Eu estava com alguns amigos num restaurante no Largo da Carioca, na Cidade de Goiás. Então apareceu uma amiga de um amigo, que este convidou para se sentar em nossa mesa. Nesse local, corre as águas do Rio Vermelho, isso antes de o rio passar na porta da casa de nossa poeta Cora Coralina. Falando em Cora, seu poema “Oração do Milho” sempre me visita quando, à noite em casa a desfrutar da minha companhia, cismo de comer milho cozido com manteiga de leite e sal (com moderação, às vezes). O poema inteiro é muito bom, mas há um trecho dele que admiro mais: “Sou a planta primária da lavoura. / Não me pertence a hierarquia tradicional do trigo. / E de mim não se faz o pão alvo universal”.

Há algo que passou despercebido no poema em favor do milho: não se faz pamonha de trigo. Se você, altaneiro leitor, é chegado a pamonha, certamente há de endossar a minha opinião. Li uma matéria no site da Embrapa Trigo que aponta alguns aspectos desfavoráveis do “hierárquico alimento tradicional”: “Possui fraco valor nutricional porque é pobre em vitaminas e minerais e suas proteínas são deficientes em aminoácidos essenciais”. Ando cabreiro com alimentos vindos da farinha branca. Vou mudar de assunto e voltar ao essencial.

Da minha mesa, onde eu mais ouvia do que falava, vi uma alma-de-gato pousando no chão, cena que eu nunca tinha visto. Vejo sempre tal espécie apenas em árvores percorrendo os galhos apressadamente em busca de inseto nas folhas, principalmente lagartas. Saí da mesa já com minha Nikon engatilhada. Foi providencial o aparecimento da ave, pois o tempero da conversa da amiga do meu amigo não estava agradando o paladar dos meus ouvidos. Putz! Falava demais sem dizer nada e um papo sobre o mesmo assunto: o namorado que não lhe dava amor à altura do seu merecimento, haja vista que, segundo ela, carregava água no jacá para o ingrato. Que cantiga (de) grilo!

Cupim e esperança: guerra pela sobrevivência | Foto: Sinésio Dioliveira

Uau! Consegui colher a cena. Era uma cigarra que estava sendo comida pela alma-de-gato. Fiquei perambulando por alguns minutos à beira do rio antes de voltar ao restaurante, isso propositalmente para evitar chegar lá e encontrar a tal mulher nos seus queixumes. Enquanto meus olhos se divertiam com o cenário bucólico do local, meus ouvidos se divertiam ouvindo a voz o rio ao passar pelas pedras. Destas extraí uma metáfora: sem as pedras, os rios seriam mudos. As pedras são muito valiosas àqueles que sabem tirar lição do tropeço. Uma boa lição pode nos mostrar um caminho no meio da pedra.

No meu retorno ao restaurante, vi uma esperança sobre uma pedra enorme à beira do rio. Aproximei-me do inseto e percebi um cupim grudado numa de suas seis pernas. A esperança tentava por tudo se libertar do cupim em sua primeira perna direita da frente. Porém em vão. Inspirado na ação do machadiano personagem Brás Cubas, que tentou tirar uma formiga da perna de um mosquito, busquei fazer o mesmo. O mosquito do romance voou, o mesmo fez a esperança. Ruflou as asas e foi para o outro lado do rio. O que me fez desistir de separá-los. Só me restou dizer (alterando o nome dos insetos) o mesmo que Brás Cubas: “Pobre ‘cupim’! pobre ‘esperança’”.

Interessante as metáforas. As reclamações da amiga do meu amigo me levaram a pensar (mas isso por poucos instantes) que o namorado é o cupim da cena que presenciei. Como só conheci o cara por meio do relato dela, então não sei até que ponto suas queixas têm fundamento. E outra que nem a conheço. O diabo pode não ser tão feio assim como ela pinta. Talvez seja ela o cupim da história. Não sei. E isso não importa aqui. Afinal, o inferno, diria Sartre, são os outros…

Pelo que observei, a esperança, coitada, esfregava uma perna na outra tentando por tudo se desvencilhar do cupim. E este intacto (talvez até já morto), com as mandíbulas travadas na perna. Como a esperança tem seis pernas, talvez perder uma será melhor que carregar o cupim para o resto da vida. O que não é apropriado de se aplicar em relação à mulher, haja vista que ela só tem duas (e bem torneadas, vale dizer). Suas pernas, pelo que percebi, a deixavam muito orgulhosa.

Pernas são muito importantes, além da locomoção do corpo, elas fazem os séculos andarem movidos pelo combustível da volúpia. Ainda bem tantas pernas, Drummond.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza.