Por medo de ir ao festival, muitos perderam a melhor noite do Vaca Amarela
27 setembro 2017 às 20h03
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Com estrutura melhorada, número maior de seguranças e uma programação diversa, último dia cheio da programação deu show na amplitude da representatividade
Enquanto muita gente ainda reclamava na página do 16º Festival Vaca Amarela no Facebook da falta de segurança, a ocorrência de roubos e furtos de celulares dentro da área do evento no Palácio da Música do Centro Cultural Oscar Niemeyer (CCON) na noite anterior, a segunda data com programação cheia de shows começava no final da tarde de sábado (23/9) com a banda goiana Sixxen.
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Com a demora para dar uma resposta por meio de uma nota às reclamações de parte do público que compareceu ao Vaca Amarela na sexta – e que reclamou até de carro com vidro quebrado e objetos furtados do lado de fora da estrutura do festival -, as vozes que criticavam o festival pela falta de uma estrutura suficiente se ampliaram a boatos na internet que fugiam em muito da realidade dos acontecimentos da primeira noite no Palácio da Música.
Havia, na página do evento, gente que oferecia ingresso para sábado de graça por medo de ser assaltada ou ficar horas na fila para comprar fichas de R$ 4 (4 Mús) e conseguir comer ou beber durante o festival. Se essa fosse uma reclamação que se restringisse apenas ao Vaca Amarela, que precisa organizar melhor sua estrutura e o esquema de segurança a ser oferecido ao público no próximo ano, o problema seria fácil de resolver.
Vale lembrar que nem o Rock in Rio conseguiu evitar que grupos que foram ao evento para realizar furtos de celulares e objetos em bolsas e bolsos fizessem o limpa antes de alguns shows, como aconteceu nos momentos que antecederam a apresentação da cantora americana Alicia Keys no dia 17 de setembro. O Villa Mix Festival luta contra as confusões e registros de roubos e furtos dentro de suas estruturas há anos em muitas cidades nas quais realiza o evento. Aliás, a boate Villa Mix de São Paulo acaba de ser condenada a indenizar uma ex-hostess (recepcionista) que era instruída a impedir ou dificultar a entrada de pessoas negras ou que aparentassem ser pobres no local.
Como é possível de notar, tanto a estrutura desses eventos precisa ser melhor preparada quanto o público tem de entender que infelizmente essa não é uma realidade apenas da sexta do Vaca Amarela. E que, naturalmente, espantou muita gente da programação do sábado por medo. E um medo altamente justificado. Tinha integrante de banda que estava apavorado com o que aconteceu e temendo o pior no dia seguinte. O que não aconteceu.
Noite da diversidade
Como era de se esperar, os flanelinhas da sexta e o tal estacionamento “oficial” desapareceram da rua que dá acesso ao Centro Cultural Oscar Niemeyer na tarde de sábado. O ingresso de estacionamento do espaço, que custava R$ 15 na data anterior, teve o valor reduzido pela organização do Vaca Amarela para R$ 5. O esquema de segurança já estava visivelmente maior desde a entrada no estacionamento, com seguranças da empresa contratada pelo evento no portão do CCON. Se mesmo assim você parou na rua o problema é seu, né, amigo?
O grande problema do sábado foram os atrasos, que chegaram a quase duas horas na última apresentação. Os bares não registraram qualquer fila em toda a noite do evento. Apenas uma pessoa muito bêbada tentou algumas vezes pular a grade e invadir o palco durante o show da fluminense MC Carol, de Niterói (RJ). Mas ele estava tão alterado depois de muitas doses de Cantina da Serra que não conseguia nem jogar um das pernas na altura da grade – e foi acompanhado de perto pelos seguranças em cada tentativa frustrada de superar a bebedeira, ato sempre fracassado.
Se na sexta a opção foi pela representatividade de mulheres no palco, sejam elas vocalistas heterossexuais, homossexuais, bissexuais, lésbicas ou na figura da drag queen mais vista, ouvida e seguida do Brasil – talvez até do mundo -, a cantora Pabllo Vittar, o sábado veio com uma diversidade de representações que vai do homem negro da favela ao roqueiro, da banda de pop rock sair do palco seguida por uma “bicha travesti” e um cantor, baterista e produtor de respeito ao aproveitador de música alheia em covers questionáveis.
Não, a concordância nominal não está errada. A artista em questão é uma drag, então é a Pabllo. E vá cuidar da sua vida porque ela não quer o seu corpo e nem o da sua família, apenas ser feliz como a figura que representa em um mundo muito machista.
Sequência “roquista”
A banda Sixxen, que deveria se apresentar às 16 horas, subiu ao palco do Palácio da Música por volta das 17h20. Foi a minha sorte. Deu tempo de escrever sobre a sexta e correr para o CCON. Já no começo da segunda música de cinco que o grupo formado por Erika Alves (vocal), Pedro Bernardi (guitarra), Iann Domenes (baixo) e Renato Marciano (bateria) era possível perceber a evolução e melhor desenvoltura da vocalista no palco. Antes bastante tímida e aparentemente travada nas primeiras apresentações da Sixxen, Erika parecia mais à vontade no palco grande.
Tanto nas músicas novas como nas do EP de estreia, XX, lançado em 2016, o trio Pedro, Iann e Renato também parece mais maduro ao vivo em comparação aos shows anteriores. Se você não conhece a Sixxen, é a banda da “camisa mais legal que vocês virem”, de acordo com Erika. E de fato a imagem de um bode com chifres e botas rosas rendeu risos e elogios do público, que não passava de 20 pessoas se os funcionários dos dois bares do teatro forem incluídos na conta.
Da super emo pop A Vida Me Ensinou, primeiro single da também nova banda do cenário goiano, Sótão, que fechou o show do quarteto no Vaca Amarela, a banda mostrou a partir das 18h08 que desde a canção de estreia ao EP Só (Tão), a sonoridade mudou um pouco. Os irmãos Gabriel Queiroz (vocal e guitarra), Lucas Queiroz (baixo e guitarra), o guitarrista Asafe Ramos e o baterista Ronaldo Jr. mostraram que, daquele primeiro show no Diablo Pub em março de 2016 até o 16º Vaca Amarela, muita coisa mudou no som.
Mas eles deixam claro que têm influências do indie mais choroso e do emo de bandas como The Killers, Joy Division, Coldplay, Fresno e Paramore. Nem seria um insulto se o engraçadinho do show da Deb and The Mentals da sexta tivesse gritado “toca Paramore” no show da Sótão. Bom. Apenas acho. Músicas novas como Terminal, Índigo e até a faixa Abajur – do EP – mostram que o peso pode casar bem em parte de uma melodia mais dançante ou emotiva. Como todo som novo, tente a amadurecer. E a Sótão mostrou em 28 minutos ser melhor do que a OFF 1984, antiga banda dos irmãos Queiroz.
Emoção agressiva
A terceira atração da noite, que começou seu show às 18h53, era o trio goiano Lutre. “Essa banda é muito boa”, disparou Fabrício Nobre, fundador do Festival Bananada, ao ouvir o início de Medo do Mundo. Tanto que ele postou em suas redes sociais vídeo com um trecho ao vivo de É Assim, segunda música da apresentação no Vaca Amarela do grupo formado por Marcello Victor (guitarra e vocal), Jefferson Radi (bateria) e Chrisley Hernan (baixo).
“Obrigado, Rock in Rio”, disse Marcello no fim da execução de Mudo ao público que chegou cedo no sábado para ver as primeiras bandas. Os versos iniciais de Meu Lugar dão uma ideia clara da força do disco Apego (2017): “Não tem tempo pra se perder em vão/Estou bem assim/Estou bem aqui/Estou bem“.
Tela veio na sequência e mal havia acabado quando o impactante verso “Todo luto traz uma carga de alegria” de Graça e Poesia foi cantado. A faixa que abre o registro de estúdio da banda, Céu, encerrou mais um bom show do trio: “Quando céu cair sobre nossas cabeças e a gente morrer achatado com nosso próprio ego/Todos entenderemos que tudo bem se não está tudo bem/E que nosso orgulho só nos puxa pra baixo/A nos prender junto com os nossos sentimentos“.
O DJs da Roxy Goiânia, que pareciam mais no sábado uma ocupação do vazio musical entre um show e outro, foram menos protagonistas no festival do que na noite anterior. E funcionou melhor. Até porque grande parte do público, diferente da sexta, e que era bem menor nas primeiras atrações, pouco ligou para quem discotecava ou simplesmente soltava sua playlist nos intervalos do palco.
Fabius Augustus, o Smooth (vocal e guitarra), e Luan Rampazzo (bateria), que lançaram em 2015 a Branda, trouxeram o baixista Thiago Ricco (Violins) e o guitarrista Brunno Veiga (Overfuzz) para completar o grupo. Com seis canções lançadas, a banda liderada pelo ex-vocalista da Vícios da Era se prepara para lançar o disco A Beleza Própria da Inocência, primeiro da carreira, em outubro.
A Branda subiu ao palco pela primeira vez em março deste ano. O grupo tem muito do DNA artístico de Smooth, com melodias bem marcadas, composições claras, estruturadas no mais compreensível português e a força de um pop rock executado com maestria. E o cara se uniu a um time de músicos de primeira qualidade. Não tinha como ser um show ruim. Você pode até não gostar do estilo musical da banda, mas fica complicado falar que não tem qualidade.
A partir das 19h56, Smooth, Thiago, Luan e Brunno fizeram dos 31 minutos da apresentação tempo suficiente para mostrar a uma tímida e pequena plateia sete canções do disco ainda não lançado. Entre elas estava Melhor Andar Livre, que tem letra de Beto Cupertino (Violins), e que tem no baixo a grande força da melodia da música. “Eu pensei melhor/Vou diminuir/A dose de você/Que eu tomo pra dormir.”
Smooth fez questão de agradecer nominalmente os amigos que estavam na plateia e viram o show de sua banda. Outra música mostrada no show foi a balada O Que Eu Preciso: “Tudo em você/É tão bonito/Tudo em você/É assim/O que eu prefiro“. O “rock brando brasileiro”, como o grupo se define, fica bem claro em canções como Sei de Mim e Aconteça O Que Acontecer, última música da apresentação.
Transição sonora
Ainda na sequência dos representantes do rock, a Hell Oh!, de Nova Friburgo (RJ), trouxe ao Vaca Amarela sua boa mistura de influências que vão do indie rock, garage, punk à surf music. A partir das 20h45, o grupo veio embalado pelo EP Already Kids (2017) ao Palácio da Música no sábado. Com uma cara muito mais indie e garage do que no primeiro disco, We’ve Got Nothing To Say But a Song (2015), a primeira lembrança pode ser a voz de Alex Turner do grupo inglês Arctic Monkeys. Mas para por aí.
Flash, Blush e Already Kids, na sequência, dão ainda mais evidência às referências, que ultrapassam a simplória primeira imagem de algo parecido com Arctic Monkeys no último disco dos ingleses. Tende a lembrar mais o indie rock dos anos 1990 de bandas como Pixies ou Weezer. Hell Oh!, mesmo nome da banda, é uma música mais para o lado dançante do grupo e que foi incluída no show.
Em 32 minutos, o quarteto formado por Raphael Heiderich (vocal e guitarra), Maycon Rocha (baixo), João Curvello (bateira) e Vinicius Amorim (guitarra) conseguiu agradar ao público presente. Where Are You Going To, com sua parte instrumental recheada de distorções que dialogam com o grunge, deu lugar aos pouco mais de cinco minutos do britpop grudento de Out of Nothing.
“Você que está sentado aí no fundo, levanta e vem pra cá”, convidada o baterista Victor Moara a parte do público que estava distante do palco a se aproximar para ver de perto o show da goiana Overfuzz, que começou às 21h35. As ditas “canções de ninar” de Victor, Brunno Veiga (vocal e guitarra) e Bruno Andrade (baixo) atraíram o maior número de pessoas nos 46 minutos que duraram a apresentação até aquele momento do sábado. O baterista concluiu a sua fala com o grito “Fora, Temer”.
A apresentação já começou a mais agressiva possível com a pancadaria de Turning Your Beauty Into a Sickness. Before The Tragedy, que há muito tempo não era incluída nos shows, veio antes de duas novas músicas que têm sido testadas nas apresentações mais recentes da banda. Seeking Blood, Best Mistake e Bastard Sons of Rock ‘n’ Roll mantiveram a agressividade do trio no palco, que insistiu para que mais gente se aproximasse da grade. O final veio com No Bliss.
Vez do rap
Do rock, o Vaca Amarela fez uma transição tranquila, inclusive de público, que reagiu bem ao rap do mineiro Djonga. De flow agressivo, o rapper mostrou que Heresia (2017) não é apenas o nome do seu disco lançado em março. Com uma foto de capa que faz referência direta ao álbum Clube da Esquina (1972), atribuído a Milton Nascimento e Lô Borges – que tem Beto Guedes no vocal em três canções e Alaíde Costa em uma, além das composições de Milton e Lô ao lado de Márcio Borges, Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Carmelo Larrea e Ayrton Amorim -, Djonga busca a maior escola da música mineira e um dos discos mais importantes do mundo para se espelhar.
Há quem possa dizer que trata-se de uma heresia gravar um disco tão rap gangsta e imitar na capa a foto de um dos clássicos da música brasileira. Mas Djonga, ao lado do DJ Coyote Beatz, garante sua banca logo no primeiro contato com o público, quando cantou Corre das Notas. “Esses manos são de dar dó/Mais falsos que Fábio Assunção parar de cheirar pó/Mais falsos que broxar pela primeira vez/Querem competir com o melhor e não querem ser freguês.”
E Djonga dispara uma porrada atrás da outra em suas rimas. Os fãs, grudados na grade, cantavam verso atrás de verso junto com o rapper. E a segunda música do show, Esquimó, é uma agressão desafiadora. “É, pretos precisam se defender/No final, não temos de quem depender/Por sinal, só temos quem vai nos prender.” Mais adiante, Djonga continua: “Aquele jab precisa ser desviado/O policial precisa ser confrontado/Sujeito homem fala, não manda recado/Lei do cuidado, onde conversa fiado/Onde tem quem acha graça zoar viado/Eu acho engraçado um racista baleado“.
Depois da segunda música, o cantor interage mais diretamente com a plateia. “E aí, Vaca Amarela, quem tá à vontade na casa?” Entre 22h37 e 23h15, tempo que durou o show, Djonga mandou 11 sons. A parceria com Froid (DF) foi explorada ao vivo quando o mineiro cantou A Pior Música do Ano: “Alguns de nós matados/Alguns de nós morridos/Policiais safados/Assassinam meus amigos“. Ao terminar a canção, o artista reforça o discurso dos versos cantados há poucos segundos. “Contra o extermínio da juventude negra, certo?”
Em Geminiano, Djonga reduz o peso das críticas sociais da realidade do preto pobre da favela e fala sobre um relacionamento amoroso de forma bem controversa e mudando de opinião a todo instante na letra. “Suas amigas me odeiam/Coincidência é que eu também odeio elas/Na verdade dizem que me odeiam/Elas já transaram comigo, eu já transei com todas elas/Nem sempre reapresentei/Esses caras mentem pra tirar vantagem.”
Como muita coisa no rap, Djonga não consegue fugir completamente do meio machista em que está inserido ao tratar a mulher muitas vezes como vaca, fácil ou que já pagou pelo programa, como em Fantasma. Em seguida, o mineiro canta Atleta do Ano, gravada com o MOB79, Don Cesão, BK e Febem: “Tô dando papo de visão, como você se sente vendo um preto em ascensão?“. Perfil #22: Olho de Peixe fez Djonga manter o show forte com seu refrão “Sensação, sensacional/Sensação, sensacional/Sensação, sensacional/Firma, firma, firma/Fogo nos racista“.
Os fãs do rapper tiveram seu momento de glória quando Djonga desceu do palco e foi cantar Vida Lixo no meio da galera. Depois chamou três garotos da plateia para cantar na base do freestyle no palco. Antes de começar O Mundo É Nosso, o mineiro fez uma dedicação: “Essa música que eu vou cantar aqui é muito importante para todos pretos e todas as pretas.” E encerrou sua forte apresentação no festival com Vazio.
Hora da “bicha transviada”
“Estou procurando, estou tentando entender/O que é que tem em mim que tanto incomoda você.” Os primeiros versos de Submissa do 7º Dia deixavam claro que aquele ali, às 23h42 de sábado, não seria apenas um show, mas um grito de sobrevivência. MC Linn da Quebrada (SP), que hora se define como “bicha transviada”, outra como “travesti” e até “bicha, trans, preta e periférica”, não estava ali no palco do Vaca Amarela para brincadeira.
O show de Linn é um ato revolucionário. E Bicha Preta trazia a carga pesada de ser travesti ou trans em um mundo no qual a morte é uma realidade para essa parcela marginalizada e estigmatizada da população brasileira. “Bicha estranha, louca, preta, da favela/Quando ela tá passando todos riem da cara dela/Mas, se liga macho/Presta muita atenção/Senta e observa a tua destruição.”
Ao lado da cantora e personagem Jup do Bairro, do DJ Pininga e do percussionista Valentino Valentino, Linn mostra sua multifacetada veia artística engajada de atriz e cantora que luta para sobreviver e se afirmar em uma sociedade machista. “Boa noite, Gayânia”, provoca a artista. E é respondida com gritos emocionados.
Ela continuou seu show manifesto com Necomância: “Então deixa sua piroca bem guardada na cueca/Se você encostar em mim, eu faço picadinho de neca“. Uma pena grande parte dos fãs de Pabllo Vittar não ter ido ao Vaca Amarela no sábado para ver a apresentação de Linn da Quebrada, que é muito melhor do que a diva drag ovacionada no Rock in Rio e nas paradas de sucesso, inclusive no conteúdo das músicas.
A quarta canção apresentada foi Enviadescer. “Ei, psiu, você aí, macho discreto/Chega mais, cola, aqui/Vamo bater um papo reto/Que eu não tô interessada no seu grande pau ereto/Eu gosto mesmo é das bichas, das que são afeminadas/Das que mostram muita pele, rebolam, saem maquiadas.”
Linn disse ao público, já em bom número: “Ser bicha não é só dar o cu, é também poder resistir”. “Que travesti merece ser aplaudida, hein?”, perguntou a cantora. Afirmou que queria ver “cu rebolando” e foi prontamente atendida. Já na vez de A Lenda, a narrativa da letra tem muito a ver com a história de Linn, que foi excomungada por se assumir travesti. “Eu fui expulsa da igreja (ela foi desassociada)/Porque ‘uma podre maçã deixa as outras contaminada’/Eu tinha tudo pra dar certo e dei até o cu fazer bico/Hoje, meu corpo, minhas regras, meus roteiros, minhas pregas/Sou eu mesmo quem fabrico.”
“Hoje sou eu, somos nós, quem vai dar gargalhada”, comenta ao final de A Lenda a cantora. Prostituto/Pare Querida (Deize Tigrona) dá continuidade ao show. “Tu podia até ser o último boy do planeta/ Vou dar pra deus e o mundo/Vou dar até pro capeta/Mas se depender de mim/Tu vai morrer na punheta“, diz uma das versões. E Linn explica: “Isso não é uma música, isso é uma profecia”.
A cantora tenta encontrar ao menos uma travesti na plateia, mas sem sucesso. Mulher, ou blasFêmea, trouxe o discurso mais pesado e arrebatador do festival. “Então eu, eu/Bato palmas para as travestis que lutam para existir/E a cada dia conquistar o seu direito de viver e brilhar.” A letra continua: “Ela tem cara de mulher/Ela tem corpo de mulher/Ela tem jeito/Tem bunda/Tem peito/E o pau de mulher“. Linn se despede do público. “Pode parecer só aparência, mas isso aqui é questão de sobrevivência. E quer eles queiram quer não, estamos vivas, caralho! Estamos vivas.”
0h49 foi a vez do trio goiano Ara Macao, que apesar de toda a qualidade individual dos músicos poderia ter sido confundido com um dos DJs da Roxy sem qualquer dificuldade. O saxofonista Pedro Falcão fez uma bela introdução do show, que se aproveita de muitos hits em versões de música eletrônica para agradar ao público.
Pedro, o vocalista e responsável por toda a chatice nos efeitos e samples, Luis Calil, e o guitarrista Bruno Roque, são músicos de qualidade inquestionável. Quando Luis desistiu dos emuladores de voz a coisa até andou bem, mesmo com a base do show sendo praticamente a exploração ao vivo de sucessos de outros artistas como Maria da Vila Matilde, de Elza Soares, e Benzim, da Chá de Gim.
Demora e sono
A demora de 47 minutos de Curumin (SP) para subir ao palco fez muita gente dormir no Palácio da Música ou começar a ir embora. Somente às 2h12, o músico, acompanhado de sua banda, começou a tocar músicas do novo disco, Boca (2017), e outras da carreira.
Mesmo com um show de apenas 38 minutos, Curumin conseguiu executar ao vivo as canções Bora Passear, Boca Pequena No. 1, Prata, Ferro, Barro, Mau Juízo (Anelis Assumpção), Boca de Groselha, Selvage, Afoxoque, Magrela Fever e Terrível. “Salve, Goiânia. Salve vocês que vieram curtir essa noite que tá boa”, se despediu o baterista e vocalista. Uma apresentação que animou quem ainda estava acordado no Palácio da Música, mas que merecia mais tempo. E que da próxima vez não demore tanto para começar.
Mal deu tempo de Curumin sair do palco para os equipamentos da mesa da apresentação da MC Carol (RJ) começarem a ser ligados. Nem aguardaram a retirada dos instrumentos da banda do paulistano serem tirados para começar o show da funkeira de Niterói. Pena que na primeira música esqueceram de abrir o som do microfone para o público, somente o retorno da artista funcionava.
Microfone trocado e tudo correu bem. A plateia reclamou menos do que quando um grupo de pessoas que estava no palco pisou na tomada de energia que sustentava os microfones e desligou o instrumento de trabalho nas mãos de Pabllo Vittar, curiosamente também na canção de abertura.
O relógio já marcava quase 3 horas da manhã de domingo (24) – 2h57 para ser mais preciso, quando a funkeira subiu ao palco. Talvez esse tenha sido o grande problema do sábado que, tirando os atrasos – o show da MC Carol estava marcado para 1 hora -, funcionou muito bem em organização e conforto ofertados ao público. Quando os fãs conseguiram ouvir a voz da artista, ela disparou a letra de Vou Tirar Sua Virgindade, que tão tarde não pegou ninguém desavisado sem saber o conteúdo dos funks da MC Carol.
Comentava-se que a funkeira estava bastante irritada – e com razão – pelo atraso de quase duas horas para chegar a vez dela de se apresentar no festival. Mas ela contornou bem o imprevisto com uma sequência de músicas conhecidas da plateia, como no caso de Bateu Uma Onda e Fode Pra Caralho. Antes de cantar Minha Vó Tá Maluca, MC Carol puxou outras rápidas faixas.
Entre elas estavam Propaganda Enganosa e 100% Feminista, gravada em parceria com Karol Conká (PR): “Presenciei tudo isso dentro da minha família/Mulher com olho roxo, espancada todo dia/Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia/Que mulher apanha se não fizer comida/Mulher oprimida, sem voz, obediente/Quando eu crescer, eu vou ser diferente“.
Em Delação Premiada, MC Carol lembrou de casos polêmicos de ações com excesso de violência que culminaram em pessoas inocentes mortas. “Cadê o Amarildo?/Ninguém vai esquecer/Vocês não solucionaram a morte do DG.” Liga Pra Samu veio antes de Minha Vó Tá Maluca, que deu espaço para Acaba Com Essa Puta. Jorginho Me Empresta a 12, 762 Fez Ela Esquecer a Família, Ar Condicionado e O Amor Acabou fizeram parte do show em Goiânia.
Com um cansaço transparente e pouco depois de tomar o seu Toddynho, MC Carol se despediu dos empolgados fãs: “Infelizmente acabou o milho, acabou a pipoca, MC Carol tem que ir embora”. Até porque, mesmo tendo a programação invadido a madrugada e o público ter sido guerreiro de ficar tão tarde acordado, o show caminhava para o final depois das 3h30.
Toca na Pista (com Tropkillaz, MC Tchelinho e Heavy Baile) e novamente Bateu Uma Onda foram a despedida do Vaca Amarela em 2017 do Palácio da Música no CCON. “Pessoal, muito obrigada por vocês terem esperado até agora. Eu também estava esperando até agora”, disse a cantora antes de ir em direção ao camarim às 3h34, depois de 37 minutos de show.
Memorial do Césio 137
No domingo, os shows no República Estúdio eram uma lembrança do maior acidente radiológico do Brasil, que aconteceu em setembro de 1987 na capital goiana. A principal banda da noite, Horrores do Césio 137, ou apenas HC 137, é uma clássica representante do punk rock goiano formada em 1988 e que tem feito shows a cada 5 anos para não deixar cair no esquecimento da população a gravidade do césio 173 para a cidade, as pessoas que tiveram contato com ele ou foram afetadas de alguma forma pelo caso.
Antes, as bandas Punch, do início dos anos 1990 – e que também não tocava há muito tempo -, e a novata, mas já presente no cenário independente, Frieza, fizeram shows muito bons. A primeira das atrações, a Adax, abriu a última noite da programação do 16º Vaca Amarela. A edição de 2017 terminou com o dever de aprender com os erros de planejamento para uma noite (sexta) que atraiu um público maior do que o esperado – e com ele todos os benefícios e problemas que acompanham um número grande de espectadores – e no direito de se manter como festival defensor da diversidade e da pluralidade de representações.