Opção cultural

Professor do Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) fala de seu último livro, recentemente lançando pela editora É Realizações, “Culturas Shakespearianas: Teoria Mimética e os Desafios da Mímesis em Circunstâncias não hegemônicas”

Na terceira peça, é proposto um ritual em que o pastor ou guia, possivelmente um robô, inicia os fiéis num novo tipo de atividade espiritual que consiste em levar a antropofagia ao seu ponto extremo

Não que eu viva no Século XII ou XIII, mas meu pensamento viaja bastante por lá (de São Bernardo a Dante, de Hildegard de Bingen a Alberto Magno – com tudo que possuem de desigual entre eles); não é inconfessável desejar que volte a ser ensinada aos jovens a velha fórmula clássica da busca pelo o que é Belo, o que é Bom e o que é Verdadeiro
[caption id="attachment_106283" align="alignleft" width="620"] Casa di Dante, em Florença, Itália[/caption]
Em 1265 as coisas não se davam como hoje, no local onde está fixada a “Casa-museo di Dante”. Além do número de pessoas que circulam pela pequena viela que leva ao local, com certeza, as paixões, os valores e os preceitos de vida, ali recebem como que um sopro na brasa antiga e, aparentemente apagada, fazendo o visitante refletir a respeito de uma série de crenças e de um comportamento ético que estão, digamos, em desuso.
Em meio a argumentos odiosos, hoje, ouvimos dizer-nos uns aos outros, no Brasil, quando as coisas não vão ao nosso gosto, em tom de ofensa: “quer voltar à era Medieval”?
E quanto os corruptos (que os há desde que Adão deixou o Paraíso) das repúblicas (e republiquetas) de hoje jamais qualificam de “monárquico” o comportamento dos colegas que se vêem na mesma enrascada do pecado cometido ou, quiçá, na mesma prisão –, o xingamento ao que é corrupto sempre diz “fulano não teve um comportamento nada republicano”. Paradoxais, no mínimo, parecem-me as duas expressões...
Não que eu viva no Século XII ou XIII, mas meu pensamento viaja bastante por lá (de São Bernardo a Dante, de Hildegard de Bingen a Alberto Magno – com tudo que possuem de desigual entre eles); não é inconfessável desejar que volte a ser ensinada aos jovens a velha fórmula clássica da busca pelo o que é Belo, o que é Bom e o que é Verdadeiro (lição retomada de Aristóteles pelos educadores da alta Idade Média), mas pelo menos, que tal tê-la como válida para legenda de uma vida – ao invés do “quanto mais popular, melhor ?” – que é a legenda do Século em que vivemos, nesta civilização do espetáculo (Vargas Llosa, 2012).
São ideias assim que se colocam em campos opostos as duas eras, naquilo que cada uma tem de mais característico e que fazem refletir muito o turista do destino cultural chamado Florença (ou por extensão Toscana). Neste caso, a visita a Florença tem para mim o condão de fazer reavivar a brasa interior que queimou literamente (ou imagisticamente) a pele de muitos talentos, devotos (ou não) ao longo da dita Idade Média, a começar pelo que hoje só podemos nomear como “Sommo Poeta” – o símbolo da Firenze do Século XIII e dádiva divina ao mundo da Poesia italiana e universal.
A verdade é que por obra e insistência, ou seria do uso exaustivo da figura de linguagem da repetição que uma mentira veio se tornando em “verdade incontestável” – a partir dos chamados livres pensadores, principalmente a partir dos enciclopedistas, Diderot e D’Alembert, quando a Idade Média ficou conhecida como “Dark ages”.
Alertado pelo escritor e crítico maranhense Franklin de Oliveira, no prefácio de “Literatura e Civilização”, comecei, há alguns anos, a empreender uma busca que me levou a compreender que “a Idade Média…não foi, de forma alguma, a Dark Ages inventada pelos historiadores liberais do séc. XIX, mas a genuína herdeira do mundo greco-romano.” E com a ajuda dele Franklin, de Robert Bossuat, de Huizinga e de Jacques Le Goff (com todos os seus desvios e rusgas anti-religiosas ou, melhor, anticlericais, como historiadores), compreendo hoje que “a Idade Média significa a fundação da Europa em sua base cristã-romana”; e comecei a me deliciar com um dos dois fatos apontados por Franklin como de alta significação cultural do período, a saber: “o estupendo fenômeno da literatura provençal e a aparição da poesia dos clerici vagantes”; e de monumentos civilizacionais que nomeamos Dante Alighieri (nascido Durante Alaghiaro) ou Guido Cavalcanti, mestre do florentino.
Em outro contexto, Franklin cita Arnold Hauser (A História Social da Arte) para justificar que a presença da mulher no centro do lirismo trovadoresco (la poésie lyrique au Moyen Age), com a mescla do platonismo e sensualismo, determina “aquilo que chamamos de a mais importante transformação da história literária do ocidente” (Hauser). E conclui: “a poesia do amor moderno é obra da Idade Média” – cujo cimo da Comédia é o Canto XXIII de “O Paraíso”, onde Dante nos lega este verso final de incontornável beleza: “l’amor che move il sole e l’altre stelle.”
De fato, para Dante, vale a síntese de Nicola Bianchini[i]: “todos os meus pensamentos se voltam para o Amor”. É o que confirmamos em outra autora importante, também libertadora da ideia redutora de “Idade média” (e suas conclusões nada elogiosas ao rico período de mil anos!). Com Régine Pernoud[ii] (autora de “O mito da idade média”), aprendemos que:
“As razões pelas quais a Idade Média tem sido desfigurada evidentes: a história é o terreno mais palmilhado pelas ideologias, que procuram encontrar na evolução dos tempos as premissas para os seus princípios filosóficos. Ora o século XVI deu início a um período de anticlericalismo até chegar ao ateísmo e materialismo do século XIX. Os autores desses quatro séculos, inspirados por seus princípios filosóficos, alimentaram aversão aos tempos medievais, fortemente marcados pela fé e pelos valores religiosos; a história daquela época foi lida em função de noções preconcebidas que falseiam a ótica dos estudiosos. Quem deseja avaliar com objetividade a história do passado, tem que transpor-se para a época estudada, pesquisar os seus documentos-fontes e reconhecer os critérios dos antepassados; se não, fará um juízo arbitrário e errôneo.”
Exilado de Florença, por uma condenação injusta, depois de um verdadeiro “imbroglio”, que é matéria específica para os historiadores e não cabe nesta crônica. Pois bem, o político e o poeta florentino Dante Alighieri separam-se, definitivametne, para se erguer à posteridade o magnífico Poeta, como um dos verdadeiros monumentos do Medievo. Mesmo tendo perdido a causa política em que se metera como jovem (24 anos à época da batalha de Campaldino) partidário dos “guelfos" (brancos vs. negros) contra os "gibelinos"; mesmo tendo a desgraça lhe sorrido com dentes putrefactos; nada disso pôde lhe estancar o talento, a emocão e o domínio técnico do verso que fazem dele o Sommo Poeta.
Sabe-se na Casa di Dante que, por primeiro, Dante recebera uma multa de cinco mil florins de seus adversários políticos que retomaram o poder em Florença; e, depois, tendo se negado a pagá-la, fora condenado à morte ou ao desterro. Teria essa contenda que envolveu o jovem poeta o levado a exilar-se da cidade que amava e a quem ele havia dedicado todo seu compromisso intelectual e político. Daí, talvez, as referências a Florença e a alguns florentinos no Canto X de “O Inferno” (a parte talvez mais incensada hoje em dia da “Comédia” dantesca!). [Continua]
Canto XXV, de “O Inferno”, de Dante Alighieri, por Machado de Assis
Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo As mãos em figas, deste modo brada: "Olha, Deus, para ti o estou fazendo!" E desde então me foi a serpe amada, Pois uma vi que o colo lhe prendia, Como a dizer: "não falarás mais nada!" Outra os braços na frente lhe cingia Com tantas voltas e de tal maneira Que ele fazer um gesto não podia. Ah! Pistóia, por que numa fogueira Não ardes tu, se a mais e mais impuros, Teus filhos vão nessa mortal carreira? Eu, em todos os círculos escuros Do inferno, alma não vi tão rebelada. Nem a que em Tebas resvalou dos muros. E ele fugiu sem proferir mais nada. Logo um centauro furioso assoma A bradar: "Onde, aonde a alma danada?” Marema não terá tamanha soma De reptis quanta vi que lhe ouriçava O dorso inteiro desde a humana coma. Junto à nuca do monstro se elevava De asas abertas um dragão que enchia De fogo a quanto ali se aproximava. "Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, — Que, sob as rochas do Aventino, ousado Lagos de sangue tanta vez abria. Não vai de seus irmãos acompanhado Porque roubou malicioso o armento Que ali pascia na campanha ao lado. Hércules com a maça e golpes cento, Sem lhe doer um décimo ao nefando, Pôs remate a tamanho atrevimento." Ele falava, e o outro foi andando. No entanto embaixo vinham para nós Três espíritos que só vimos quando Atroara este grito: "Quem sois vós?" Nisto a conversa nossa interrompendo Ele, como eu, no grupo os olhos pôs. Eu não os conheci, mas sucedendo, Como outras vezes suceder é certo, Que o nome de um estava outro dizendo, "Cianfa aonde ficou?" Eu, por que esperto E atento fosse o Mestre em escutá-lo, Pus sobre a minha boca o dedo aberto. Leitor, não maravilha que aceitá-lo Ora te custe o que vais ter presente, Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo. Eu contemplava, quando uma serpente De seis pés temerosa se lhe atira A um dos três e o colhe de repente. Com os pés do meio o ventre lhe cingira, Com os da frente os braços lhe peava, E ambas as faces lhe mordeu com ira. Os outros dous às coxas lhe alongava, E entre elas insinua a cauda que ia Tocar-lhes os rins e dura os apertava. A hera não se enrosca nem se enfia Pela árvore, como a horrível fera Ao pecador os membros envolvia. Como se fossem derretida cera, Um só vulto, uma cor iam tomando, Quais tinham sido nenhum deles era. Tal o papel, se o fogo o vai queimando, Antes de negro estar, e já depois Que o branco perde, fusco vai ficando. Os outros dous bradavam: "Ora pois, Agnel, ai triste, que mudança é essa? Olha que já não és nem um nem dous!" Faziam ambas uma só cabeça, E na única face um rosto misto, Onde eram dous, a aparecer começa. Dos quatro braços dous restavam, e isto, Pernas, coxas e o mais ia mudado Num tal composto que jamais foi visto. Todo o primeiro aspecto era acabado; Dous e nenhum era a cruel figura, E tal se foi a passo demorado. Qual camaleão, que variar procura De sebe às horas em que o sol esquenta, E correndo parece que fulgura, Tal uma curta serpe se apresenta, Para o ventre dos dous corre acendida, Lívida e cor de um bago de pimenta. E essa parte por onde foi nutrida Tenra criança antes que à luz saísse, Num deles morde, e cai toda estendida. O ferido a encarou, mas nada disse; Firme nos pés, apenas bocejava, Qual se de febre ou sono ali caísse. Frente a frente, um ao outro contemplava, E à chaga de um, e à boca de outro, forte Fumo saía e no ar se misturava. Cale agora Lucano a triste morte De Sabelo e Nasídio, e atento esteja Que o que lhe vou dizer é de outra sorte. Cale-se Ovídio e neste quadro veja Que, se Aretusa em fonte nos há posto E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja. Pois duas naturezas rosto a rosto Não transmudou, com que elas de repente Trocassem a matéria e o ser oposto. Tal era o acordo entre ambas que a serpente A cauda em duas caudas fez partidas, E a alma os pés ajuntava estreitamente. Pernas e coxas vi-as tão unidas Que nem leve sinal dava a juntura De que tivessem sido divididas. Imita a cauda bífida a figura Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo Que a pele do homem se tornava dura. Em cada axila vi entrar um braço, A tempo que iam esticando à fera Os dous pés que eram de tamanho escasso. Os pés de trás a serpe os retorcera Até formarem-lhe a encoberta parte, Que no infeliz em pés se convertera. Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte A cor lhes muda e põe à serpe o velo Que já da pele do homem se lhe parte, Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo Aquele torvo olhar com que ambos iam A trocar entre si o rosto e a vê-lo. Ao que era em pé as carnes lhe fugiam Para as fontes, e ali do que abundava Duas orelhas de homem lhe saíam. E o que de sobra ainda lhe ficava O nariz lhe compõe e lhe perfaz E o lábio lhe engrossou quanto bastava. A boca estende o que por terra jaz E as orelhas recolhe na cabeça, Bem como o caracol às pontas faz. A língua, que era então de uma só peça, E prestes a falar, fendida vi-a, Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa. A alma, que assim tornado em serpe havia, Pelo vale fugiu assobiando, E esta lhe ia falando e lhe cuspia. Logo a recente espádua lhe foi dando E à outra disse: "Ora com Buoso mudo, Rasteje, como eu vinha rastejando!" Assim na cova sétima vi tudo Mudar e transmudar; a novidade Me absolva o estilo desornado e rudo. Mas que um tanto perdesse a claridade Dos olhos meus, e turva a mente houvesse, Não fugiram com tanta brevidade, Nem tão ocultos, que eu não conhecesse Puccio Sciancato, única ali vinda Alma que a forma própria não perdesse;[iii]Como dizia a você, dileto leitor, se resistiu a ler até aqui: cabe observar que algumas referências históricas no Canto I sugerem que "O Inferno" foi, provavelmente escrito por Dante no final de 1309, enquanto outras dicas no Canto II indicam que "O Purgatório" foi concluído entre 1313 e 1314. Em 1316, Dante dedicou a um certo Cangrande della Scala o primeiro Canto de "O Paraíso", no qual trabalhou até os últimos dias de sua vida. A transfiguração da raiva e da mágoa, expressão de sua tristeza e raiva por ter sido condenado e, de certa forma, condenado pelas artimanhas da “cidade-Estado” florentina, como se vê nos versos traduzidos por Machado de Assis e também por Dante Milano (cuja tradução do Canto V também é recomendada ao leitor como dever-de-casa). A primeira reflexão política que o peregrino da Comédia está prestes a fazer durante sua viagem ao reino dos mortos é dedicada a Florença, e essa é uma demonstração óbvia de quão importante era este tema para o autor. No sexto canto do inferno, estabelece o círculo do gênio, no qual as almas malignas são forçadas a sofrer uma chuva incessante, dá-se uma reunião e um diálogo entre o viajante e Ciacco (Caco), um florentino “Que, sob as rochas do Aventino, ousado/Lagos de sangue tanta vez abria.” Dante pede-lhe para falar sobre como a guerra entre as diferentes facções serão resolvidas, quais são os motivos de tais confrontos violentos e questioná-lo, mesmo que haja alguns homens honestos na cidade. Muito dessas desventuras está transposto em uma refinada e específica forma de fazer poesia (em terza rima, com sofisticação e profundidade de conteúdo, ritmo e rima), em “O Inferno” (1ª. parte da Divina Comédia). Em visita a Florença, depois de um primeiro dia de chuva e multidões (era domingo) nas ruas de Firenze, pude na última segunda-feira ensolarada, passar a manhã inteira em busca do poeta que nunca vimos mas que sentimos influenciador de toda uma literatura de seu tempo até agora – passados quase setecentos anos de sua morte, ocorrida em 14 de setembro de 1321, no exílio em Ravena. Sobre a importância e grandiosidade da obra de Dante, o professor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Lucchesi[iv], assinala que “o estudo da obra de Dante em língua portuguesa forma, por densidade e extensão, um ramo de não pequeno relevo no campo de interesse dos dantólogos. E pode se dividir em duas fases, antes e depois de Machado de Assis, de quem se esperava, aliás, a tradução completa da Comédia, que havia de ser magistral, a julgar pela tradução feita por Machado do canto 25 do Inferno. O melhor do que nos legou o Segundo Reinado, além das releituras de Dante esparsas nas páginas machadianas, desfeitas ou mesmo transformadas, como em "O alienista": "la bocca sollevò dal fiero pasto, quel seccator". Antes de Machado, comparece na poesia dos poetas coloniais, que ou realizam translatos da obra dantesca, ou multiplicam citações, absorvendo-lhe o cenário e alguma temperatura, como Manoel de Santa Itaparica em Estáquidos, ou nas harmonias celestiais do Caramuru, de Santa Rita Durão, onde surge um Dante-Camões, entre o canto 10 de Os lusíadas e o 33 do Paraíso. A máquina do mundo e o livro de Deus. Era sempre a Comédia que fazia parte do acervo da Companhia de Jesus e dos monges beneditinos, cujo primeiro exemplar do poema sacro - segundo Câmara Cascudo - teria chegado já no século XVII.” Casas-museus – de Thomas Mann a Gilberto Freire As casas-museus são uma boa e agradável forma de o leitor rememorar ou de ter o primeiro contato com um grande escritor do passado. Servem como uma verdadeira porta de entrada para uma espécie de “íntima relação com um desconhecido-íntimo pela leitura”, conhecendo-lhe aspectos da vida de escritor, detalhes daquele ser a quem o leitor só teve acesso através do livro. A casa-museu é este local privilegiado onde se adiciona um olhar mais direto ao modo de vida e aos hábitos do escritor que se admira, sua forma de escrever (seus hábitos e manias); conhecimento de parte de seu acervo deixado à posteridade, frutos do zelo de amigos, familiares, admiradores e editores (com ou sem financiamento público). [caption id="attachment_106286" align="alignleft" width="620"]


Com estrutura melhorada, número maior de seguranças e uma programação diversa, último dia cheio da programação deu show na amplitude da representatividade

Público foi confortado (dentro do possível) com bela apresentação da musa Pabllo Vittar, que driblou problemas de segurança no palco e falhas no microfone com muita simpatia e presença hipnotizante

Com sete atrações, festival chega ao Palácio da Música, no Centro Cultural Oscar Niemeyer, tem a goiana Chell às 20 horas desta sexta (22/9) e vai até 1 hora de sábado (23), quando a maranhense sobe ao palco

Banda Corazones Muertos (SP/ARG) traz memórias do espaço de shows independentes de São Paulo para a programação do Festival a partir das 20 horas desta quinta (21/9)

A Poesia será o cantar deste pássaro da noite audível a qualquer ser disposto a tomar da água refrescante que salta das estantes, em forma de livro
[caption id="attachment_105765" align="alignleft" width="620"] São João da Cruz, poeta e místico espanhol do século XVI[/caption]
Deixo o meu interlocutor perguntar e, à maneira de Temístocles Linhares, diante daquele perguntador retórico, mesmo sem o mesmo talento do emérito crítico, vou tentando responder-lhe às indagações.
- Se há mesmo utilidade na poesia, então, afinal, a crise é dos poetas ou da ausência de leitores? – dispara meu interlocutor.
Na primeira parte dessa investigação, falei do esforço de se criar um público leitor, a partir da experiência de leitura de poesia (e de literatura em geral) nas escolas – conforme a referência ao excelente trabalho “Trilhas na formação do jovem leitor[i]” (Goiandira Ortiz e Maria Zaira Turchi, organizadoras, 2015).
Não vamos confundir as coisas, por questão de método, dividamos as questões. Assim, a) a ausência dos leitores no mundo hodierno; b) A crise da poesia; c) poesia: uma esperança que não quer se apagar. Vamos, pois, ao simples abc, em meio à complexidade de um mundo cheio de algoritmos que querem determinar o que (e quanto) lemos.
Como pressuposto a falar de uma crise, lembremo-nos sempre de que o conhecimento está na gênese da Poesia, digo, repetindo Temístocles Linhares[ii] ao analisar a obra de José Guilherme Merquior (A astúcia da mimese, 1972), a respeito da análise que este fazia da poesia do pernambucano João Cabral de Melo Neto:
“O conhecimento, no caso, é existência e a existência é conhecimento. E a poesia é a voz da existência, como no nosso poeta. Para que melhor justificação que essa? A poesia como estudo de sua própria essência, a poesia como conhecimento, como uma espécie de operação sobre o tempo e sobre o espaço, uma manipulação do tempo e do espaço, chegando mesmo à criação de um tempo que não seja mais o tempo...”
Em poetas que exercem a imitação da realidade, como o fez João Cabral, isso é muito importante, e vem se repetindo para poetas que herdaram e deram continuidade à vertente dessa capacidade de “adesão ao primado da realidade objetiva, identificada como o universo social em suas relações concretas...sem filosofia transcendentalista. ”
E quanto aos ditos metafísicos e transcendentalistas, como lidar com eles e ainda assim achar alguma adequação da Poesia ao conhecimento? O que dizer dos que da poesia lançam mão como o fez São João da Cruz, para uma espécie de ascensão, de elevação do material ao espiritual, como na “Subida do Monte Carmelo” ou na sua “Noite escura”
“Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada,
Oh! Ditosa ventura!
Saí sem ser notada,
Já minha casa estando sossegada. ”
Eis que duas vertentes se opõem e, no entanto, entre elas a comunhão que se interpõe é a linguagem. Afinal, como queria Martin Heidegger, em “A poesia de Hölderlin”: “É mesmo apenas a linguagem que nos concede a possibilidade de estar no centro da abertura do ente. Apenas onde há linguagem há um mundo, ou seja, o local das mudanças nas decisões e obras, de ações e responsabilidade, mas também de arbítrio e rumor, decadência e confusão. Somente onde há mundo que domina há história. A linguagem é um bem em sentido mais originário. Ela traz o bem-estar, ou seja, a garantia de que o homem pode ser enquanto [ser] histórico[iii]”.
Em ambas há a exigência de um vetor comum – a linguagem e de um requisito fundamental – o silêncio interior, uma espécie de fuga que é um enfrentar-se, uma subida que é um mergulho em si mesmo e nas coisas da alma. Talvez por isso o mesmo Heidegger tenha dito que “a poesia é nomear que institui o ser e a essência de todas as coisas”. Similar condição do pensamento de Vilém Flusser para quem antes de entendermos o perfume da rosa ou o sabor da maçã foi preciso que alguém as nomeasse – doassem vida imaterial a algo que se vê e ao Amor descrição para além do ato, como o fez o fundador da língua Portuguesa, Luís Vaz de Camões, em um de seus famosos sonetos sobre o Amor:
Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
Ora, em ambos os casos – o do que imita a realidade para nomeá-la (João Cabral) e o do que imerge para subir aos altos cimos da espiritualidade (o espanhol João da Cruz e um Jorge de Lima, entre os poetas brasileiros) – o que os une é “o estado de emergência” que parecem alimentar o poeta (e por que não o leitor de poesia?), porque “a Poesia é uma alma inaugurando uma forma”, segundo Gaston Bachelard.
Do abc, este é o cerne do (b), pois, quando o pensador francês resume este “estado de emergência” em que a poesia coloca o homem como de “supremo poder e humana dignidade” (Edward Hirsch)[iv] estamos diante de uma crise. Eis a crise que pode ser nomeada desde então. Todos querem o poder, todos almejam a dignidade suprema, mas só a alguns é dado o dom de fazer-se ligar ao imaterial que conduz a poesia e nos conduz à leitura da poesia, além do que nos parece desequilibrada a relação numérica de poetas/leitores.
Os vícios que podem deturpar esse “caminho espiritual da alma” (João da Cruz), essa sondagem profunda do ser, para abrir a porta da Poesia são os da desumanidade. Útil relembrar que esses vícios na literatura já foram apontados por teóricos importantes, como Tzvetan Todorov, que entre nós foi, recentemente, relembrado pelo crítico e professor de Escrita Criativa Rodrigo Gurgel. São três os males, diz Todorov, via Gurgel: “formalismo, niilismo e solipsismo” – vícios que podem colocar em crise não só a Poesia como toda a literatura, incluindo a crítica literária.
Remeto o leitor ao final da 1ª. Parte desta série sobre Poesia, onde transcrevi o poema “Expectar”, de autoria do goiano Edmar Guimarães:
“É tarde para a euforia da forma.
[...]
E quando se vai lendo/frios ventos nos olhos,/aprendendo a caligrafia/dos ocasos,//do cheiro mumificado do mundo,/de aves suadas/nas escarpas/escuras//do ar /há desespero/nuvens rasas nos olhos.//aves são de carne, mas têm/asas."
Aí está, dileto leitor, o famoso dar asas à leitura que pressupõe olharmos com cautelosa percuciência para o problema acima nomeado: talvez o elemento crucial de nosso país e da cultura de hoje é mesmo encontrarmos resposta à pergunta: Para quem escrevemos? Onde estão os leitores?
Em 1976, o crítico paranaense Temístocles Linhares (“Diálogos sobre a poesia brasileira”) já advertia que a palavra escrita foi invenção de culturas altamente desenvolvidas, seguindo-se então o livro como o seu melhor veículo de comunicação; e se muitos séculos foram necessários para a fixação da poesia oral, nem tantos para fixar o livro – e já agora, adverte Linhares “em largo voo através do espaço e do tempo, nos encontramos diante de novos problemas, de novas transformações para a poesia, em face do advento de novos meios de comunicação, capazes até de lhe criarem um processo de baldeação, a ser fomentado pela segunda revolução industrial” em que vivia a humanidade de então. Segundo Linhares éramos “cem milhões de habitantes, dos quais pelo menos um milhão de leitores, média altíssima, uma vez que se lê poesia cada vez menos. E, no entanto, aí estão os poetas e os que se ocupam teimosamente de poetas e de poesia”.
Eis-nos na era pós-industrial e da cibercultura, com um nível decrescente de interesse pela leitura. Uma era em que respondendo à pergunta “Para quem escrevemos? ”, o ficcionista Fernando Monteiro disse: “Os poetas não precisarão participar dessa rodada de desencanto, pois eles já escrevem para um vazio que não é só o das grandes livrarias grosseiras, com suas girândolas de livros de ocasião com capas brilhantes como catarro em parede. Os poetas, como que abençoados por Deus ou pelo diabo, estão escrevendo para leitores tão escassos (há muitíssimo tempo), que se tornaram monges trapistas da literatura, escrevendo em monastérios transformados nos palácios da mente que os libertam de escrever para quem já não possui o código da Poesia, a tábua de decifração (e salvação) do verso que foi carne, no Princípio etc. Enfim, os poetas estão libertados pelo silêncio que os cerca – enquanto aqui se convocam, sim, principalmente os praticantes da ficção, nesta hora “vigésima quinta” por obra e graça, em parte, das editoras voltadas, nos últimos anos, quase exclusivamente para aquilo que passou a se entender como sucessos”
Assim, cada vez mais parece mais anacrônica a leitura silenciosa (e demorada, saboreada, quase sem fim utilitário nenhum, que não seja o de ligar-se às coisas do espírito) – a “delectatio morosa dos antigos” – ou seja: uma leitura mais proveitosa e de engrandecimento espiritual do leitor (Linhares). Este “dar asas à imaginação” vem, talvez, daí. Não está o leitor a preparar-se para nenhum teste do dia seguinte, não está diante da pressa do leito de morte que o obriga a colher um lápis e um pequeno papel – como teria feito Thomas Wolfe no seu leito de morte... Ele, tão só e apenas lê.
Está, pura e simplesmente, este leitor a deleitar-se com o que lê, porque desejoso de ser melhor, disposto a escalar o monte Carmelo do seu dia-a-dia burocrático, desapegado que está do prazer, da inovação e da criatividade; ou, mesmo quando suprido disso tudo, quer que sua alma diga ao poema (o Amado), como o fiel declara ao Redentor na “Noite escura” da alma:
Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia,
Em sítio onde ninguém aparecia.
Oh! noite que me guiaste,
Oh! noite mais amável que a alvorada;
Oh! noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada!
A alma do leitor assim distendida pela leitura e pela meditação silenciosa, poderá ouvir e repetir – fazendo eco de um abismo a outro abismo, gerando um Esperança imorredoura (eis-nos diante do “c”, diria o “x”, do abc):
“Esquecida, quedei-me,
O roso reclinado sobre o Amado;
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.[v]
Como ressalta Dom Penido, na introdução às obras de São João da Cruz em português, se a poesia pode falar à alma, exige-se do leitor uma ascese, uma disciplina – às vezes, desconfortável aos pés do caminhante nas primeiras jornadas, afeito que está à rapidez e à superficialidade do mundo cibernético. É preciso, alerta dom Penido: “nos dispor a receber os dons gratuitos de Deus” e dispostos a receber o divino beneplácito, “Deus não põe sua graça na alma senão na medida da vontade e do amor dela”.
Similarmente, aos incrédulos, a Poesia não cederá nunca sem a contrapartida igual de meditação e silêncio que prepara o espírito para o uso das asas da imaginação. É com Hirsch que encerro essa peroração com meu interlocutor imaginário. Trata-se de viajar à “Heartland” – a terra do coração, literalmente, para onde se vai, mesmo que seja apenas colhendo uma mensagem numa garrafa (Paul Celan), ouvindo uma voz no meio da noite, propondo-se a si mesmo algo fora da rotina escravizadora do mundo do trabalho.
Só assim a Poesia será o cantar deste pássaro da noite audível a qualquer ser disposto a tomar da água refrescante que salta das estantes, em forma de livro; ou que irá em busca da poesia falada, a poesia em prosa ou mixada em música por meios os mais diversos – eis o Abc da poesia.
NOTAS
[i] “Trilhas na formação do jovem leitor: imaginários sociais e cidadania”, Org. Goiandira Ortiz de Camargo e Maria Zaira Turchi, Goiânia, Cânone Editorial, 2015, 217 p.
[ii] LINHARES, Temístocles. “Diálogos sobre a poesia brasileira”, Ed. Melhoramentos/MEC, 1976, 280 p.
[iii] Heidegger, Martin. Cit. Por Vicenzo Costa (2015), p.131. Trad. Yvone da Silva.
[iv] HIRSH, Edward. “How to read a poem and fall in love with Poetry”, Harvest books, 1999, 354 p..
[v] Obras de São João da Cruz, vol. I – “A subida do Monte Carmelo, Noite Escura e Cautelas” (1960), trad. Monjas do Mosteiro das Carmelitas descalças de Sta. Teresa do Rio de Janeiro.

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