Um aspecto instigante da obra é a opção dos autores de não se fixarem numa forma rígida de narrativa. Reflexões íntimas se desatam no delírio de uma escrita desabrida e sem peias, caótica e despida de censura

Casal de escritores Eltânia André e Ronaldo Cagiano, autores de “Diolindas” | Foto: Reprodução

Paulo José Cunha
Especial para o Jornal Opção

Numa divisão rudimentar e simplista, pode-se dizer que existem ro­man­ces “para fora” e romances “para dentro”. Romances “para fora” seriam aqueles que se re­solvem no próprio relato dos fatos que constituem sua essência. O acompanhamento das aventuras e/ou peripécias dos personagens constitui sua graça e seu encanto. Nessa categoria se agrupam os romances épicos, históricos, românticos; os de aventuras, os thrillers de ação e suspense – todos, enfim, cujo substrato é uma narrativa em direção a um desfecho. Alguns se resolvem no próprio enovelar-se dos personagens, como as sucessivas gerações dos Buendía nos “Cem anos de Solidão” do colombiano García Marquez. Noutra categoria se situam os romances “para dentro”, aqueles em que a trama interessa pouco, e desde o início percebe-se no autor a intenção de fazer o leitor mergulhar fundo nos dramas existenciais e psicológicos dos personagens, em vez de apenas acompanhar suas trajetórias e aventuras. As intercorrências que enfrentam em suas vidas não passam de balizas que o narrador utiliza tão-somente como pretexto para o aprofundamento do mergulho nas regiões mais recônditas do subconsciente, nas memórias atávicas, nos conflitos íntimos – enfim, na essência dessa substância abstrata que atende pelo nome de natureza humana. “Ulisses”, de Joyce, pode ser considerado um exemplo clássico desse, digamos, gênero.

“Diolindas” (Editora Pena­lux, 190 páginas), de Eltânia An­dré e Ronaldo Cagiano é um ro­mance “para dentro”. O pretexto para o início do mergulho é o retorno da jovem advogada Bel para o enterro da mãe, Diolinda. Tal como Mar­quez na “Crônica de uma mor­te anunciada”, em que diversos per­sonagens abordam, cada qual a seu modo, o assassinato de Santiago de Nazar, em “Diolindas” vozes diversas se con­jugam numa aparente polifonia, cada uma colocando uma visão (visões que por ve­zes parecem se contraditar) so­bre o que seria a verdade de Dio­linda, de mistura com as verdades dos demais personagens a quem os autores permitem que se expressem na primeira pessoa ou sejam alvos das impressões dos demais.

Impossível não imaginar quantas manhãs, tardes e noites com as respectivas madrugadas os autores gastaram em discussões, elocubrações e visões dissonantes sobre o rumo desse não-enredo que decidiram enfrentar. E os conteúdos das divagações, suposições, circunlóquios, meditações solitárias, surtos de desespero, dúvidas e dúvidas e dúvidas deles dois…e dos personagens!

Ressalte-se que Ronaldo e Eltânia são casados. E o romance, em muitos momentos, põe em causa a própria instituição da vida em comum e da frustração de planos pela anulação de um ou outro cônjuge. Não há como deixar de imaginar como teriam sido as discussões deles dois sobre o rumo a tomar diante de cada encruzilhada do texto, cada um com suas idiossincrasias, suas características de gênero, suas visões de mundo, seus dramas íntimos… Devem ter vivenciado um verdadeiro psicodrama literário e conjugal.

Um outro aspecto instigante da obra é a opção dos autores de não se fixarem numa forma rígida de narrativa, ao contrário. Refle­xões íntimas que vasculham as camadas mais profundas do ser aparecem no formato de prosa narrativa para, de repente, se desatarem no delírio de uma escrita desabrida e sem peias, caótica e despida de censura (tal como o pensamento, que vagueia pelos me­andros da mente humana alheio à lógica fria e cartesiana do raciocínio adestrado). Em outros pontos da obra, a linguagem escolhida é a poética, empregada para expressar a intimidade de certos conteúdos que a secura da prosa não alcança; e, em muitos casos, pela mistura em turbilhão de todas as opções disponíveis, apelando até para o uso de recursos gráficos inusuais co­mo a duplicidade de discursos entremeados e entrecortados, distribuídos espacialmente na página.

Esse jorro de dúvidas, sentimentos e revelações, termina sendo, afinal, o que se poderia chamar, na falta de outra expressão, de “enredo” desse romance intrigante e atrevido. Mais que isso: corajoso, por ter sido escrito a quatro mãos. E ainda assim conseguir chegar a bom termo, entrecruzando os dramas íntimos e secretos dos personagens – principalmente os de Diolinda – com um pano de fundo formado pelas atribulações sociais e políticas do país, desde os tempos da ditadura militar à crise político-social do Brasil de hoje, tudo isso sem perder o fio. Nem o fôlego.

“Diolindas”, o título no plural, se explica pelas revelações que desvelam uma personagem que bem poderia ser simples e de fácil definição – o que mais esperar de uma costureira de uma cidade do interior? Mas que vai se revelando em várias “Diolindas”, numa diversidade de facetas que, ao cabo, não é mais do que a realidade deste desconhecido a que chamamos de ser humano. A costureira Diolinda, dessa forma, é definida a partir dos vários olhares que a dispõem e compõem, como na elaboração de um vestido costurado a várias mãos.

Definitivamente não estamos diante de um romance de passagem. Alguma coisa das dú­vidas e inquietações desse texto continua a pulsar pelos dentros, fechada a última página.

Paulo José Cunha é jornalista, professor e escritor.

Foto: Divulgação

Diolindas
Autores:
Eltânia André e Ronaldo Cagiano
Ano: 2017
Editora: Penalux
Páginas: 190