Raimundos abusa dos hits da carreira para superar shows de portugueses e ucranianos

22 agosto 2017 às 11h18

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Um dos maiores nomes do rock brasileiro, com 30 anos de carreira, emendou sucesso atrás de sucesso para fazer um show mais impactante do que bandas estrangeiras

O Raimundos chegou à capital goiana no domingo (20/8), última noite do 23º Goiânia Noise, com a força de atração de um bom público para ver uma das maiores bandas do rock nacional. Com 30 anos de carreira, o grupo formado por Digão no vocal, guitarra e triângulo, Canisso no baixo, Marquim na guitarra e Caio na bateria superou a crise da saída do homem de frente do grupo, o ex-vocalista Rodolfo, em 2001, e depois do baterista Fred (1992-2006), que substituiu Digão no instrumento quando o hoje cantor do conjunto se tornou guitarrista do Raimundos em 1992.
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Das críticas e comparações com a qualidade do vocal de Rodolfo e Digão, o Raimundos passou por cima do pessimismo e do quase fim da banda e se reinventou nos discos Cantigas de Roda (2014) e mais recentemente no celebrado Raimundos Acústico (2017). E não foi só isso que o quarteto precisou ultrapassar para voltar ao patamar de grande do rock no Brasil depois de três décadas de carreira.
O conjunto de Brasília se apresentou depois de dois grandes shows das convidadas estrangeiras da última noite do Goiânia Noise: os portugueses da The Dirty Coal Train, o grupo Os Gringos (EUA/MG) e a ucraniana Stoned Jesus. Com repertório e vibração marcantes, as duas bandas gringas mostraram que para o Raimundos naquele domingo não seria tarefa fácil se consagram como o melhor concerto daquele dia na opinião do público.
Mas nada que o Raimundos não tenha aprendido a encarar de frente e botar para quebrar. E foi justamente o que Digão, Canisso, Marquim e Caio fizeram: colocaram o público para cantar junto todas as canções que fizeram parte do repertório de domingo em Goiânia. Às 22h21, apenas um minuto além do horário previsto para o início do show, os quatro subiram ao palco principal do Jaó Music Hall, no Setor Jaó, e já armaram a primeira roda na plateia com Puteiro em João Pessoa, música pesada que abre o primeiro disco da banda, de 1994.
Se era peso que as diferentes gerações de fãs do Raimundos queriam, elas foram agraciadas com Bê a Bá, que ganhou um trecho com o principal riff de Raining Blood, do Slayer, no meio. De 1994, a banda pulou para 2014 com Baculejo e os versos grudentos “Vai, que eu também vou, vou avançar/Engatado no seu carro e você/Vai, que eu também vou, chegando lá/Esqueço até quem eu sou“.

Pancadaria sonora
Apesar do sucesso com o DVD em versão acústica lançado este ano, o show foi marcado por riffs rápidos nas guitarras de Marquim e Digão, a assinatura grave do baixo de Canisso e os tempos acelerados e a batida forte das baquetas de Caio. A primeira calmaria veio com O Pão da Minha Prima, que não ficava atrás no quesito letra suja, com muito palavrão, sexo e putaria que chocou parentes e professores nos anos 1990, do álbum Lavô Tá Novo (1995).
Digão arriscou sozinho um trecho de A Sua, do disco Cesta Básica (1996), que atraiu os olhares dos fãs antigos da banda com um certo brilho de nostalgia: “I’m tired of believing in you, girl/Tried to believe in you/Cause you’re so close to my mind“. Mulher de Fases, talvez o maior sucesso da carreira dos Raimundos, do disco Só no Forévis (1999), teve o refrão todo cantado apenas pela plateia, que se entregou aos berros aos músicos.
Depois desse início arrebatador, o Raimundos podia tocar qualquer música que as pessoas que estavam ali para ver a banda embarcariam na onda do quarteto. Quando o coro “Hey ho, let’s go!” surgiu entre um grupo que estava mais perto do palco, a banda, que começou como cover dos Ramones, ignorou o pedido e fez outro, também vibrado, cover. Era a vez de cantar um trecho de Love of My Life, do Queen, em homenagem a um dos amigos do grupo que assistia ao show na lateral do palco.
Em seguida o grupo voltou ao Só no Forévis com a canção A Mais Pedida, que contou com coro feminino no lugar do trecho cantado por Érika Martins (Autoramas, ex-Penélope). Antes de tocar Gordelícia, de 2014, Digão dedicou a música “às mulheres mais gostosas desse Brasil”.
Reggae do Manero, gravada em 1997 para o disco Lapadas do Povo, mas que ficou de fora do álbum, manteve o público cantando junto com Digão toda a letra, ampliada com os versos “Esse bicho tá desconsiderando nêgo/Esse bicho tá desconsiderando nêgo/O nêgo é cabeça de gelo/O nêgo é cabeça de gelo/Acende um pra nós fumar/Acende um pra relaxar/Acende um pra nós fumar/Acende um pra relaxar“, de Cabeça de Gelo, de Shalon Israel.
Forrócore
“Chegou a hora da sacolinha”, anunciou Digão antes de tocar o triângulo e enfurecer a roda com Esporrei na Manivela. O hardcore se manteve em alta com Palhas do Coqueiro, com uma dobradinha dos dois primeiros discos na sequência, que parou no meio. O vocalista pediu que quem estava no meio se dividisse em dois lados para fazer o tradicional wall of death (paredão da morte). Quando Digão disse “já”, as duas paredes de fãs se chocaram no meio da plateia e se transformaram novamente em uma grande roda.

Antes do sucesso Vida Inteira, a segunda adaptação do samba Meu Lugar, de Arlindo Cruz e Mauro Diniz, para a abertura da novela Malhação, da Globo, em 2015, o Raimundos fez um pot-pourri com Iron Man, do Black Sabbath, Smells Like Teen Spirit, do Nirvana, e Enter Sandman, do Metallica. Foi quando Digão disse “é por isso que o rock’n’roll nunca vai acabar” e emendou a trilha do folhetim adolescente.
O som da plateia, que foi captado por dois microfones, um em cada lateral do palco, durante todo o show, ampliou o já forte coro da plateia na balada I Saw You Saying (That You Say That You Saw), de 1995. “Eu queria pular no lago do Jaózinho”, brincou Canisso ao final da música. Digão, que não entendeu a referência, perguntou se o baixista não havia confundido o nome do restaurante Jerivá, no meio do caminho entre Brasília e Goiânia. Canisso respondeu: “É que é uma piada interna”.
Me Lambe, de 1999, botou o público para dançar com sua letra pra lá de indecente cheia de trocadilhos. 20 e Poucos Anos, música de Fábio Jr. regravada pelo Raimundos em 2000 e que virou abertura do programa da MTV Brasil com o mesmo nome, foi cantada com empolgação.
“Esses cartéis que o povo tá fazendo. É na política, é nas empresas. E na música não é diferente. Nego compra rádio. […]”, reclamou Digão na hora de cantar Deixa Eu Falar, do Só no Forévis. E continuou depois da música: “É fora, Temer, fora, PT e todos eles”. O “tamo junto” foi a deixa para fechar 1 hora e 25 minutos de um impactante show que passou a limpo grande parte dos 30 anos do Raimundos com Eu Quero Ver o Oco. E ainda teve quem aguentou ficar no Jaó Music Hall para ver o show do guitarrista do Ira! (SP), Edgard Scandurra, ao lado da banda paranaense Relespública até 0h45 de segunda-feira (21). Haja pique!
Não foi só isso
Como assim só isso? O Raimundos fez um baita de um show com o peso de 30 anos de estrada muito bem lembrados ao vivo no Goiânia Noise. A terceira e última noite da 23ª edição do festival começou com as bandas goianas Acéfalos, Light River Company e DogMan, além da paranaense Red Mess.
Quando a goiana Chef Wong’s começou a se apresentar no Estúdio Sonoro, a mineira Os Gringos, de Itajubá (MG), com quatro integrantes dos Estados Unidos e um brasileiro, subiu ao palco 1 do Jaó Music Hall, às 19 horas. A mistura de rock, blues, psicodelia, rap, funk americano e country, que vai de James Brown, passa por Rage Against The Machine e chega ao Led Zeppelin com facilidade, encantou o público que já estava no Jaó Music Hall naquele horário depois de quatro shows no domingo e outros 38 apresentações nos dois dias anteriores.
O grupo formado por Jonathan “Daniel” Friend (americano) e Jimmy Huntington Jr. (americano com dupla cidadania) nas guitarras, João Luiz Castilhos (americano com dupla cidadania) no vocal, Justin Michael Hansen (americano) no baixo e Guilherme Paiva (brasileiro) na bateria mostrou ao vivo a força de seu segundo disco, The Animal Kingdom, lançado em julho. Muito feliz de se apresentar no Goiânia Noise, o vocalista, filho da mistura de pais do Brasil e Porto Rico, agradeceu pelo convite, a confiança da Monstro Discos em lançar o novo trabalho da banda e convidou o público a comemorar o momento de alegria com Os Gringos.

Com direito a vários momentos de um vocal recheado de soul e boa postura, os músicos mostraram que sabem dominar bem um palco grande e não poupam talento. Era a primeira amostra de que os gringos que se apresentariam no domingo não deixariam barato para quem tentasse roubar a cena depois deles.
Do rock cheio de groove e emoção da Os Gringos, o público ganhou uma grande apresentação do mais forte rock garageiro com uma forte influência de blues, pós-punk e surf music. A dupla portuguesa The Dirty Coal Train, que já havia feito um belíssimo show na edição de 2016 do Goiânia Noise, voltou ao Brasil e encerrou sua turnê que passou em 13 datas por cidades argentinas e brasileiras na capital goiana disposta a ganhar novos fãs. A formação Ricardo Ramos e Beatriz Rodrigues nas guitarras e vocais ganha um terceiro membro quando sobe ao palco: o baterista Marky Wildstone, da brasileira The Dead Rocks.
O vocal grave de Beatriz e as guitarras sujas de Ricardo se unem a uma energia incomparável ao vivo. As vozes dos dois se misturam enquanto a barulheira das cordas colocar o público para dançar da forma mais esquisita possível, no que pode ser considerado o grande momento garageiro do 23º Goiânia Noise. Antes de Kirby Demos (2017), a dupla tinha outros nove registros de estúdio, o primeiro deles de 2012.
Quando Ricardo resolveu descer do palco e tocar guitarra no meio do público, a banda de Lisboa, que já havia conquistado a plateia, aumentou o nível de exigência do público em relação aos próximos shows. Mas antes de terminarem sua apresentação, uma eletrizante performance de Beatriz abraçada com as pessoas que estavam na grade, que terminou com a cantora se jogando no chão em êxtase, terminou de atrair os olhares atentos dos presentes.

Stoner da Ucrânia
A sorte do Stoned Jesus, trio ucraniano que mistura stoner rock e metal, é que eles sabiam o que vieram fazer em Goiânia no show de encerramento da turnê de oitos shows na América do Sul que incluíram Argentina, Chile e Brasil. Talvez meia hora tenha sido pouco para uma banda com canções que têm, todas as cinco incluídas na turnê, mais de oito minutos de duração. A exceção é Here Come the Robots, do álbum The Harvest (2015), que tem pouco mais de 3 minutos. Um dos momentos mais marcantes, com muita gente cantando junto os versos, foi I’m the Mountain, do disco Seven Thunders Roar (2012), tem 16 minutos.
A mistura de influências, que vai do Tool ao The Mars Volta e Black Sabbath, arrastou uma quantidade considerável de fãs ao Jaó Music Hall. Muitos deles que foram apenas para ver o trio ucraniano que tem Igor Sydorenko no vocal e guitarra, Sergii Sliusar no baixo e um baterista substituto, que entrou no lugar de Viktor Kondratov para a turnê em agosto. Com um show comemorativo de cinco anos do lançamento do álbum Seven Thunders Roar, essa é a segunda vez que o grupo vem da Ucrânia para a América Latina, como aconteceu em 2016.
Electric Mistress mostrou a pegada mais Black Sabbath da banda, com todo o peso necessário para agradar os fãs que não perderam um sequer detalhe da apresentação da “Jesus Chapado”, como os brasileiros chamam a banda. Mas foi reduzida para caber no show, já que tem pouco mais de nove minutos. Aliás, o vocalista adora tanto a tradução do nome que usou nas postagens das redes sociais dos detalhes das cidades pelas quais a Stoned Jesus passou com a turnê no Brasil.

Se eu contei certo, o trio conseguiu tocar quatro músicas ao vivo – Bright Like the Morning, Electric Mistress, Indian e I’m the Mountain – nos 30 minutos que tinha. Assim como no dia anterior, em que fãs do Cólera queriam mais tempo para a banda punk paulistana, os seguidores da “Jesus Chapado” bem que gostariam de ver os 47 minutos do álbum ao vivo. Mas todo mundo pareceu bastante feliz e satisfeito quando o show acabou.
Retorno ao rock em português
Rocca Vegas, a mais nova banda do vocalista cearense Maurílio Fernandes, ex-Switch Stance, mostrou uma pegada mais comercial e pop rock do que o público esperava naquela noite. Mesmo assim, o quinteto mostrou uma boa pegada no quarto show desde o início do grupo com canções como Noite, Sinal de Alerta e O Anti Herói, na qual Maurílio pediu a ajuda do público para cantar o refrão. “Uma coisa que me chamou a atenção das outras duas vezes que vim tocar em Goiânia: o povo vê as bandas desconhecidas por curiosidade. Isso não acontece em outros lugares.”
No palco 1, o trio goiano Sheena Ye mostrou no Goiânia Noise seu recém-lançado disco de estreia Seu Tempo Acabou. O single Tudo Volta Pra Você foi acompanhado por amigos e fãs do grupo formado por Mário Nacife (baixo e vocal), Douglas Dieck (guitarra) e Vinicius Bernardes (bateria). Seu Tempo Acabou, que dá nome ao álbum, mostrou a força do rock que vai do AC/DC ao Nirvana e Black Sabbath com letras em português.
Ao mesmo tempo, às 21 horas, a também goiana Rural Killers fez o apertado Estúdio Sonoro ficar menor ainda em um show marcante com o público no meio do palco. A vocalista Sarah Tannus em momento algum se acanhou com o fato de ser uma das apenas três mulheres de todos os músicos que se apresentariam no domingo do Goiânia Noise. Ela liderou e muito bem a banda em uma apresentação pesada e barulhenta.
Além de Sarah, só Camila Andrade, baixista e vocalista da Armum, e Beatriz, da The Dirty Coal Train, representaram as mulheres na última noite do festival, que contou com 53 homens nos três palcos. O sexo feminino, num universo de 54 atrações, chegou ao número de sete músicas. Já o lado masculino da participação nesta edição do Goiânia Noise atingiu a quantia de 208 representantes. O que significa que as mulheres eram 3,25% dos artistas, enquanto os homens chegaram a 96,75% do total.

Horário invertido
Como o trio paranaense Relespública, que se apresentaria às 21h30 ao do guitarrista Edgard Scandurra, do Ira! (SP), teve problemas para chegar a Goiânia por um atraso no voo, o horário que no qual seria realizado o show ficou sem qualquer atração no palco 2.
Assim que o Raimundos encerrou sua participação no Noise, às 23h45, Fabio Elias (vocal e guitarra), Moon (bateria), Ricardo Bastos (baixo) e Scandurra abriram os trabalhos com You Really Got Me, do The Kinks, e continuaram com In the City, do The Jam. “Falei com eles: ‘Tem que começar moendo tudo senão o público vai embora'”, comentou Leo Razuk, um dos sócios da Monstro Discos, responsável pelo festival.
So Sad About Us, do The Who, foi o terceiro cover em sequência do início do show da Relespública e Edgard Scandurra no encerramento do Goiânia Noise. E a tática deu certo. Mas com o passar do tempo o público diminuía aos poucos. Principalmente depois da meia-noite. Eu Quero Sempre Mais, do Ira!, trouxe o repertório para o quintal de Scandurra, e agradou aos fãs do Raimundos que ficaram.
E continuaram com a música Nas Ruas, também do Ira!. A Fumaça É Melhor Que o Ar, da Relespública, não fugiu tanto da banda de Scandurra, já que foi gravada com participação de Nasi, vocalista da banda paulistana, em 2003. Depois de mais um cover, a Relespública puxou mais uma canção do grupo paranaense: Sol em Estocolmo.
O vocalista Fabio Elias comenta que aquela foi uma noite que quase não aconteceu pelo atraso do voo. “Nós chegamos em Goiânia na metade do show dos Raimundos.” Edgard Scandurra não perdeu o momento e emendou: “Eu já estava preparando o violãozinho”. Foi aí que o integrante da Relespública disse “nunca desista do seu sonho que você vai chegar lá, nem que chegue atrasado”. E canta Capaz de Tudo, da Relespública.
Scandurra puxa uma música dele. Minha Mente Ainda É a Mesma foi a escolhida pelo guitarrista do Ira!. Depois de tocarem uma faixa instrumental e outra de James Brown, os quatro seguiram com Ninguém Entende Um Mod!, do Ira!, e My Generation, do The Who. O fim do 23º Goiânia Noise veio com Núcleo Base, da banda do paulistano, que foi cantada pelos pouco mais de 40 sobreviventes que resistiram até 0h45 de segunda. Era hora de ir embora, se despedir do festival e tentar descansar para trabalhar na manhã do mesmo dia.