“Diolindas”: um mergulho pelos dentros do ser
02 setembro 2017 às 09h27
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Um aspecto instigante da obra é a opção dos autores de não se fixarem numa forma rígida de narrativa. Reflexões íntimas se desatam no delírio de uma escrita desabrida e sem peias, caótica e despida de censura
Paulo José Cunha
Especial para o Jornal Opção
Numa divisão rudimentar e simplista, pode-se dizer que existem romances “para fora” e romances “para dentro”. Romances “para fora” seriam aqueles que se resolvem no próprio relato dos fatos que constituem sua essência. O acompanhamento das aventuras e/ou peripécias dos personagens constitui sua graça e seu encanto. Nessa categoria se agrupam os romances épicos, históricos, românticos; os de aventuras, os thrillers de ação e suspense – todos, enfim, cujo substrato é uma narrativa em direção a um desfecho. Alguns se resolvem no próprio enovelar-se dos personagens, como as sucessivas gerações dos Buendía nos “Cem anos de Solidão” do colombiano García Marquez. Noutra categoria se situam os romances “para dentro”, aqueles em que a trama interessa pouco, e desde o início percebe-se no autor a intenção de fazer o leitor mergulhar fundo nos dramas existenciais e psicológicos dos personagens, em vez de apenas acompanhar suas trajetórias e aventuras. As intercorrências que enfrentam em suas vidas não passam de balizas que o narrador utiliza tão-somente como pretexto para o aprofundamento do mergulho nas regiões mais recônditas do subconsciente, nas memórias atávicas, nos conflitos íntimos – enfim, na essência dessa substância abstrata que atende pelo nome de natureza humana. “Ulisses”, de Joyce, pode ser considerado um exemplo clássico desse, digamos, gênero.
“Diolindas” (Editora Penalux, 190 páginas), de Eltânia André e Ronaldo Cagiano é um romance “para dentro”. O pretexto para o início do mergulho é o retorno da jovem advogada Bel para o enterro da mãe, Diolinda. Tal como Marquez na “Crônica de uma morte anunciada”, em que diversos personagens abordam, cada qual a seu modo, o assassinato de Santiago de Nazar, em “Diolindas” vozes diversas se conjugam numa aparente polifonia, cada uma colocando uma visão (visões que por vezes parecem se contraditar) sobre o que seria a verdade de Diolinda, de mistura com as verdades dos demais personagens a quem os autores permitem que se expressem na primeira pessoa ou sejam alvos das impressões dos demais.
Impossível não imaginar quantas manhãs, tardes e noites com as respectivas madrugadas os autores gastaram em discussões, elocubrações e visões dissonantes sobre o rumo desse não-enredo que decidiram enfrentar. E os conteúdos das divagações, suposições, circunlóquios, meditações solitárias, surtos de desespero, dúvidas e dúvidas e dúvidas deles dois…e dos personagens!
Ressalte-se que Ronaldo e Eltânia são casados. E o romance, em muitos momentos, põe em causa a própria instituição da vida em comum e da frustração de planos pela anulação de um ou outro cônjuge. Não há como deixar de imaginar como teriam sido as discussões deles dois sobre o rumo a tomar diante de cada encruzilhada do texto, cada um com suas idiossincrasias, suas características de gênero, suas visões de mundo, seus dramas íntimos… Devem ter vivenciado um verdadeiro psicodrama literário e conjugal.
Um outro aspecto instigante da obra é a opção dos autores de não se fixarem numa forma rígida de narrativa, ao contrário. Reflexões íntimas que vasculham as camadas mais profundas do ser aparecem no formato de prosa narrativa para, de repente, se desatarem no delírio de uma escrita desabrida e sem peias, caótica e despida de censura (tal como o pensamento, que vagueia pelos meandros da mente humana alheio à lógica fria e cartesiana do raciocínio adestrado). Em outros pontos da obra, a linguagem escolhida é a poética, empregada para expressar a intimidade de certos conteúdos que a secura da prosa não alcança; e, em muitos casos, pela mistura em turbilhão de todas as opções disponíveis, apelando até para o uso de recursos gráficos inusuais como a duplicidade de discursos entremeados e entrecortados, distribuídos espacialmente na página.
Esse jorro de dúvidas, sentimentos e revelações, termina sendo, afinal, o que se poderia chamar, na falta de outra expressão, de “enredo” desse romance intrigante e atrevido. Mais que isso: corajoso, por ter sido escrito a quatro mãos. E ainda assim conseguir chegar a bom termo, entrecruzando os dramas íntimos e secretos dos personagens – principalmente os de Diolinda – com um pano de fundo formado pelas atribulações sociais e políticas do país, desde os tempos da ditadura militar à crise político-social do Brasil de hoje, tudo isso sem perder o fio. Nem o fôlego.
“Diolindas”, o título no plural, se explica pelas revelações que desvelam uma personagem que bem poderia ser simples e de fácil definição – o que mais esperar de uma costureira de uma cidade do interior? Mas que vai se revelando em várias “Diolindas”, numa diversidade de facetas que, ao cabo, não é mais do que a realidade deste desconhecido a que chamamos de ser humano. A costureira Diolinda, dessa forma, é definida a partir dos vários olhares que a dispõem e compõem, como na elaboração de um vestido costurado a várias mãos.
Definitivamente não estamos diante de um romance de passagem. Alguma coisa das dúvidas e inquietações desse texto continua a pulsar pelos dentros, fechada a última página.
Paulo José Cunha é jornalista, professor e escritor.
Diolindas
Autores: Eltânia André e Ronaldo Cagiano
Ano: 2017
Editora: Penalux
Páginas: 190