Fazendo tanto com tão pouco: os caminhos de Antonio Machado em “Campos de Castela”

26 agosto 2017 às 10h16

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Tradutor do livro “Campos de Castela”, a ser lançado pela editora goiana Caminhos, em setembro de 2017, expõe as particularidades da poética do autor de “Retrato” e “O Deus Ibero”

A Editora Caminhos lançará em setembro o livro “Campos de Castela”, de Antonio Machado (já disponível em pré-venda no site da editora). Confira abaixo o comentário do tradutor e alguns poemas da edição
Sérgio Marinho
Especial para o Jornal Opção
Sobre a tradução
Perceberá o leitor que a tradução, afastando-se da expressão vernácula mais natural, emprega algumas vezes termos que, se foram dicionarizados, parecem tê-lo sido quase que por desencargo de consciência do lexicógrafo. E alguns castelhanismos são de fato inevitáveis, uma vez que Campos de Castela poderia ser chamado de um livro regional, ainda que em hipótese alguma provinciano. Suponho mesmo que o falante nativo de língua espanhola oriundo de outros países que não a Espanha deve sentir algum estranhamento durante a leitura, mais ou menos da mesma ordem daquele que um brasileiro sentiria ao ler o Conde de Monsaraz ou certos poemas ditos provincianos de Cesário Verde.
Por outro lado, se busquei manter essa atmosfera ibérica na tradução, sob outros aspectos tomei maior liberdade, convicto de que o tradutor literário não é essencialmente um transmissor de informações. Não é para conhecer a flora da meseta espanhola que abrimos este volume, por mais que acabemos por aprender algo sobre o assunto. Parece uma observação inócua, mas estou aqui subentendendo o ânimo reverente e meticuloso que se tem manifestado nalgumas traduções das últimas décadas, sobretudo em edições bilíngues. Tenho mesmo a impressão de que não raro o tradutor reverente, por uma curiosa nêmesis, inconscientemente tenta compensar sua omissão diante das mudanças necessárias com a inserção de alterações desnecessárias e às vezes inexplicáveis, e de escrupuloso faz-se temerário.
Esse tratamento, de maneiras científicas e espírito devoto, torna difícil discernir o que é essencial ao texto de partida e o que está ali só como complemento ou alavanca de apoio. Ao trocar a inspiração romântica pela concepção modernista, deixou intacto o véu que nos separa da cozinha da escrita, onde amiúde se recorre aos truques e à imitação de si mesmo, quando não ao vergonhoso rípio.
Manter aquela atmosfera e evitar este acanhamento foram as diretrizes que escolhi para fazer este trabalho e que, estou ciente, em grande medida falhei em seguir. Abarca-as o princípio de que a tradução literária presta contas não ao texto original, que deve desaparecer, mas à língua portuguesa. Daí a opção por uma edição monolíngue.
Sobre a poética
Fugirei à vã polêmica e basearei esta breve exposição da técnica poética usada por Antonio Machado num ponto providencialmente consensual: o domínio da técnica, no sentido de uma forma preexistente, traz ao menos uma vantagem indiscutível, a de nos dispensar de seguir pensando na técnica e nos permitir passar à etapa seguinte: escrever.
Antonio Machado valeu-se das formas tradicionais da poesia de seu país — por exemplo, redondilhas maior e menor, o alexandrino espanhol. Neste último, usou a rima perfeita (clara/ rara); naqueles, a rima toante (hino/ antigo), menos comum em português, mas ainda assim presente em obras importantes, como o “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles. Eis uma amostra:
Sendo moço Alvargonzalez,
dono de alguma fazenda,
que noutras terras se diz
conforto, e aqui, opulência (…)
A respeito do alexandrino espanhol, é oportuno precisar que se trata, na verdade — e à diferença do alexandrino francês —, de uma linha composta de dois hexassílabos, de modo que, para se perceber o ritmo, é necessário fazer após a sexta sílaba uma breve pausa, perceptível, porém não tão longa quanto a pausa de um fim de verso:
me encontrarão a bordo | bem leve de bagagem, ||
quase desnudo, como | um dos filhos do mar. ||
Seria esta a leitura normal, com a ressalva de que nela a estilização da prosódia natural da língua pode gerar certa sensação de monotonia, o que torna legítimo, e mesmo recomendável, a variação ocasional.
Há pouco disse que Antonio Machado usou formas tradicionais. Porém o leitor que houver já folheado este livro terá encontrado poemas que muito se assemelham ao verso livre, exceto pelas rimas:
(…)
O vento sacudiu
os fanados olmeiros da alameda,
levantando em rosados torvelinhos
o pó da terra seca.
A lua aos poucos sobe
arroxeada e ofegante, plena.
(…)

Aqui estamos diante de um caso peculiar. Trata-se do verso chamado silva (selva), combinação de versos na medida completa (no caso, decassílabos) e de versos “interrompidos” na sílaba intermediária mais importante para o ritmo, onde haveria a cesura ou a diérese (no caso do decassílabo, a sexta sílaba). Teríamos assim uma versificação aparentemente livre, mas que consiste em sequências de decassílabos e hexassílabos, ou de redondilhas e trissílabos etc., em si mesmos perfeitamente regulares, tal como figuram na versificação tradicional. É uma forma antiga, vemo-la ser empregue na balada florentina e adaptada, com notável bom êxito, por Giacomo Leopardi. O poeta romântico espanhol Gustavo Adolfo Bécquer deu uma contribuição decisiva ao introduzir nessa forma, então já tornada clássica na literatura espanhola, a rima toante, aproximando-a assim do romanceiro popular, razão pela qual passou a chamar-se “silva romanc”e ou “arromanzada”.
Porém a variante desta usada por Antonio Machado, se não se pode afirmar que constitui algo de inédito, apresenta uma inovação importante: o abandono da composição estrófica por algo mais como uma sequência indefinida de versos. Com isso logrou uma atualização da forma poética literária, efetivando a sua relativa independência da música e conferindo-lhe um grau de flexibilidade ideal, ao mesmo tempo em que se conservam as propriedades formais necessárias para a expressão do pensamento poético, sem o que o verso se torna (como de fato se tornou em grande parte) uma interrupção mais ou menos arbitrária das linhas, um mero capricho tipográfico.
De certo modo, essa realização de Antonio Machado, para além do deleite, seguirá sendo também uma admoestação: o verso livre que deveria ter sido e que não foi.
Como em tudo o mais, também aqui o poeta sevilhano impressiona por ter sabido, como nenhum outro que me ocorra à memória imediatamente, fazer tanto com tão pouco.
Sérgio Marinho é tradutor. Graduado em Letras-Tradução-Francês, pela Universidade de Brasília (UnB), com formação complementar em grego antigo e latim.
***
Alguns dos poemas de “Campos de Castela”, na tradução de Sérgio Marinho
RETRATO
Minha infância são lembranças de um pátio de Sevilha
e de um jardim claro onde madura o limoeiro;
a minha juventude, vinte anos em Castela;
minha história, alguns casos que recordar não quero.
Não fui nenhum Mañara nem Bradomín garrido
— notório é meu vestuário bem pouco lisonjeiro —,
mas recebi a flecha que me enviou Cupido,
e amei quanto as mulheres tinham de hospitaleiro.
Nas veias correm gotas de sangue jacobino,
porém meu verso brota de serena nascente;
e mais que homem de bem, fiel ao figurino,
sou bom (no bom sentido do termo, certamente).
Cativa-me a beleza, e na moderna estética
cortei as velhas rosas do jardim de Ronsard;
mas não estimo os cremes da atual cosmética,
nem sou uma ave dessas do novo gai-trinar.
Desdenho cançonetas de líricos marrecos,
ou o coro de grilos que cantam para a lua.
Detenho-me e distingo as vozes de seus ecos,
e escuto tão somente, entre mil vozes, uma.
Sou clássico ou romântico? Não sei. Deixar quisera
meu verso, como deixa o capitão sua espada:
famosa pela mão viril que um dia a erguera,
não pelo douto ofício do forjador prezada.
Converso com o homem que sempre vai comigo
— quem fala a sós espera falar a Deus um dia —
meu solilóquio é diálogo com esse bom amigo
que me ensinou o segredo sobre a filantropia.
Enfim, nada lhes devo; devem-me meus escritos.
A meu trabalho acudo, e pago com meus meios
a roupa que me cobre e a casa que eu habito,
o pão que me alimenta e a cama em que me deito.
E quando vier o dia da última viagem,
ao partir o navio que nunca há de tornar,
me encontrarão abordo, bem leve de bagagem,
quase desnudo, como um dos filhos do mar.
POR TERRAS DE ESPANHA
O homem destes campos que incendeia os pinhais
e seu despojo aguarda como um troféu de guerra,
antanho já raspara os negros azinhais,
talhara já os robustos carvalhos da alta serra.
Vê hoje os pobres filhos fugindo de seus lares,
o temporal levar o limo de sua terra
pelos sagrados rios até os largos mares,
e em páramos malditos trabalha, sofre e erra.
É filho de uma estirpe de rudes caminhantes,
pastores que conduzem suas hordas de merinos
à Estremadura fértil; rebanhos transumantes
que mancha o pó e doura o sol pelos caminhos.
Pequeno, ágil, sofrido, olhos de homem astuto,
cavados, receosos, inquietos; e traçadas
qual arco de balestra, em seu semblante enxuto
de pômulos salientes, sobrancelhas cerradas.
Sobeja o homem mau do campo e da aldeia,
capaz de insanos vícios e crimes bestiais,
que sob o pardo manto esconde uma alma feia,
escravizada aos sete pecados capitais.
Os olhos sempre turvos de inveja ou de tristeza,
sua presa guarda e chora a que o vizinho alcança;
nem vence o infortúnio nem goza da riqueza;
ferem-no e angustiam fortuna e mal-andança.
O nume destes campos é sanguinário e fero;
ao longe, num outeiro, à hora do sol-pôr,
vereis agigantar-se a forma de um arqueiro,
a forma de um imenso centauro flechador.
Vereis planuras bélicas e páramos de asceta
— não foi por estes campos o bíblico jardim —
são terras para a águia, um trecho do planeta
por onde cruza errante a sombra de Caim.
O DEUS IBERO
Tal como aquele arqueiro,
jogador da cantiga,
uma flecha tivesse o homem ibero
para o Senhor que saraivou a espiga
e malogrou os frutos outonais,
e um “glória a Ti” para O que torna em grão
centeios e trigais,
que o pão bendito um dia lhe darão.
“Ó Senhor da ruína,
adoro porque aguardo e porque temo:
nesta oração se inclina
para a terra o meu coração blasfemo.
“Senhor, por quem arranco o pão com dores,
conheço bem meu jugo, e teus rigores!
Ó tu, dono das nuvens do estio
que o nosso campo arrasa,
do seco outono, do gelar tardio,
e do mormaço que a seara abrasa!
“Senhor da íris, sobre o campo verde
onde a ovelha pasta,
Senhor do fruto que a ferrugem perde,
e da choça que o temporal devasta,
“teu sopro o fogo da lareira aviva,
teu lume amadurece o louro grão,
faz brotar o caroço à verde oliva,
na noite de São João, tua santa mão!
“Ó dono de fortuna e de pobreza,
ventura e mal-andança,
que ao rico dás favores e moleza
e aos pobres a fadiga e a esperança!
“Senhor, Senhor, vi na voltária roda
do ano minha semente ser lançada,
tal como a ficha com que a sorte toda
do jogador no acaso é semeada!
“Senhor, hoje bondoso, ontem cruento,
com duplo olhar amante e vingador,
a Ti, num dado que lancei ao vento,
vai minha prece, blasfêmia e louvor!”
Este que insulta a Deus sobre os altares,
não mais atento ao cenho do destino,
também sonhou caminhos pelos mares
e disse: Deus é sobre o mar caminho.
Não é ele o que pôs Deus sobre a guerra?
e muito além da sorte,
e muito além da terra,
e muito além do mar e até da morte?
Não deu a ibera azinheira
para o fogo de Deus a boa rama,
que foi, na santa fogueira,
de amor una com Deus em pura chama?
Mas hoje… Tanto faz!
Para as novas lareiras
a sombria floresta dá esteveiras,
dão lenha verde os velhos azinhais.
Longa pátria inda espera
ao curvo arado abrir suas entranhas;
pois para o grão de Deus há sementeira
sob os cardos, abrolhos e bardanas.
Hoje tanto faz! O ontem não esqueceu
o amanhã, nem o amanhã o infinito,
ó espanhol; nem o passado morreu,
nem o amanhã — ou o ontem — está escrito.
Quem viu a face desse Deus hispano?
Meu coração aguarda
o homem ibero de punho soberano,
que há de talhar no roble castelhano
o Deus adusto desta terra parda.
O TREM
Eu, para toda viagem
— e sempre sobre a madeira
de meu vagão de terceira —,
sigo leve de bagagem.
Se é de noite, porque não
sinto sono no vagão,
se de dia, para olhar
as arvoretas passar,
eu nunca durmo no trem,
e, apesar disso, vou bem.
Ah, o prazer de partir!
Londres, Madri, Ponferrada,
tão lindos… para se ir.
O ruim é a chegada.
Logo, o trem, ao avançar,
sempre nos põe a sonhar;
e esquece-se um instante
que vai-se num rocinante.
Oh, burrinho
que sabe bem o caminho!
Onde estamos?
A que estação todos vamos?
E essa freirinha, o que fita?
Tão bonita!
Tem essa expressão serena
e que à pena
traz esperança infinita!
E eu penso: És boa, pequena;
porque deste os teus amores
a Jesus; porque não queres
virar mãe de pecadores.
Mas ao seres
maternal,
és bendita entre as mulheres,
ó mãezinha virginal.
Algo em teu rosto é divino
sob essas toucas de linho.
Se nas faces
rosas amarelas trazes,
já foste rosada e, logo,
em tua carne ardeu fogo;
mas hoje, esposa da Cruz,
já és luz, e apenas luz…
Todas as mulheres belas
fossem, como tu, donzelas
em um convento encerrar-se!…
Mas a moça a quem eu quero,
ai! preferirá casar-se
c’um rapazola, um barbeiro!
O trem caminha e caminha,
e a locomotiva velha
tosse com tosse ferina.
Vamo-nos numa centelha!
DO PASSADO EFÊMERO
Este homem do cassino provinciano,
que viu Carancha tourear um dia,
tem murcha a tez, tem o cabelo branco,
olhos velados de melancolia;
bigode cinza, lábios de fastio,
e uma triste expressão, não de tristeza,
mas de algo a mais e a menos: o vazio
do mundo dentro do oco da cabeça.
Reluz ainda, de veludo, o belo
casaco, as calças de cano apertado,
e seu cordovão cor de caramelo,
polido e torneado.
Herdeiro três vezes; as três perdida
no jogo a herança; duas enviuvado.
Só se anima com a sorte proibida,
sobre o verde tapete reclinado,
ou evocando a tarde de um toureiro,
um jogador sortudo, ou se comentam
os feitos de um galhardo bandoleiro,
a proeza dum valentão, sangrenta.
Boceja de política banais
dictérios ao governo reacionário,
e augura que virão os liberais,
como torna a cegonha ao campanário.
Um pouco lavrador, do céu aguarda
e teme ao céu; mais de uma vez suspira,
no olival pensando, e o céu mira
com olho inquieto, quando a chuva tarda.
O resto — taciturno, com desgostos,
da Arcádia do presente prisioneiro —
o aborrece; só o fumo dum palheiro
simula algumas sombras no seu rosto.
Não homem do passado ou do futuro,
senão de nunca; nem fruto maduro
da cepa hispana, nem apodrecido;
é dessas frutas vãs
da Espanha que passou sem haver sido,
a que hoje vai coberta pelas cãs…
AMANHÃ EFÊMERO
A Roberto Castrovido
A Espanha de charanga e pandeireta,
clausura e sacristia,
devota de Frascuelo e de Maria,
de espírito burlão e de alma quieta,
há de ter o seu mármore e o seu dia,
seu amanhã sem falha e seu poeta.
De um ontem vão um amanhã emana
vazio e, com sorte, passageiro.
Será um jovem boçal e doidivanas,
um beato com feitio de bolero,
à moda dos franceses realista,
um pouco ao modo de Paris pagão,
e no estilo de Espanha, especialista
no vício ao alcance de sua mão.
Essa Espanha inferior que dorme e reza,
desordeira e triste, velhaca e inerte,
essa Espanha inferior que reza e investe,
quando se digna a usar sua cabeça,
terá inda longo parto de varões
amantes de sagradas tradições
e de sagradas formas e maneiras;
florescerão as barbas apostólicas,
e outras calvas já sobre outras caveiras
brilharão, veneráveis e católicas.
De um ontem vão um amanhã emana
vazio e, com sorte, passageiro,
a sombra de um boçal, um doidivanas,
um beato com feitio de bolero;
dará um goro amanhã o ontem ibero.
Como a náusea de um bêbedo entupido
de vinho ruim, há um rubro sol que pousa
borras turvas nos cumes de granito;
há um amanhã enjoativo escrito
na tarde pragmática e melosa.
Mas outra Espanha vem,
a Espanha do cinzel e a férrea maça,
com a eterna juventude que contém
o passado maciço de uma raça.
Uma Espanha implacável, redentora,
Espanha que clareia
com um machado na destra vingadora;
é a Espanha da raiva e das ideias.
PROVÉRBIOS E CANTARES
I
Nunca persegui a glória
e nem deixar na memória
dos homens minha canção;
eu amo os mundos sutis,
levíssimos e gentis
como bolhas de sabão.
Gosto de os ver se tingir
de sol e carmim, revoar
no céu azul, tremular
subitamente e explodir.
II
Por que aos sulcos do acaso
de caminho vais chamar?…
Tudo o que caminha anda,
como Jesus, sobre o mar.
III
A quem nos justifica nossa desconfiança
chamamos inimigo, ladrão de uma esperança.
Jamais perdoa o néscio se vê a noz vazia
que fez quebrar aos dentes bons da sabedoria.
IV
Nossas horas são minutos
quando esperamos saber,
e séculos ao sabermos
o que se pode aprender.
V
Nem tem sabor o fruto
colhido ainda verde…
Nem por louvar-te um burro
tornou-se inteligente.
VI
Disso que chamam os homens
virtude, justiça e bondade,
uma metade é inveja,
a outra não é caridade.
VII
Já vi garras ferozes saindo de mitenes;
conheço corvos mélicos, sei de varrões solenes…
O pior patife leva a mão ao coração,
e o parvo mais grosseiro já se infla de razão.
A DOM MIGUEL DE UNAMUNO
Por seu livro Vida de Dom Quixote e Sancho
Este donquixotesco
dom Miguel de Unamuno,
forte basco, vai com o arnês grotesco,
o elmo irrisório, o aprumo
do bom manchego. Dom Miguel, acima,
passa em quimérica cavalgadura,
cravando esporas áureas na loucura,
e sem temer à língua que malsina.
A um povo de arrieiros,
de tolos, jogadores, trapaceiros,
lições vai dando de Cavalaria.
E a alma desalmada de sua raça,
que sob o golpe de sua férrea maça
dorme ainda, talvez desperte um dia.
Quer o cenho ensinar de quem duvida
ao cavaleiro, antes que dê um passo;
qual novo Hamlet a enxergar despida,
junto do coração, a folha de aço.
Tem o alento de uma estirpe forte
que sonhara mais longe que seus lares,
e que buscara o ouro além dos mares.
Ele assinala a glória além da morte.
Quer ser um fundador: Eu creio; Deus
— diz ele — e adiante a mística espanhola…
E é tão bom e melhor do que Loiola:
sabe a Jesus e cospe em fariseus.