura, de uma distância, de uma bondade, um amor velado, e uma infância espiritual, que nenhuma palavra consegue traduzir” – dizia Alceu Amoroso Lima).
Pois entre a águia com sua cólera divina e o anjo do devaneio e do carinho pelo Outro, encontramo-nos com Bernanos, neste opúsculo, que de todo não desejo revelar, mas sim, desejar ardentemente que você o leia e comece a descobrir o “grande urso”, Le grand Georges que preferiu a “luta contra o anjo negro do Mal às querelas com os anjinhos de procissão” (Alceu) – fugia daquelas pessoas que frequentavam (e continuam frequentando) a hierarquia e os bastidores de nossas paróquias, daquele tempo até os dias de hoje, para os quais vale mais uma linha do direito canônico do que a vida de um pároco de aldeia ou de uma santa. Pouco se lhes dá que esta santa salve a Nação francesa, a despeito de suas (deles) crenças de catecismo sem ação.
E a vós, infiéis, que desejam buscar no escritor católico apenas uma forma de melhor aliciar sua má consciência contra a missão eterna da Igreja, sinto muito decepcioná-los, mas não há em Bernanos nem apologética nem tampouco heresias. Se pretende se aproximar dos grandes olhos verdes do gigante Bernanos, dispa-se de suas descrenças do mundo, deixe o Mal por um momento enfrentar este gigante em lugar de sua fraca e tacanha arma adquirida gratuitamente num desses bancos universitários. Leia Bernanos, sem temor, leia-o.
O cristão Bernanos, diz-nos o teólogo Hans-Urs von Balthasar, “mais do que qualquer outro grande escritor cristão dos tempos modernos é o cantor da Graça; e isso o faz num sentido tão pouco calvinista ou jansenista, que dessa forma, torna-se arauto da liberdade humana, da liberdade original e criadora do Homem. A chave dessa síntese está no coração mesmo de sua experiência religiosa que nós a encontramos lendo suas obras”.
Conhecido mais por seus romances “Sob o sol de Satã” e “Diário de um Pároco de Aldeia”, Bernanos aqui se nos apresenta como o poeta de Deus, o apaixonado pela alma da humanidade, que reside na infância e repete altissonante: “Nossa igreja é a igreja dos santos; porque santidade é uma aventura, ela é aliás a única aventura. Quem entende isso uma vez entra no coração da fé católica e sente sua carne mortal estremecer com um terror que não é o da morte, com uma esperança sobre-humana. Nossa igreja é a igreja dos santos...”
Sobre o Autor:
Georges Bernanos (1888-1948), nascido em Paris, passou parte de sua vida como nômade, tendo residido sucessivamente em Fressin (Pas-de-Calais), Ilhas Baleares, Paraguai e Brasil (1938-45). Autor de mais de trinta livros, entre panfletos, dois volumes de correspondências, além de romances famosos e premiados, entre os quais destacam-se “Sob o Sol de Satã”, “Diário de um pároco de aldeia”, “A Alegria”, “Monsieur Ouine”, “Novas Histórias de Mouchette”, “Os grandes cemitérios sob a lua”, “A Impostura” – sete dos quais já traduzidos e relançados recentemente pela editora É Realizações, de São Paulo.
TRECHOS DO LIVRO
p.22 – Mas o coração do mundo sempre está batendo.
A infância é esse coração. Não fosse o gentil escândalo da infância, a avareza e o ardil teriam, em um século ou dois, exaurido a terra. O pobre planeta, apesar de seus químicos e de seus engenheiros, não seria nada além de um osso esbranquiçado lançado através do espaço. Mas o espírito de velhice, que pacientemente conquista o mundo, perde-o toda vez oportunamente e depois recomeça para perdê-lo de novo, incansável, inexorável. Assim a aranha tece e retece sua filosofia cartesiana, na qual estremece, à aurora, uma bolha d´água. Quando o velho, com seu dedo levantado, solta um milhão de datilógrafos, e quando a paz do mundo vai sair desses autômatos, vemos entrar uma mocinha irônica e dócil, que não pertence a ninguém e que responde com voz doce aos teólogos políticos, com sentenças e provérbios, à maneira dos pastores. Os cabochianos de Caboche-Cachin, os padres democratas da ilustre Universidade de Paris, que sonham com uma espécie de república universal, os altos prelados pacifistas deslumbrados com o valor do dólar e com o peso das excelentes moedas da Borgonha, a carmelita Eustáquio, que era a piada dos aldrabões comunistas da Corporação dos Açougueiros, os professores da Rua de Clos-Bruneau, os clérigos do capítulo de Rouen e aqueles do capítulo do Senhor Julien Benda, todos esses velhotes, muitos dos quais não passaram dos trinta, consideram com inveja essa pequena França tão nova, tão maliciosa, que morre de medo de ser queimada, e mais ainda de mentir. “Virem o rosto!”, diz ela. “Poupem-me!” Porque ela tem grande dificuldade em não rir quando aquele homem “grão-clérigo, pessoa mui prudente, mui benigna”, o monsenhor bispo devidamente certificado de Beauvais, quer convencê-la de que ela não ama o povo da Borgonha...”
p.31 – “Ó, rosto sagrado! Ó, doce rosto de meu país, olhar sem medo! Eles viram tuas pobres bochechas afundadas pela febre, o suor se formando em tua pequena testa obstinada, o tremor da boca, quando no ar sufocante da sala de audiência, há tantos dias acuada, te recusaste subitamente a olhar, deste tua palavra e teu juramento, ó, fina flor da cavalaria! E por ter acreditado surpreender em perigo, por um momento, um só momento, a honra francesa, tua doce honra, mais frágil do que um lírio, eles nos deixaram de ti a insípida imagem de uma virgenzinha inofensiva, para fazer sonhar os seminários, um mingau açucarado. Eles a queimaram, ou meramente reprovaram no exame do catecismo da perseverança? Balofos! Fazíeis em torno da mártir uma blindagem de barrigas, de coxas grossas, de crânios polidos como marfim, mas ela até o fim ficou olhando, acima das vossas cabeças, um pequeno pedaço de céu livre, aquele céu de março, cruel, cheio de vento, propício para longas cavalgadas noturnas, para a emboscada, para belas proezas armadas...”
p.43 – Afinal, sempre chega a hora dos santos. Nossa igreja é a igreja dos santos. Quem se aproxima dela com desconfiança, só julga enxergar portas fechadas, barreiras e guichês, uma espécie de quartel espiritual. Mas nossa igreja é a igreja dos santos. Para ser santo, que bispo não daria seu anel, sua mitra, sua cruz, que cardeal não daria sua púrpura, que pontífice não daria sua veste branca, seus camareiros, sua guarda suíça e todo o seu poder temporal? Quem não gostaria de ter a força de partir nessa admirável aventura? Porque a santidade é uma aventura. Quem entende isso uma vez entra no coração da fé católica e sente sua carne mortal estremecer com um terror que não é o da morte, com uma esperança sobre-humana. Nossa igreja é a igreja dos santos.

Um dos maiores nomes do rock brasileiro, com 30 anos de carreira, emendou sucesso atrás de sucesso para fazer um show mais impactante do que bandas estrangeiras