A mulher carregando água num carrinho pra matar a sede das árvores
26 março 2024 às 19h00
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Quem não tem olhos para ver as flores de fora de si é porque não tem flores dentro do seu coração. Aquela mulher empurrando um carrinho com dois baldes plásticos cheios de água chamou a minha atenção assim que cheguei a uma praça no Setor Jardim das Aroeiras onde acontecia um evento voltado ao meio ambiente. Ela, sim, percebi de imediato, possui um belo ramalhete de flores dentro do seu coração. E este, que o magnânimo poeta Fernando Pessoa chamou de “comboio de cordas”, segundo Exupéry, é que enxerga o essencial, o qual é invisível aos olhos.
Parou o carrinho ao lado de um pé de caju com mais de um metro, pegou o balde menor e jogou água na árvore. Depois caminhou alguns passos e fez o mesmo com uma paineira de aproximadamente três metros. Nesta a quantidade foi maior. Com a água do outro balde, regou mais três já bem desenvolvidas: um limoeiro, um oitizeiro e um jasmim-manga amarelo. Este bem florido e com dois beija-flores fazendo a festa com o néctar das flores; um deles atacando o outro por se sentir o dono do pedaço. Certamente era isso mesmo, briga por território: atributo que os homens exercem com uma mestria nefasta. Sob os escombros da história, essa mestria nefasta pode ser encontrada abundantemente. Até no momento atual isso está acontecendo em diversos cantos do mundo.
Havia outras pessoas na praça, entretanto apenas a mulher do carrinho olhou as árvores com o coração. E mais que ver, cuidou delas. Uma boa samaritana para com as plantas. Me contou que faz reaproveitamento de água usada em muitas atividades domésticas de sua casa e que a utilizada para molhar as árvores era vinha da chuva. Ela chama as árvores de “seres especiais, que não desfrutam dos benefícios que nos proporcionam”.
Sensibilizado por sua atitude de engajamento ambiental, haja vista que esse gesto é algo muito raro (muitos, cegos pela perigosa “cegueira botânica”, veem as plantas como seres inanimados), fui até ela. Me apresentei e perguntei seu nome: Luzia. Trocamos ideias, conheci algumas das centenas de árvores plantadas por ela, algumas inclusive já adultas: ipê-rosa, abacateiro, sete-copas, mutamba. Dona Luzia abraçou carinhosamente o ipê, que, segundo ela, fora vítima de fogo criminoso, mas que estava superando a agressão ambiental. Constatei vestígios de fogo no tronco, constatei a também a sua recuperação.
Quando estávamos sob a sombra da mutamba que plantara, contei-lhe um episódio relacionado à espécie ocorrido em 2019 quando o então prefeito Iris Rezende foi ao setor na inauguração do espaço em que estávamos. Assim que passou pela árvore, Iris, que estava acompanhado de alguns vereadores da região (cada um se sentindo mais do dono do curral eleitoral) e secretários municipais diversos, virou-se para trás e perguntou à comitiva quem havia nascido na roça. “Sim” foi a resposta unânime. Ele então apontou para árvore sob a qual a comitiva estava e perguntou: “Vocês sabem qual o nome desta árvore?” Como ninguém acertou, Iris falou seu nome. A famosa “cara de paisagem” foi geral nos integrantes do séquito.
Voltando à dona Luzia — uma baiana arretada de Carinhanha —, ela me contou que há 35 anos mora em Goiânia, e que 30 só no Jardim Dom Fernando, que faz divisa de rua com o Jardim das Aroeiras. Pedi-lhe para fazer algumas imagens dela regando as árvores, mas ficou um pouco hesitada, alegando que não estava bem-vestida para sair em foto. Consegui persuadi-la: disse que sua alma estava maravilhosamente bem-vestida diante do seu ato de carinho em favor das árvores dos parques, e que ali no evento não havia ninguém com as vestes tão belas como as suas. Deu tudo certo. Eu não menti.
Precisamos de mais pessoas iguais à dona Luzia. E isso é urgente.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza