A prática da bondade exige inteligência de nossa parte em sua realização. A razão deve entrar em cena sempre que o nosso coração se abrir para o exercício da bondade.  E isso não no sentido de se evitar o ato de carinho, mas com o propósito de que ele seja realizado de uma maneira eficiente. Dependendo da circunstância, um gesto de ajuda não bem trabalhado pode piorar ainda mais a situação da pessoa “ajudada”.

Há também um tipo de bondade bem reles, sem nenhum valor espiritual, que é aquela que só fica no barulho. Ou seja, existe apenas no campo verbal. Há a fraternidade teatral de se dar com uma mão para que a outra veja, e até publicar o gesto nas redes sociais. Nesse tipo de bondade, não há a presença do coração. Existe também uma bondade muito perigosa, pois a intenção da pessoa que a emprega é apenas para manter a pessoa ajudada dependente de quem a ajudou, no sentido de explorá-la de alguma forma. Muitos desses programas sociais utilizados pelos governos são farinha desse saco, que visam abrir a janela aos ajudados, porém mantê-los no escuro da ignorância e assim explorá-los de modos diversos.

Comigo aconteceu algo pertinente ao que foi mencionado no primeiro parágrafo. A razão, infelizmente, não entrou em cena. E assim o pior acabou acontecendo, não com uma pessoa, mas com um canário-da-terra, o qual prefiro chamar de canarinho, por soar mais poético. Vou explicar melhor o episódio.

Bicho telúrico que sou, peguei minha máquina fotográfica e saí sem rumo pelo mato adentro, mas sem me afastar muito da sede da fazenda. Isso num final de semana. Depois de alguns bons metros de caminhada, parei sob um enorme bambuzal. Parei porque estava ventando, e o vento, ao soprar as folhas de bambus, gerava um som de que gosto muito. Cheguei a me sentar nas folhas secas caídas no chão e por lá fiquei alguns instantes para distrair os meus ouvidos com aquele som, que eu chamo de poesia em estado bruto.

Foi nesse intervalo de tempo que vi um canarinho numa moita de capim próxima ao bambuzal. A avezinha estava no chão. Fui em sua direção, e ela se embrenhou no meio da moita. Senti que havia algo de errado, pois uma ave em estado normal ruflaria as asas e ganharia o céu rapidamente. Minha desconfiança tinha razão: o canarinho estava com a asa direita quebrada. Não era um machucado recente, pois o local tinha uma cor escurecida. Talvez tenha sido uma trombada em alguma árvore, talvez bicada de algum gavião que o queria como refeição. Não pensei em pedrada de estilingue, pois na fazenda não há meninos para tal malvadeza.

Tivesse eu deixado aquele canarinho onde o encontrei, talvez o seu período de vida teria sido mais longo. Infelizmente não foi assim. Com receio de que ele pudesse ser presa de alguma cobra, um quati ou outro bicho qualquer ou então morresse de fome e sede, resolvi levá-lo para a sede da fazenda. Tive um certo trabalho para pegá-lo: não tinha asas, mas pernas estão bem e mato estava alto. Mostrei-o aos presentes, o que gerou muito “tadinho” e alguns toques leves em sua cabecinha. Na verdade, ao mostrá-lo, eu buscava algum tipo de ajuda. Tive vontade de levar a avezinha para a minha casa, mas não tive como, pois moro sozinho e quase não fico em casa.

Um alívio surgiu: um empregado da fazenda se ofereceu para cuidar dele em sua casa. Eu então providenciei uma caixa de papelão e nela coloquei o canarinho para que o peão o levasse. Alguns dias depois, voltei à fazenda e minha primeira curiosidade ao chegar lá foi obter notícias do passarinho: “Naquele dia mesmo, o canarinho deve ter escapulido da caixa ou então a gatinha o tirou de lá.”

Em síntese o seu encontro com a gatinha realmente aconteceu, pois suas peninhas amarelas foram encontradas próximas à sede da fazenda com manchas de sangue. Fui lá e conferi a verdade.

Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza