Svetlana Aleksiévitch trouxe à luz as dores e as intimidades das mulheres soviéticas que estiveram nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial

Svetlana Aleksiévitch venceu o Nobel de Literatura de 2015 | Foto: Divulgação

Flávia MF
Especial para o Jornal Opção

Svetlana Aleksiévitch, nascida em 1948, é uma das mais prestigiadas escritoras contemporâneas. Seu primeiro livro, “A Guerra não tem Rosto de Mu­lher”, lançado no Brasil em 2016 (Companhia das Letras, tradução de Cecília Rosas), foi publicado originalmente em 1985, quando seu país, a Bielorrússia, ainda integrava a União Soviética. Em 2015, Svetlana foi agraciada com o Nobel de Literatura, tornando-se a 14ª mulher a vencer a honraria, por sua “obra polifônica, um monumento do sofrimento e da coragem em nosso tempo”. A autora bielorrussa publicou outros livros com o mesmo teor documental, sempre compostos por testemunhos individuais, com depoimentos colhidos durante um longo período, e já confidenciou que seus livros demoram em média sete anos para serem escritos. As obras “Vozes de Tchernóbil” e “O Fim do Ho­mem Soviético”, ambos publicados no Brasil também em 2016 pela Cia das Letras (com traduções de Sônia Branco e Lucas Simone, respectivamente), são duas de suas tentativas de mostrar a outra face do leste europeu por meio da história oral.

“A Guerra não tem Rosto de Mulher” é um livro de não ficção, mas contém toda a fluidez narrativa dos grandes carpinteiros ficcionais. Os capítulos são compostos por uma rápida introdução da autora, seguida por inúmeros trechos de depoimentos de mulheres soviéticas que tiveram diferentes vivências durante a Segunda Guerra – sendo a maior parte no front de batalha. As entrevistas são praticamente monólogos, pois não há intervenções da autora, que busca os relatos da forma mais espontânea e honesta possível. Ao longo dos capítulos são apresentadas diferentes personagens: enfermeiras, cozinheiras, franco-atiradoras, pilotas de aviões, sapadoras (responsáveis pelo desarmamento de bombas e minas). Cada uma relata a sua experiência e entendimento dos fatos ocorridos durante os anos de guerra. Alguns pedidos para ocultar o nome mostram que, mesmo tantos anos depois, determinados assuntos ainda não podem ser tratados abertamente.

Svetlana busca, justamente, relatos sobre a guerra que ultrapassem os documentos oficiais, tentando dar respostas a perguntas como: Quais são os pormenores da Grande Vitória? O que essas mulheres sacrificaram por ela? Vejamos um dos depoimentos:

“O meu marido… Ainda bem que não está aqui, está no trabalho. Ele me proibiu expressamente… Sabe que eu adoro contar do nosso amor… Falar de como costurei meu vestido de noiva a partir de ataduras, em uma noite. Eu mesma. Eu e as meninas passamos um mês juntando ataduras. Eram troféus… Eu tive um verdadeiro vestido de noiva! Guar­dei uma fotografia: eu, usando aquele vestido e botas; não dá para ver as botas, mas disso eu me lembro, es­ta­va de botas. Im­provisei um cinto com u­ma boina ve­lha…[…] Meu marido mandou não dizer uma palavra sobre amor, nadinha, é para falar de guerra. Ele é rígido comigo. Me ensinou no mapa… Passou dois dias me ensinando on­de estava cada front… Onde estava nossa unidade…” Depoimento de Anastassia Leo­ní­do­v­na Jardétskaia, cabo, enfermeira-instrutora (p. 286).

É digno de destaque o quão fortemente se incidia a ideologia comunista sobre a população da URSS, à época. Muitas mulheres relatam seu esforço para serem aceitas nas linhas de frente das batalhas, apesar da constante recusa dos responsáveis pelo alistamento: estavam imbuídas do dever de defender a pátria dos invasores, e também sentiam-se honradas por realizarem esse papel. Em vários relatos, essas moças que tanto se empenharam para lutar na chamada “Grande Guerra Patriótica” tinham menos de 18 anos. Junta a isso o fato de, recorrentemente, aparecer nos testemunhos a necessidade de essas moças se mostrarem tão boas como os homens dentro do campo de batalha. Assumindo papéis tradicionalmente masculinos, relatam com orgulho as medalhas recebidas, como a Ordem da Estrela Ver­melha, outorgada a militares por “serviços excepcionais em prol da defesa da União Soviética na guerra ou na paz”.

Em suas falas, as soviéticas revelam muitos aspectos íntimos da vida na guerra: as vaidades e necessidades femininas e as dificuldades encontradas em um ambiente inapropriado para recebê-las. A autora afirma: “Eu não escrevo a história dos fatos, mas a história das almas”. A história contada por elas mostra o anseio por lutar por seu povo, mas também o horror perante as privações, o medo e a morte. Mostra a tristeza diária que se transforma em dureza, as lágrimas que secam, o coração que enrijece, como fica patente no relato de Polina Kasperóvitch, partisan que fez parte da resistência nas áreas ocupadas pela Alemanha:

“No nosso destacamento tinha os irmãos Tchimuk… Eles caíram numa emboscada na sua aldeia, trocaram tiros até chegar a um galpão que logo foi incendiado. Enquanto não acabaram os cartuchos, eles ficaram atirando… Depois saíram chamuscados… Foram le­va­dos em uma telega, e os alemães iam mostrando para ver se alguém reconhecia. Se alguém os entregava…Toda a aldeia estava ali. O pai e a mãe deles também, mas ninguém proferiu um som. Que coração essa mãe precisou ter para não gritar. Não demonstrar. Mas ela sabia que, se chorasse, queimariam toda a aldeia. Não matariam somente ela… Ela sabia… De todas as medalhas, nenhuma é suficiente, e até a mais alta Estrela do Herói é pouco para essa mãe… Pelo silêncio…” (p. 309)

As relações no front, por sua vez, foram um assunto abordado de forma relativamente superficial. Estranho pensar que garotas recém-ingressas em um campo de guerra formado, até então, estritamente por homens, tenham sido tratadas em sua grande maioria com respeito. Mas essa é a história contada por elas, e talvez, mesmo tanto tempo depois, ainda não considerem esse assunto digno de figurar nos depoimentos sobre “Grande Guerra Patriótica”. Por outro lado, é doloroso perceber, nos relatos, como essas mulheres foram recebidas quando retornaram da guerra. Discriminadas, odiadas por muitas esposas que permaneceram em suas cidades enquanto os maridos foram ao front, sua imagem perante a sociedade não foi a de heroínas, como acontecia com os rapazes. Muitas voltaram doentes, com membros amputados, desconsideradas para casamento. Sem nenhum amparo do Estado soviético, muitas delas tiveram o fim em abrigos, ou foram entregues ao completo abandono.

Com mais de 20 milhões de soviéticos mortos na Segunda Guerra Mundial, só há pouco tempo o testemunho das mulheres começou a ser considerado dentro desse contexto. A obra de Svetlana deu a eles vida e luz, sacando-os do obscurecimento e das agruras de um passado doloroso.

Flávia MF é graduada em História, pela Universidade de Brasília (UnB), e em Relações Internacionais, pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO)