A moça que enviava flores para si mesma
12 março 2024 às 10h32
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Dias atrás fui a uma floricultura no Centro e comprei duas mudas de dama-da-noite. Uma para mim, que plantei num vaso grande em minha pequenina sacada, e outra para dar a um casal de amigos, que plantou a deles em sua chácara. Não vejo a hora de as primeiras flores da minha eclodirem e o perfume inundar minha sala. Chamo minha pequena sacada de jardim suspenso da Babilônia. Ela tem um pouquinho a ver com a Torre de Babel: só que, em vez da balbúrdia de muitas línguas diferentes, há a poesia de muitos chilreios de periquitos, rolinhas-roxas e avoantes, que vêm para comer a quirela de milho e arroz, sorgo e sementes de girassol que oferto a eles todos os dias. Na compra das plantas, me lembrei de algo que envolve literalmente flores e figurativamente espinhos. Espinhos vindos de um amor não correspondido. Algo este já ocorrido há algum tempo.
Às vezes pago contas diversas via aplicativo de celular, mas gosto também de quebrar a rotina da comodidade e ir a lotéricas. Então aproveito para assuntar as coisas das ruas e as conversas alheias. Já escutei muitas pérolas. Não conheço a moça que enviava flores para si mesma no seu trabalho. Ouvi isso enquanto estava na fila de uma agência lotérica para pagar a minha fatura de energia elétrica. Essa conversa rolou entre duas mulheres, que também estavam na fila e à minha frente. Pelos detalhes que escutei, ambas conheciam bem a moça. Antes de revelar mais coisas que ouvi, vou contar o que lhes aconteceu assim que saíram da lotérica.
Após resolverem o que as levou à agência, foram embora, mas não puderam ir de imediato, pois três soldados da PM da Cavalaria abordaram-as na calçada da agência. E aí aconteceu todo o processo por que passam as pessoas pobres (e uma delas era negra): apresentação de documentos, o que faziam no local?, baculejo na bolsa delas. Até o celular da única que tinha o aparelho foi examinado após ela fornecer a senha por ordem do policial, certamente para saber se o aparelho era roubado. E só isso, creio, é o que poderia ter verificado. Talvez nem isso.
Acho que a galeria de fotos também foi examinada, pois o PM mostrou algumas imagens ao colega, o qual deu um riso rápido em relação ao que vira. A cena da verificação das fotos me levou ao inciso XII, do Artigo 5º da Constituição: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial…”. Mas polícia é polícia e pobre é pobre. As mulheres não estavam em situação de flagrante, eram apenas pessoas pobres.
As mulheres foram liberadas pelos policiais, pois não tinham nenhuma culpa no cartório. Falaram de uma moça muito apaixonada por um colega de trabalho. Só que ele não dava a mínima importância para ela, nem para nenhuma mulher do local de trabalho. As flores eram para que o colega alvo de sua paixão notasse que a moça tinha um admirador oculto e assim, quem sabe, despertar nele algum interesse por ela. Santa ingenuidade. Não à toa que dizem por aí que o amor é cego duma perna e manco dum olho. Esse comentário sarcástico me levou a alguns versos do poeta Luís de Camões que puxam a orelha de quem fala mal do amor: “Quem o contrário diz não seja crido; seja por cego e apaixonado tido…”
Um dia, quando o entregador chegou à loja para entregar as flores, o rapaz que era a causa delas estava na porta. Ele então pediu um cartão da floricultura. Alguns dias depois, foi lá comprar flores. Em conversa com a atendente sobre a maneira em que tomou conhecimento da floricultura e assim revelando o nome da loja em que trabalhava, a funcionária lhe contou que na empresa dele havia uma cliente que comprava flores constantemente na loja. Aí o rapaz pegou no ar que as flores não eram enviadas por alguém de coração apaixonado pela colega. Na verdade eram, porém na causa do envio delas.
Algum tempo depois, ela descobriu que a flecha do Cupido jamais atingiria o coração do seu colega. Hoje os dois são muito amigos. Inclusive a ponto de ele ir à casa da amiga acompanhado do namorado. Segundo as duas mulheres, o rapaz não dava pinta de gay e que não foi pouco o gasto da moça com flores.
Se eu tivesse ficado em casa, não teria esse assunto para realizar esta crônica. A parafernália tecnológica tem nos impedido de caminhar mais, de ouvir o pulsar do coração das ruas, de ver as marias-sem-vergonha florindo nas gretas das calçadas, de sentir o perfume das murtas, de ver ninhos de bem-te-vis e avoantes na barafunda dos fios dos postes. Porém nas ruas também nossos são esbofeteados por muitas cenas tristes, como carros estacionados em faixa de pedestre ou sobre piso tátil em calçadas, gente usando crianças para pedir esmolas nos sinaleiros (e assim lhes dando lições de abismo), de ver muito cocô de cachorro nas calçadas, de ver árvores envenenadas ou eliminadas na calada da noite, calçadas malcuidadas, mendigos comendo alimentos do lixo, entre outras situações desagradáveis.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza