Não sei se você, altaneiro leitor, já fez uma leitura poético-filosófica das roseiras. Se já, é provável que tenha percebido que a quantidade de espinhos é bem maior que a quantidade de flores, mas que estas estão sempre acima daqueles… Ao passar por um buquê de rosas vermelhas jogado numa lixeira, um longínquo acontecimento da minha infância me veio à mente. Essa reminiscência me serviu de assunto para escrever esta crônica, na qual falo de rosas e do cantor e compositor Angenor de Oliveira, artisticamente conhecido como Cartola.

Dona Zica (Euzébia Silva do Nascimento), mulher de Cartola, ao ver o tanto de flores nas roseiras recém-plantadas pelo casal na porta de sua casa, perguntou ao marido: “Por que é que nasceu tanta rosa?”. E ouviu a seguinte resposta: “Não sei, Zica, as rosas não falam”. Esse episódio resultou na música “As rosas não falam”. Num determinado momento da música, consta um trecho pertinente à conversa entre ambos: “Queixo-me às rosas, mas que bobagem / As rosas não falam / Simplesmente as rosas exalam / O perfume que roubam de ti…” Essa informação sobre a origem da música está no livro “A Rosa e o Poeta do Morro”, de Janaína de Figueiredo.

Tomo a liberdade de contestar o cantor e dizer que as rosas falam sim. Para provar isso, vou voltar a uma fase de minha infância, vivida em Belo Horizonte, mais precisamente no Bairro Pirajá, primeiro setor que minha família morou depois de vir de Boa União de Itabirinha, torrão mineiro em que este cronista de meia-pataca nasceu. Próximo à casa em que eu morava, havia um viúvo, que tinha uma única filha. Seu nome era Ana Maria. Tinha uns 16, 17 anos. Muito bonita (aos meus olhos de criança). Seu Antônio era o homem de melhor situação financeira do bairro. Acho que eu tinha uns 6 anos nessa época.

Na porta de Ana Maria, passava todo dia pela manhã e à tarde, num mesmo horário, exceto nos domingos, um jovem que trabalhava de cobrador de ônibus, profissão extinta nos dias atuais assim como outras tantas. Ana Maria se interessou pelo jovem e então deu-se o início ao namoro mágico da troca de olhares entre ambos, movidos pelo combustível alucinante da paixão adolescente.

Seu Antônio nem podia saber da tr(ama) e só soube algum tempo depois quando a paixão dos dois jovens se intensificou e passaram então a ter encontros escondidos. Disso pintou uma gravidez, e o pai não pôde ser contra. Pelo contrário: exigiu o casamento antes que a barriga da filha ficasse em alto relevo. Esses pormenores amorosos eu soube algum tempo depois numa conversa que ouvi entre minha mãe e uma vizinha.

Além de mim, havia outras crianças que passaram a realizar uma tarefa especial para a Ana Maria. Nosso trabalho era pago com doces e bolos que a empregada da casa dela fazia. Como se não bastasse apenas os olhares apaixonados que ela dirigia ao jovem todos os dias no portão de sua casa (o que era recíproco), Ana Maria providenciou uma outra estratégia “cupídica” de declarar seu amor ainda mais ao amado, que também já estava perdidamente apaixonado.

É aí que a meninada “entrávamos” em ação. Nossa tarefa consistia na busca flores (entre estas rosas) na vizinhança. Ana retirava as pétalas e as colocava em cima das linhas do coração desenhado por ela na calçada de sua casa. Além do coração perfurado com uma flecha de Cupido, colocava pétalas também em seu nome e no do rapaz. Tudo isso para que o amado “ouvisse” o que as rosas estavam lhe falando em palavras sem voz: que ele tinha a chave do coração dela.

Depois do Bairro Pirajá, mudamos para o Bairro Nova Vista, lá, arrumei novos amiguinhos. Às vezes éramos incumbidos de buscar flores, porém não com a finalidade amorosa, mas para enfeitar caixão de alguém que morria na vizinhança. Era um bairro periférico e não havia floriculturas em abundância como agora. Ninguém negava flores nessa circunstância, mesmo se teve alguma rusga com o morto ou morta. Todos os defuntos, enfim, partiam enfeitados de flores no barco de Caronte na travessia das águas do Estige…

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza