Quando viajo, por mais curto que seja o percurso, Aurélio Agostinho (mais conhecido como Santo Agostinho) sempre me vem à mente: “O mundo é um livro, e aquele que não viaja lê sempre a mesma página”. Paralelas a tais palavras, ele fala também das pessoas que viajam na maionese da inutilidade dos passeios motivados por montanhas, ondas marítimas, rios, estrelas, mas que “passam por si mesmas sem se admirarem”. Acho que este não é o meu caso. Aurélio, na sua juventude, conforme consta em sua biografia, teve uma vida chafurdada na lama da devassidão. Pôs pra moer… No entanto, deu um norte religioso à sua vida de pecados e, quase nove séculos depois, acabou sendo transformado em santo. Até já falei sobre isso noutra crônica. O papo aqui é outro.

No gozo de minhas férias, andei por Minas Gerais e Bahia, mas isso com cidades específicas para visitar. Macaúbas, cidade baiana, estava entre elas. Esse nome vem de uma palmeira com espinhos longos e pontiagudos e encontrada em quase todos os cantos do Brasil. O que faz com que tenha diversos nomes populares, como coco-de-espinho, coco-baboso, bocaiúva, macaíba, entre outros.  Macaúbas entrou no roteiro por desejo de um amigo, que teve uma boa relação de amizade com o ilustre professor, poeta, linguista Ático Vilas-Boas da Mota e que a este tinha prometido uma visita para conhecer a Fundação Cultural Professor Mota, criada pelo filho para homenagear seu pai, que foi um intelectual ilustre na cidade, mas não à altura de Ático. A “visita”, no entanto, só aconteceu agora, oito anos após a morte de Ático, ocorrida em março de 2016.

Visão noturna da Fundação Cultural Professor Mota | Foto: Sinésio Dioliveira

Para não chegar a Macaúbas à noite viajando por estradas cujo estado de conservação não conhecíamos, resolvemos dormir em Livramento de Nossa Senhora, cidade natal de Ático. Essa preocupação se tornou maior ao passarmos por algumas rodovias de Minas Gerais com muita buraqueira. Lá, ao contrário das rodovias goianas, os deputados realmente precisam de caminhonetes 4×4 para enfrentar o queijo suíço de algumas estradas. No quarto do hotel, fui para o Google conhecer mais detalhes sobre a cidade a ser visitada e sobre Ático Vilas-Boas da Mota.

Então apareceu um texto publicado em 28 de junho de 2020 justamente neste jornal em que você, altaneiro leitor, me lê agora: “Ático Vilas-Boas da Mota em tradução primorosa”.  João Carlos Taveira cita em seu texto algo interessante sobre processo criativo. Segundo ele, há “jovens gênios que, numa idade mais avançada, se apagam completamente para a criação” e que há também “artistas maduros que ignoram o passar do tempo e continuam criando obras de grande vigor estético”. E Ático, conforme Taveira, se enquadra na segunda categoria, pois, “já na casa dos 80, continuava escrevendo e publicando com o mesmo ímpeto dos primeiros tempos”.

Casa de Ático Vilas-Boas à venda | Foto: Sinésio Dioliveira

Casa de Ático Vilas-Boas está à venda

Essa leitura aguçou minha vontade de chegar logo a Macaúbas, mais precisamente à Fundação Cultural Professor Mota. Lá chegando, percurso de aproximadamente 120 quilômetros, fomos logo ao prédio. Levei um soco no olho; não uma porrada literal. Pela importância dos ilustres moradores da cidade, principalmente em se tratando de Ático, cujo respeito intelectual extrapolou as fronteiras do Brasil e chegou até a Romênia, o prédio deveria estar bem conservado.

Meu entusiasmo murchou, pois não encontrei o que li no Jornal Opção: “biblioteca, galeria de arte, salas de pesquisas, arquivos de referência e museu”. Fomos recebidos por um funcionário da prefeitura que trabalha no prédio: senhor Manoel Figueiredo de Bastos. Muito educado.

À tarde, voltamos ao prédio para conversar com o presidente da entidade, Eduardo Cambuí Junior, que não estava em nossa primeira ida. Junior, que é artista plástico, nos alentou com a notícia de que a reforma do prédio está no cronograma de ação de prefeitura. Tomara que não seja barulho.

Depois fomos levados para conhecer a casa em que Ático viveu seus últimos dias de vida depois de andar pelo Brasil afora e até pelo exterior. Outro soco no olho: a casa com uma placa de venda. “Sugeri ao prefeito que compre a casa”, disse Junior, que nos informou que Ático e sua mulher, dona Alzira, estão enterrados no fundo do quintal. 

“Ático é um anel de ouro em focinho de porco”

Conversando com um morador antigo da cidade sobre as condições em que se encontrava a fundação, ele me disse: “O professor Ático é um anel de ouro em focinho de porco”. 

Sua frase, extraída de Provérbios 11:22 — “Como joia de ouro em focinho de uma porca, assim é a mulher formosa que não tem discrição” — foi para justificar sua opinião de que a cidade não merece Ático, isso se referindo ao estado decadente da entidade e a casa estar à venda, quando poderia ser adquirida pela prefeitura e se tornar um point cultural e, ao mesmo tempo, um ato de respeito para com um morador que  não mediu esforços para divulgar Macaúbas nacional e internacionalmente.  

Essa conversa foi realizada à noitinha numa lanchonete próxima ao prédio da fundação. De lá eu vi uma nuvem branca sendo sobre o prédio já desaparecendo pela chegada da escuridão. Vi na nuvem a alma do professor Ático tentando cuidar do imóvel como ele fazia quando era vivo.

Sinésio Dioliveira é jornalista