Por Redação

No cooperativismo da Espanha, o lucro é um objetivo, mas não está acima de tudo. A diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é 4,5 a 6 vezes

William Shakespeare (1564-1516), além de ter sido um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, foi também um poeta lírico estupendo. Os seus sonetos, em especial, são até hoje paradigmas de excelência poética

Svetlana Aleksiévitch trouxe à luz as dores e as intimidades das mulheres soviéticas que estiveram nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial

Mais que uma “resposta” ao “1984”, de Orwell, o livro de Burgess parte de observações pessoais, concretas, da vida política e social da Europa dos anos 1970, para mostrar a incapacidade do Ocidente de preservar a sua própria civilização

Deputado estadual garantiu ao Jornal Opção que informou Polícia Militar sobre caso, fornecendo dados e contatos telefônicos

Termo de Cooperação pretende evitar que detentos fiquem presos além do tempo

No cooperativismo da Espanha, o lucro é um objetivo, mas não está acima de tudo. A diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é 4,5 a 6 vezes
Mayler Olombrada
Ressalte-se que o lucro, se é um objetivo, não está acima de tudo. As cooperativas têm valores muito bem estabelecidos — como a cooperação, responsabilidade social, participação e inovação. Não se trata de um mero discurso, e sim de aplicação prática, levando a riqueza gerada para cada trabalhador e para a sociedade na qual está inserido. Os funcionários recebem salários, como em toda empresa; contudo, existe uma preocupação com a desigualdade social. Em geral a diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é de 4,5 a 6 vezes.
Entre 1936 e 1939, a Espanha viveu uma terrível guerra civil, entre republicados e franquistas, e o artista plástico espanhol Pablo Picasso (1881-1973) eternizou a destruição do país em sua magistral obra Guernica. A tela, com seus mais de sete metros de comprimento, está no museu Reina Sofia, em Madrid. O quadro voltou à terra de Miguel de Cervantes somente depois do fim da ditadura do general Francisco Franco. O óleo sobre tela é uma expressão máxima do cubismo que ilustra o massacre da cidade homônima localizada no País Basco, no norte da Espanha. A região ficou destruída, mas, durante os sombrios anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), torna-se o cenário de uma grande transformação econômica e social. Expressões tão em voga no século 21 — como inovação, cooperação, cultura do compartilhamento, gestão do conhecimento e liderança — foram encarnadas na figura do jovem padre católico José María Arizmendiarrieta (1915-1976).
O case Mondragón e um novo capitalismo
Arizmendiarrieta chega à cidade de Mondragón em 1941 e funda uma escola politécnica para formação profissional. Com cinco alunos egressos de sua escola, incentiva o espírito cooperativista. Em 1956 é fundada a empresa Talleres Ulgor, que futuramente se transformaria na Fagor Electrodomésticos. Era apenas o primeiro passo na criação da Corporação Mondragón, um dos principais grupos empresariais espanhóis, presente em 41 países com vendas em mais de 150, faturamento de 11,875 milhões de euros, 260 empresas e cooperativas e mais de 74 mil pessoas.
À medida que a economia espanhola começava a dar sinais de recuperação, Arizmendiarrieta avaliava quais eram as necessidades e oportunidades no País Basco e incentivava os moradores a formarem novas cooperativas. Sua figura sintetiza todas as características que procuramos e tentamos desenvolver em nossos líderes, como carisma, responsabilidade, capacidade de comunicar e de estabelecer metas e objetivos, inspirando as pessoas a buscarem seu melhor e realizar seus sonhos.
Dessa forma surgiram inúmeras novas cooperativas, merecendo destaque especial a Caja Laboral, fundada em 1959, uma cooperativa de crédito que possibilitou ferramentas financeiras que fomentaram a criação e o desenvolvimento de várias outras cooperativas. Uma década depois surgiu Eroski, uma enorme cooperativa de consumo, que atualmente conta com cerca de duas mil unidades e mais de 450.000 associados.
Cultura organizacional e não socialismo
Ao se conhecer o sucesso do cooperativismo em Mondragón um erro comum ao observador menos atento é acreditar que se trata de um modelo socialista, comunista. Tal percepção cria dificuldades à corporação, que, durante sua expansão para o Leste Europeu, teve resistências. A Polônia — país que viveu a terrível experiência socialista sob o tacão do ditador Stálin, da União Soviética — é um exemplo de resistência.
O cooperativismo nada tem a ver com socialismo. As empresas cooperativistas fazem parte do capitalismo, buscam o lucro e competem no cenário econômico global em busca de eficiência, economia de escala e rentabilidade.
Ressalte-se que o lucro, se é um objetivo, não está acima de tudo. As cooperativas têm valores muito bem estabelecidos — como a cooperação, responsabilidade social, participação e inovação. Não se trata de um mero discurso, e sim de aplicação prática, levando a riqueza gerada para cada trabalhador e para a sociedade na qual está inserido. Os funcionários recebem salários, como em toda empresa; contudo, existe uma preocupação com a desigualdade social. Em geral a diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é de 4,5 a 6 vezes.
Se o mais simples operário tem um salário de mil euros, o presidente da empresa, o CEO, recebe no máximo 6 mil euros por mês. Em uma empresa convencional, a diferença pode passar de cem vezes. Tal realidade monetária faz com que, ao se visitar uma fábrica da Corporação Mondragón, não se consegue identificar facilmente o cargo de alguém por sinais tradicionais. No estacionamento os automóveis dos operários e do corpo diretivo são de modelos semelhantes. Todos comem a mesma comida e no mesmo ambiente. Os filhos estudam na mesma escola pública e frequentam o mesmo hospital, também público.
A intercooperação é outra marca registrada da corporação. Sempre que se discute sobre criatividade e inovação, ficamos fascinados com as startups do Vale do Silício. Ali se desenvolve uma cultura na qual cooperação é mais valiosa que a competição. Em Mondragón é a regra há mais de 50 anos.
O padre Arizmendiarrieta estimulou que as primeiras cooperativas ajudassem as novas e, até hoje, parte das sobras (equivalente ao lucro nas empresas tradicionais) é destinada a um fundo de solidariedade que ajuda cooperativas em dificuldades e a outro fundo voltado à promoção de novos projetos.
Em 2013, após acumular uma grande dívida com vários fornecedores, a pioneira Fagor foi vendida para outro grupo. Porém, de maneira surpreendente, os dirigentes conseguiram realocar mais de mil funcionários em outras cooperativas, o que evitou demissões que comprometeriam dezenas de famílias. Outro exemplo difícil de imaginar em alguns países, sobretudo nos tropicais — nos quais os políticos aumentam, na madrugada, seus próprios salários — foi a medida adotada após a crise de 2008 que provocou uma poderosa recessão na Espanha. Ao invés de cortar custo, por meio de demissões, a opção adotada foi reduzir os salários. Tal ação evitou demissões.
Por esse tipo de decisão, o País Basco foi a região da Espanha menos afetada pela crise, com menores taxas de desemprego e uma das que mais rapidamente vem se recuperando. Até hoje o salário não voltou ao patamar pré-crise.
Ao se deparar com um problema, o cooperativista enxerga uma oportunidade. A cooperativa prioriza negócios com outras cooperativas, seja no fornecimento de matéria-prima, na execução de projetos, na distribuição. E se nenhuma das empresas da corporação está capacitada para resolver a situação talvez esteja ali a oportunidade para criar uma nova cooperativa.
Esse ambiente de intercooperação é extremamente profícuo para a inovação. Aprende-se com os erros e se estimula a todo momento desenvolver novas ideias que possibilitem agregar valor, seja a um produto já existente, a um processo interno ou a um serviço a ser prestado.
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Universidade de Mondragón[/caption]
Fundo para educação
Mesmo com a robotização das fábricas, além da incorporação de novas tecnologias, não houve aumento do desemprego. Ao criar uma inovação que aumenta a produtividade simultaneamente entra em campo outra característica do mundo cooperativista: a educação. Todas as cooperativas destinam recursos a um fundo para educação.
O funcionário que será substituído por um robô é requalificado para desenvolver outra função, como dar manutenção ao próprio robô. Frise-se que a Corporação Mondragón surgiu da base educacional instituída pelo padre Arizmendiarrieta. A corporação conta com a Universidade Mondragón, além de centros de ensino de línguas, educação secundária e formação técnica. Há um grande investimento em pesquisa e desenvolvimento. Apenas cerca de 40% das receitas da universidade vêm das matrículas, o restante é proveniente das parcerias com empresas, em uma verdadeira integração entre ensino, pesquisa e aplicação prática.
A faculdade de Ciencias Empresariales é um grande exemplo de inovação. Os estudantes constituem, no primeiro ano, uma empresa real que deve fazer negócios e sobreviver durante os quatro anos de sua formação. As disciplinas são ensinadas com aplicação prática imediata em sua própria empresa.
No primeiro ano os jovens alunos visitam escolas na Finlândia, um dos maiores celeiros de inovação e novas práticas na educação. É um exemplo que destoa do fisiologismo de sindicalistas que em outros países se preocupam mais na manutenção de seus benefícios do que com os resultados pífios alcançados no teste Pisa.
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José María Arizmendiarrieta: padre que foi grande incentivador do cooperativismo[/caption]
No segundo ano de curso, os alunos viajam para a Califórnia, a fim de fazer negócios internacionais com suas empresas, e ver um outro ambiente que também prima pelo incentivo à inovação, a tão falada região do Vale do Silício, berço de empresas de tecnologia como Google e Apple.
Os custos da viagem e estadia é paga com as receitas da empresa criada pelos próprios alunos no primeiro ano de curso superior. No terceiro ano, precisam fazer negócios na China e na Índia, oportunidade para se relacionar com países emergentes, conhecer culturas completamente diferentes, e abrir as portas para uma carreira internacional. Novamente a viagem não é a passeio, e sim uma viagem comercial e educacional. Aprender mais sobre gestão e fechar negócios para sua empresa, que é responsável pelo custo da viagem. Como as cooperativas valorizam o ambiente social em que estão inseridas, os alunos também prestam serviço social nesses países, ajudando, por exemplo, no cuidado de pessoas menos favorecidas nos subúrbios indianos.
Capitalismo e democracia
Sem dúvida alguma é impossível visitar a Corporação Mondragón e não voltar modificado. Trata-se de um exemplo concreto de que o capitalismo aliado à democracia é até hoje a melhor forma de organização criada pelo homem; contudo, é possível ir além. Trabalhar em uma empresa organizada democraticamente — em que o trabalho é soberano, a gestão é participativa, e ademais prioriza a intercooperação, educação e transformação social — é algo de um prazer imensurável.
É claro que tal modelo não é a solução apropriada para todas as empresas, para todas as regiões ou para todas as pessoas. Entretanto, é fundamental conhecer esse experiência, pois no mínimo serve de inspiração para que valorizemos a cultura da inovação e a sociedade na qual esta cultura da inovação e a sociedade na qual estamos inseridos, trabalhando para transformá-la.
Mayler Olombrada, médico em Goiânia, esteve na Espanha recentemente para conhecer o cooperativismo do país.

Ex-primeiro ministro e deputado apoiado pelos Republicanos é o alvo a ser abatido. O jogo já começou e um escândalo financeiro veio à tona. Veremos se funcionará
[caption id="attachment_87925" align="aligncenter" width="620"] François Fillon é preparado e, se sobreviver ao “Escândalo Fillon”, ex-primeiro ministro francês pode ser alçado à Presidência | Foto: Fxgallery[/caption]
Frank Wan
Especial para o Jornal Opção
As eleições presidenciais francesas avizinham-se e há muita gente que até perde o fôlego, tamanha a tensão: muita coisa está em jogo. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, acontecimento tido por muitos analistas como “anormal” e com graves repercussões em diversos níveis, vai ser importante apenas dentro dos EUA e na relação dos mesmos com o resto do mundo? Ou, muito mais grave: vai ser o início de um dominó imprevisível pelo mundo afora? É possível isolar o fenômeno Trump?
As presidenciais francesas são as primeiras eleições num país centro-europeu com graves repercussões no futuro próximo.
Os olhos viram-se todos para Marine Le Pen, a filha do famoso Jean-Marie Le Pen, o homem mais à direita do espectro político francês. Sob certos aspectos é a continuadora de seu pai, mas, cada vez mais, em mais áreas, afasta-se quer dos métodos quer do discurso político a que ele nos habituou. Talvez seja bom recordar que a Frente Nacional, partido de suporte, tem ideias pro-fascistas (ou mesmo fascistas) e segue defendendo teses negacionistas da Segunda Guerra Mundial.
As apostas seguem altas no nome de Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia e qualificado como “Independente” — seja lá o que isso signifique nestes tempos de conceitos políticos brumosos — e, ainda à esquerda seguem-se outros nomes como seja o de Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon.
O labirinto de candidatos é gigantesco com misturas heterogéneas de origens e apoios, mas, como sempre, o tempo esclarecerá todas as coisas e estes muitos nomes e apoios acabarão por se fundirem à medida que forem vendo as suas reais possibilidades.
Conviria à esquerda que Le Pen fosse a candidata para o segundo turno, pois poderiam assim agitar todas as bandeiras que ainda estão desfraldadas da recente eleição de Trump e aproveitariam a carona do histerismo midiático para o lançar tudo sobre a candidata de coloração fascista, com a gigantesca vantagem de ainda se poder atribuir qualquer peso da direita extrema europeia a Trump. Trump passaria a ser culpado até do fato de o Sol ter nascido de manhã — a mídia gosta disso e as redes sociais também se alimentam de figuras que se possam odiar sem grande esforço de pensamento.
Nesta equação da esquerda, o grande problema é François Fillon.
Fillon é um girondino clássico, antigo primeiro ministro e deputado apoiado pelos Republicanos (Les Républicains). Um homem que está longe de ideologias xenófobas, revisionismos históricos ou qualquer outro extremismo, um homem sério que veio para ganhar e está longe do perfil histriônico de Trump.
Para muita gente, de interesses dúbios, este homem, obviamente, tem que ser abatido. Como se abate um candidato? Nos EUA, com algum escândalo sexual de última hora e, no moderno manual de caça às bruxas, na Europa, através de escândalos financeiros que tomam sempre o título diabólico de “corrupção”. As acusações tomam a forma habitual deste tipo de circo: ter recebido 21 mil euros dos Fundos Públicos do Senado entre 2005 e 2007 (soma irrisória face ao que ganha um antigo primeiro ministro e qualquer quadro superior francês e outras acusações que, materialmente, não são relevantes).
A partir do “Escândalo Fillon” (Affaire Fillon), todos os noticiários abrem com o assunto, todos os jornais fazem dele a primeira página. Neste momento, na última conferência que Fillon deu foram colocadas 87 perguntas, das quais 83 foram sobre o “escândalo” financeiro. Estamos, portanto, perante um “assassinato político-midiático”, ou um “assassinato de reputação”.
Fillon reage e passa ao ataque: denuncia os “comunistas enrustidos”, denuncia as pseudo-agências de informação, etc. O tom do discurso muda e, na minha opinião, aparecem em Fillon um orador exímio e um pensador profundo. Liberto das malhas do diktat das campanhas, Fillon começa a voar livre e, apesar da máquina contra ele, os franceses percebem que estão perante um homem que não teme e não treme.
Obviamente que Fillon vai pagar um preço elevado por este processo, seja qual for o resultado. A tensão é tão grande que se cogita até mesmo a retirada da candidatura. Quem poderia substituir Fillon? A alternativa mais “pesada” seria Alain Juppé, o candidato que perdeu as primárias presidenciais da direita em 2016 para Fillon.
Nas eleições presidenciais francesas cada candidato deve ter um trunfo: o seu primeiro-ministro. Fillon, de alguma forma, não está bem acompanhado. Os chamados “pesos pesados” (poids lourd) não o veem acompanhando e não têm um bom “primeiro ministro” para apresentar.
Sem manobras de escândalos convenientes, Fillon pode obter o chamado “ingresso” (ticket) para o segundo turno e, se isso acontecer, tornaremos a falar no mais sério candidato da direita francesa, um homem na esteira dos velhos valores de respeitabilidade, honestidade, tolerância e liberalismo (num sentido próprio). Um homem que tem uma visão moderna sobre os novos desafios e que sabe que não pode recorrer a velhos conceitos, estratégias e instrumentos.
Voltarei a esta coluna para falar das candidaturas de Emmanuel Macron, Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon. Todas elas com características politicamente muito interessantes, uma vez que, resolvem problemas político-ideológico modernos, sem mobilizar grandes conceitos de Teoria Política e dão respostas aos desafios econômicos sem grandes quadros de referências.
Sei que os leitores portugueses irão rir até às lágrimas, mas a grande referência da esquerda francesa é a coligação que governa Portugal.
Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, tradutor e professor.

Aos 82 anos, era um jornalista crítico e sempre posicionando. Denunciou a roubalheira dos governos do PT sem titubear

O petismo, que não tem nenhuma vocação para a autocrítica, não consegue explicar por que uma “ditadura” premiaria um escritor que a critica

“Febre de enxofre” propõe um jogo de espelhos, no qual obra e criador se fundem
Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
O mito do homem que sela um pacto com o diabo ganha uma releitura vertiginosa em “Febre de enxofre”, de Bruno Ribeiro. Tomando o clássico “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe, como tábua de comparação, a estreia no romance do escritor mineiro radicado na Paraíba revisita algumas das composições que dão norte ao texto trágico do autor alemão: a procura desbragada por um sentido na vida, os excessos, a rivalidade entre o mundano e o etéreo, o desejo que se torna a contundência do amor. A única diferença está na recompensa. Não se trata de aprisionar a alma, mas o corpo, a matéria viva, esse invólucro de pele, carne, ossos e excreções.
A história tem início com uma despedida. Yuri Quirino, um poeta celebrado por seu primeiro livro, observa a namorada Luciana embarcar num avião com destino ao Rio de Janeiro, onde passará uma longa temporada. Ainda no aeroporto, abalado pelo frescor da separação, o personagem é abordado por um indivíduo estranho — “cabelos longos e negros, olhos e lábios finos, porcelana em forma de gente” — que se apresenta como Manuel di Paula, um fã, e afirma ter uma proposta de trabalho: escrever sua biografia. Para tanto, Quirino deveria se mudar para Buenos Aires, cidade natal do biografado, cuja mansão serviria de hospedagem. O trato também envolveria acerto financeiro.
“Não tenho tempo. Tem sim. Acho que não. O seu tempo é eterno, Yuri. Não te apresses. Não te apegues. O tempo caminha na sua direção”, altercam.
Apesar da insistência do desconhecido, o poeta decide voltar para Campina Grande, onde afoga suas mágoas na esbórnia, varando a madrugada entre a fauna local constituída por prostitutas, travestis, adictos e artistas. Num momento, está num cabaré; num outro, num lançamento de livro. Neste último, reencontra Malena, uma ex-amante, que agora namora um playboy dublê de poeta. Quirino transa com ela, transa com prostitutas, transa poesia e com travestis. Passa os dias bebendo com amigos, queimando o dinheiro que tem, enquanto não cola o rosto na tela do computador, chorando a saudade de Luciana em conversas via Skype.
Durante essa aventura hedonista, a figura misteriosa de di Paula é sempre uma sombra. Parece estar em todos os lugares, singrando o espaço-tempo, a fim de que o poeta o biografe. Chega, inclusive, a assediar Luciana, no Rio de Janeiro. Quirino continua o rechaçando o quanto pode, escorado na solidez complacente do pai. No entanto, quando a extravagância se revela uma jornada (quase fatal) de autodestruição, ele aceita o serviço e toma o avião rumo à Argentina.
A contextura dessa primeira parte se dá por meio de uma narrativa ágil, por vezes frenética, que muito lembra a carpintaria de autores como Luís Antônio Giron e, especialmente, Reinaldo Moraes. Blocos textuais que se conformam a partir de um vernáculo de transgressões e obscenidades, cujos significados transcendem o enredo. Neste caso, um exame sardônico da poesia contemporânea brasileira (“com a pós-modernidade, tudo é poesia) e da mercadização de autores de redes sociais que, na verdade, não passam de “paredes em branco”. Ribeiro desconstrói a forma, encavalando prosa linear e diálogos, abrindo apêndices, num ritmo que repercute a psiquê de seu protagonista. Achando um termo adequado na fala do próprio personagem, algo como “Beethoven dopado de LSD”.
Daí tem início a segunda metade, e o romance parece girar uma chave de contenção. Assim como acontece na parte dois de “Fausto”, a trama vai se enchendo de um clima mais velado, reduzindo o compasso e indicando outras intenções. O passado de di Paula (e, por conseguinte, o da sua família) vai sendo descoberto, tal uma história dentro da história (ou um fantasma dentro de um fantasma), na qual o autor propõe uma analogia entre não pertencimento e vampirismo. As referências também mudam: vão de Edgar Allan Poe (“A queda da casa de Usher”) a Julio Cortázar (“Casa tomada”). Ribeiro constrói uma viagem ao inferno, que é uma viagem pelo sentido identitário, pela literatura que avança contra a própria literatura para consumi-la e fazer, do seu livro, uma experiência anônima.
Com isso, o que se tem, afinal, é um jogo de espelhos confrontados cujos aços refletem o próprio autor. A quebra da barreira entre obra e criador, mostrando que a escrita nem sempre é uma maneira de expurgar demônios, mas também a chance de se fazer um pacto com o diabo.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc
Leia trechos do romance de Bruno Ribeiro:
TRECHO 1
¿O que há em minha boca sem dente? ¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas nochese saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno.
TRECHO 2
¿Sabe o que ela disse para mim antes de partir para o Rio de Janeiro? Estávamos no aeroporto, sozinhos, de mãos dadas. Minutos depois eu conheceria este puto do Manuel di Paula, mas neste momento, lhe juro, eu sabia que suas palavras eram verdadeiras, sabia. Yuri, ela disse e sua voz era firme, ¿você parou pra pensar em sua fraqueza? Eu parei para pensar na minha. Não importa, mas sou instável, oscilante, sei que você odeia isso, ¿mas sabe por que você odeia? Porque você tem medo do futuro. Você calcula cada passo, pois tem medo de cair, você teme as feridas e para isso criou uma carranca de certezas; você clama por aí que é cheio de cortes e que são elas que fazem você ser o escritor celebridade underground que é; falácia. O escritor em você nasceu do medo. Você teme tanto que escreve, difere sombras no papel, reproduz um grito seco que nunca poderia ter saído de ti, mas transborda da caneta; ¿sabe por que te amo? Porque você é um homem cheio de medos e são eles que fazem de você tão cheio de paixão e vontade; pois um homem com medo é um homem que não perde tempo, é alguém que precisa planejar tudo antes que seja tarde, é intenso por vida; você vive como se sempre fosse tarde, estou atrasado é seu dizer favorito, mesmo que não esteja; a pulsação no seu peito passa para o meu e aqui estamos; minha oscilação e dúvida nada mais são do que uma defesa contra sua loucura. Sem meus cuidados, nós estaríamos mortos, Yuri. Minha tensão, pilha, voz grave, nervosismo, ansiedade, não chegam perto do que passa no seu corpo, no interior de ti; a curvatura do seu demônio-bicho toma o aeroporto, toma João Pessoa, toma é tudo, é tão forte que um dia vai ganhar vida, vai comer gente ao redor, universo, galáxia, mastigar o próprio Deus e Diabo; eu conheço esse bicho, Yuri, nunca o vi, mas conheço. Eu não tenho medo dele, posso senti-lo com sua boca de eco, posso escutá-lo e não tema, pois estamos juntos, é sua loucura que me incentiva a ser forte e é minha ansiedade que o incentiva a ser um protetor e é seu medo que me incentiva a ser dura e é minha paralisação que o torna ativo; eu vejo você, Yuri. Eu poderia ter voltado de diversas maneiras para a Paraíba, amorosa, romanticazinha, mimada, mas não temos tempo para isso, algo maior do que nós está pairando no ar: o seu bicho, Yuri, é dele que tô falando. E é dele que você precisa cuidar. Agora saiba: eu quero você e estarei do seu lado; você pode ver meu bicho também, ¿não pode? Por isso que nunca seremos capazes de nos esquecermos... E você imaginou que eu voltaria como relâmpago, daqueles kamikazes que se imortalizam no céu na forma de cicatriz. Não. Eu retornei tormenta, daquelas que puxam tudo para o ralo, inundando qualquer rastro de rua.
TRECHO 3
¿E é amor? Aquela arma apontada no peito. ¿E é dor? Interrompo a traveco e em meio a gritos enlouquecidos, eu digo: nunca rime amor com dor, caralho. Já disse, ¿não disse? Disse menino, oxe, fique calmo. É difícil ter inspiração, a gente não somo artista não. ¿Calmo? ¿Vocês pensam com o intestino? ¿E a novinha? ¿Não veio hoje? As duas travecos ficam caladas. Nós três estávamos em uma das casinhas barrocas que ficam na frente da rodoviária velha. Locais que são tomados de conta por velhinhas rugosas que cobram dez reais a hora em um quarto. Cafetinas antigas, daquelas que pariam menino como se cagassem. O quarto fedia a estragado; cama de casal no chão e uma mesa de centro. Papéis e jornais enfeitavam o espaço; nós sentávamos na cama e escrevíamos com as canetas que eu trazia de casa. Elas arregalaram os olhos e começaram a me escutar. Poesia, queridas, fiquei de pé, é se perder em território linguístico. Já diria o infeliz Octavio Paz, “somos filhos do romantismo alemão”, filhos dessa ideia da inspiração, da luz no poeta, o abençoado das palavras, ora não, não existe essa abominação. Antes os verdadeiros pioneiros do século XIX, o simbolismo, a decadência, somos nós; Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, antes este último nome, o primeiro dos malditos e modernos. Aqui para vocês, uma cópia de Flores do Mal... Leiam e, na próxima classe, digam o que acharam. Digam da maneira de vocês, mas digam. Já diria Baudelaire, “ser sempre poeta, incluso na prosa”, atrevo a dizer, agora citando Yuri Quirino - eu próprio, caso não saibam - ser sempre poeta incluso na vida. E vocês, assim como eu, são poetas na vida. A ruptura é um retorno às origens e o dia-a-dia de vocês é pura ruptura. Vocês têm o que, mas não tem o como. Mas ter o que é mais importante do que o como. O que há de estudantes de literatura preenchidos pelo como não há como contabilizar, são bilhões, trilhões, e nenhum deles tem o que, o que, o que, ¿o que vou contar? Nada. Baudelaire vivia atrás do que, bebendo putas e comendo vinhos. Rimbaud abandonou tudo, ainda ninfeto, para virar traficante na África. ¿E Artaud? ¿Que viveu sua própria obra transgressiva, respirando utopia e vomitando manifestos dilacerados e falidos? Eles tinham vida, amores, cheios de que, atravessados pelo como, resultando a mistura em dinamite lapidada. ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Matar amores, gente, cotidiano, trabalho, algo deve tombar. Dissecar a linguagem e jogá-la em cima do cadáver, só assim a poesia pura renascerá. Repitam comigo: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? As duas ficam sem jeito. Começo a pular e grito: repitam. Elas repetem: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Você, eu aponto para a travesti de peruca loira, escreva uma poesia agora, sem pensar em métrica ou rima, assassine o soneto: escreva algo envolvendo morte, isso mesmo, quero algo com efeito poético e que carregue finitude. Ela pisca os olhos freneticamente, empolgada, pega a caneta, pensa por alguns segundos e começa a escrever.
TRECHO 4
A depressão vinha. Luciana não foi exclusividade, com Malena também teve distância no relacionamento. Desde pequeno, em Minas Gerais, após mudanças e mais mudanças de cidades, eu lutei contra a dor do adeus. Sinto-me feito aqueles soldados traumatizados do Vietnã, ao invés de crises sobre cadáveres, tenho crises de amor. Não há como produzir dessa maneira, sabendo que a mulher que você tanto quer está em outro lugar. Nunca consegui concretizar um relacionamento normal, sempre teve barreiras em forma de bueiros, longos e negros, tão afastados das minhas mãos que nem conseguiria medir quilometragem. Fecho o notebook e não respondo o recado de Luciana. Preso em Campina Grande, sem trabalho, sem escrever, sem nada. Meu pai é um bom homem, vem até minha casa e diz que pagará o aluguel, mas que não rola de ser assim para sempre. Sei que você é poeta, filho, ele diz, sei que você ganhou prêmios, mas porra, vai trabalhar, cacete. E eu abaixo a cabeça. Observo a varanda, três andares, no máximo conseguiria ficar aleijado. Tentar se matar e fracassar é uma das coisas mais patéticas do universo, a outra são as coisas que dizemos quando estamos amando. Ou seja, eu estava próximo de ser o maior patético do universo. Crise de gente branca é deplorável. Decido dar uma volta pelo meu bairro, Catolé, e vejo o quanto cresceu. Agora tem prédios onde havia barro, tudo desenvolve, cresce dentro do ecossistema das moradias humanas, prolifera feito barata e não existe remédio que as extermine. Agora é obra diariamente, gritos de pedreiro, assovios, movimento, tudo indo para frente. Agora é imobiliária, martelo, trator, pastilhas, argamassa, base, mão, capacete, madeira, capital, investimento, e só sei que tudo mudou. As coisas evoluem, os corpos não. Movimento é vida.
TRECHO 5
O idoso disse que quando o pai foi encontrado morto, a cidade passou por um momento de horror. A filha do prefeito estava grávida e, quando foi parir, teve uma criança sem cabeça e braço. O bebê nasceu vivo, chorava, ria, vivia: ninguém sabia como, mas era possível escutar seu choro reverberando por toda a cidade; os médicos tentaram encontrar os membros dentro da vagina da mulher, mas não havia nada, literalmente nada; o bebê sem cabeça e braço chorava sem parar, assombrando a todos da cidade. Até que o marido da mulher matou o filho e foi preso. Cinco dias depois, o marido foi encontrado em sua cela transformado em um bode vermelho: os policiais o mataram e jogaram a carcaça do animal no rio; dois dias depois, o rio estava vermelho; as plantações deixaram de crescer; os alimentos apodreceram; chovia pregos diariamente; a maioria da população se mudou para a capital, e os que ficaram tiveram que passar por uma temporada terrível e escassa de comida, pois tudo apodrecia. Os moradores das cabanas enlouqueceram e muitos se mataram e outros imploravam ajuda a Deus. Todos os bebês nascidos neste período vinham com alguma deficiência, a maioria nascia com demência ou com alguma parte do corpo faltando. Bebês decapitados e insanos foram se infestando pela cidade de Tigre; maridos bodes, mulheres perdendo os dentes e se tornando ninfomaníacas, bandidos se transformando em ratos, chuvas ácidas toda quinta-feira e eventuais terremotos e trovões de sangue; a maldição cessou quando a mansão caiu no Delta do Rio Paraná; o idoso não sabe a data em que isso aconteceu, perguntei o ano ao menos, mas ele virou as costas e pediu para eu esquecer essas coisas: a família di Paula viveu em todos os séculos, dias, anos, não tem um dia para isso, só há esquecimento e é o que se deve fazer, ele disse em castelhano e fechou a porta envelhecida da sua casa. Manuel di Paula carrega séculos de trevas em suas costas, uma maldição familiar, uma herança que o aterroriza até hoje. E também aterroriza a todos nós que aqui resistimos e escrevemos o que restou do todo.

O escritor deve deixar o pobre do narrador respirar de vez em quando. É preciso deixá-lo esticar as pernas, tomar um gole d’água, ir à cozinha beliscar um pedaço de queijo

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Com tradução de Irapuan Costa Junior, publicada pela Cânone Editorial em 2016, o público brasileiro tem agora acesso a uma das reflexões mais importantes sobre a linguagem, elaborada pelo filósofo Herbert Spencer