Por Sinésio Dioliveira

A doçura de Sara envolve duas características: a de sua pessoa e a de suas deliciosas cocadas. E foram estas que me possibilitaram conhecê-la

Piricotico acompanha seu dono pelas ruas de Goiânia. Madalena passa um tempo na ruas e, em seguida, volta para casa

Meu amor pelos meus livros é grande, mas tem limite. Esse amor, entretanto, não chega ao ponto de eu querê-los apenas para mim. Já doei muitos. E tenho mais alguns que logo vou passar adiante. Os autografados ficam comigo. Há outros poucos que só deixarão de ficar comigo “quando em meu peito rebentar-se a fibra / que o espírito enlaça à dor vivente”. Mario Quintana diz que “Os poemas são pássaros que chegam/ não se sabe de onde e pousam/ no livro que lês. (...) /alimentam-se um instante em cada par de mãos / e partem.” Vejo os livros como pássaros também. Os meus já se alimentaram nas minhas e, portanto, devem voar para outras mãos.
Ajuntando uns livros que pretendo doar (talvez até para uma empresa de reciclagem não havendo leitores), encontrei “Madame Bovary”, que vou dar de presente a uma amiga. Livro este que deu um boró dos diabos a Gustave Flaubert por, hipocritamente, ter sido considerado uma leitura indecente e corruptora.
Nessa mexida, encontrei dentro de “Madame Bovary” uma cartinha de amor já amarelada, cujas palavras doces que a compõem se tornaram letras mortas com o passar do tempo. Essa amiga, que não é entendida em estilos literários (mas apenas leitora, que é o essencial), ficou sabendo do respectivo livro de Gustave Flaubert depois de assistir, via streaming, ao filme “Pecados Íntimos”, lançado em 2006.

O filme, cuja trama compõe-se de vários conflitos interligados, tem uma personagem (Sarah) vivida pela atriz Kate Winslet, que possui alguns aspectos de sua vida íntima semelhantes aos vividos por Ema Bovary, personagem do livro. Sarah, uma sonhadora como Ema Bovary, participa de um grupo de mulheres que se reúne esporadicamente para discutir os livros lidos por elas. “Madame Bovary” é assunto de discussão.
Sarah defende Ema ardorosamente contra a acusação de vulgar, adúltera. O que, de certo modo, representa a sua própria defesa em relação ao caso de amor que tem com um vizinho que ela conheceu num parquinho do bairro em que morava, onde ambos levavam os filhos para brincarem. O marido de Sarah é um cara estranhíssimo, muito chegado a sexo virtual. Ela inclusive o flagra se masturbando na frente do computador vendo mulheres nuas e com uma calcinha feminina vestida na cabeça. Esse aspecto do marido de Sarah tem uma certa semelhança ao fracassado, apático e passivo médico Charles Bovary.
A carta de amor estava dentro da obra “Madame Bovary, escrita numa folha de um diário, contendo um desenho colorido de um casal de cisnes no alto da página, cujas cabeças juntas formavam um coração. A carta, escrita com letras miúdas, tinha pequeninos corações no lugar dos pingos nos “is”, coisas de uma adolescente de 18 anos apaixonada por um cara de 30. Reli-a atenciosamente e voltei no tempo no dorso de Bucéfalo. A beleza do texto existiu dentro do momento em que foi criado. Não foi uma beleza textual vivida esteticamente. Vivi-a de corpo e alma, numa intensidade maravilhosa, cuja duração não passou de dois anos. As palavras têm período de validade, elas são ligadas ao tempo de duração dos fatos.

A moça que me escreveu a carta hoje é uma mulher bem-casada, mãe de dois filhos e avó de dois netos. Outro dia eu a vi com sua família num parque da cidade e me lembrei de sua carta de amor outrora construída com palavras vivas em momento de calor de sua paixão. Fui tomado de um saudosismo bem subjetivo. Desejei-a novamente, mas não a mulher de agora, que não cabe na minha lembrança. Na verdade, meu objeto de desejo foi o passado. Essa carta de amor, que eu não chamaria de ridícula, guardei-a novamente dentro de outro livro, que não irá para doação.
Sinésio Dioliveira é jornalista

Se sei alguma coisa, não sei, mas arrisco a dizer que por aí há muita gente mendigando amor, cargos públicos...

Ao me ver, no restaurante em que nos encontramos, Érobo fez cara de paisagem, desviando seus olhos. Resignado que sou, felizmente não perdi a fome por causa disso

Será mesmo que adianta cadastrar o apiário e avisar os vizinhos “ogrocultores” que se é criador de abelhas e solicitar que o fipronil não seja utilizado perto dos apiários?

Analfabetismo funcional está apodrecendo a alma das pessoas. Além da falta de gentileza, há o descompromisso com o ouvido alheio

Há prédios que usam dois recipientes (um para cada tipo de material: reciclável e não-reciclável), no entanto isso pode ser contado a dedo na cidade

Nenhuma ação aconteceu pra obrigar a empresa concessionária de transmissão e distribuição de energia elétrica “a tornar subterrâneo todo cabeamento de linha de transmissão energia elétrica”

Poema de minha lavra: “Na tal era/ muitos vão ao baú empoeirado/ no fundo de sua alma/ e se vestem duma alegria/ cheirando a naftalina/ imposta pelo calendário”

Viva Bariani — o amigo de José Mauro de Vasconcelos — por ter passado pela vida de modo intenso, numa mistura de quantidade e qualidade

João Lucas sempre usa o meu celular. É uma criança com uma certa deficiência, não tem dicção perfeita. João sabe apenas reconhecer as letras

O irmão de Elenice não era um homem de “elmo cheio de nada”, como disse T.S. Eliot em seu poema “Homens Ocos”

“De mais a mais, eu mato mais pela morte do que pelo dinheiro. Minha encomenda era seu marido, num vou fazer nada com a senhora não, que frita peixe como ninguém”
A história a seguir é verdade verdadeira, não o nome das pessoas envolvidas. Não as conheci, mas conheci a cidade em que ocorreram os fatos, que me foram contados por um conhecido, que antes eu julgava ser amigo. Sua ambição desenfreada o fez vender o bumbum de sua alma. Ele, no entanto, me foi útil ao se mostrar de alma imunda, pois me afastei dele antes de ganhar um beijo de véspera de escarro. Alguns dias atrás — naquele período de calor de fazer até o capeta chupar picolé —, vi um cachorro de rua rolando num resto de carniça seca no asfalto (acho que era um pombo doméstico morto por um automóvel apressado), eu o vi na alegria podre daquele cão. Vamos à história.
A amizade entre Juraci e Malvino durou precisamente cinco meses e 13 dias. Astucioso que é, você, altaneiro leitor, já manjou que o título foi sugado do que disse o machadiano Brás Cubas, personagem de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, sobre o amor de uma cortesã (garota de programa naquela época) espanhola por ele: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. A cortesã era a dona do puteiro, ao qual Brás Cubas foi levado por seu tio, que perguntou ao sobrinho se ele “queria ir a uma ceia de moças”.

Segundo o personagem, a sua chegada ao coração de Marcela demorou trinta dias e isso não “cavalgando o corcel do cego desejo, mas o asno da paciência, a um tempo manhoso e teimoso”. Essa chegada ao coração de Marcela é questionável, haja vista que a cortesã era “luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes”. Vamos à história.
Juraci e Malvino se tornaram amigos num boteco, cujo dono era aquele. Nesse período de amizade, Malvino chegou a salvar Juraci de afogamento quando ele pescava traíras e tilápias numa lagoa e a canoa tombou. Malvino surgiu do céu e o salvou, jogando-lhe um pedaço de corda de sisal já velha. Por pouco Juraci não foi "estudar a geologia dos campos-santos".
Malvino era o melhor freguês: tomava suas pingas e cervejas e tira-gostos (principalmente peixe frito) e pagava certinho. Nunca pediu pra pendurar. Fato que às vezes levava Juraci a se perguntar onde o cliente conseguia dinheiro, visto que não o via trabalhar desde que chegou à cidade. Uma vez até comentou o assunto com Adenailda, sua mulher, que lhe recomendou a não julgar mal as pessoas e se lembrar de quem o salvara quando caiu da canoa. O comentário da esposa afugentou de vez sua indagação sobre o amigo.
Juraci, de certa forma, tinha razão em ficar desconfiado do freguês. Em seu passado, havia uma nódoa de sangue: briga num puteiro da pequena cidade em que morava. Confusão que foi resolvida a tiros entre alguns jovens de duas famílias mais antigas do lugar e inimigas. Se tivesse havido o mesmo saldo de morte entre as duas famílias, provavelmente o jorrar de sangue teria uma longa pausa.
Juraci perdeu um primo; do outro lado morreram dois irmãos, um deles vitimado por Juraci com dois tiros. A pólvora das mortes foi uma quenga de beleza abundante, que saiu da cidade no outro dia por recomendação da dona do puteiro. Um tio de Juraci o levou para uma fazenda em outro Estado, a uns 800 quilômetros da cidade. Por lá ficou quase dois anos. Voltou e montou um boteco copo-sujo numa rua atrás do cemitério. Alguns pinguços inclusive faziam piada: dizendo que, se morressem no boteco de tanto tomar pinga, já estavam perto da "terra dos pés juntos", de modo não gerariam trabalho à família.
Bonfim, tio de Juraci, aconselhou-o a não voltar: "Sua volta é alegria pra nossa família, mas tristeza pra outra, e a ferida pode voltar a doer e mais sangue ser derramado". O conselho do tio entrou num ouvido e saiu no outro: "A vontade de vingança deles já passou, tio, estou aqui há quase dois anos, e ninguém fez nada, mas, se fizer, o 38 vai cuspir fogo de novo". Ele não se despregava do trabuco.

Numa manhã de novembro, Malvino foi ao boteco de Juraci tomar duas pingas como de costume. Acabou tomando quatro. Só havia ele de freguês. Os dois acabaram combinando para a noite daquele mesmo dia uma pescaria. Muitos peixes eram vendidos no boteco.
Ao voltar da cozinha trazendo numa das mãos uma porção de peixe para Malvino e na outra um pedaço que veio comendo, Juraci foi surpreendido com dois tiros no peito ao abrir a cortina de pano. Nem deu tempo de pegar seu revólver na cintura. Ao ouvir os tiros, Adenailda veio correndo assustada, e, ao ver o marido caído e agonizando, não teve medo de questionar Malvino sobre o assassinato sendo que ele havia salvado a vida de Juraci.
— Não salvei Juraci por amizade não, dona. Foi pra não deixar a água da lagoa fazer o que me foi pago pra fazer. De mais a mais, eu mato mais pela morte do que pelo dinheiro. Minha encomenda era seu marido, num vou fazer nada com a senhora não, que frita peixe como ninguém. Fiquei muito tempo na cidade por causa dos peixes.
Sinésio Dioliveira é jornalista

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