Picasso, um jovem padre, inovação e mais de 10 bilhões de euros por ano em cooperativa de Mondragón
25 fevereiro 2017 às 10h44
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No cooperativismo da Espanha, o lucro é um objetivo, mas não está acima de tudo. A diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é 4,5 a 6 vezes
Mayler Olombrada
Especial para o Jornal Opção
Entre 1936 e 1939, a Espanha viveu uma terrível guerra civil, entre republicanos e franquistas, e o artista plástico espanhol Pablo Picasso (1881-1973) eternizou a destruição do país em sua magistral obra Guernica. A tela, com seus mais de sete metros de comprimento, está no museu Reina Sofia, em Madri. O quadro voltou à terra de Miguel de Cervantes somente depois do fim da ditadura do general Francisco Franco. O óleo sobre tela é uma expressão máxima do cubismo que ilustra o massacre da cidade homônima localizada no País Basco, no norte da Espanha. A região ficou destruída, mas, durante os sombrios anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), torna-se o cenário de uma grande transformação econômica e social. Expressões tão em voga no século 21 — como inovação, cooperação, cultura do compartilhamento, gestão do conhecimento e liderança — foram encarnadas na figura do jovem padre católico José María Arizmendiarrieta (1915-1976).
O case Mondragón e um novo capitalismo
Arizmendiarrieta chega à cidade de Mondragón em 1941 e funda uma escola politécnica para formação profissional. Com cinco alunos egressos de sua escola, incentiva o espírito cooperativista. Em 1956 é fundada a empresa Talleres Ulgor, que futuramente se transformaria na Fagor Electrodomésticos. Era apenas o primeiro passo na criação da Corporação Mondragón, um dos principais grupos empresariais espanhóis, presente em 41 países com vendas em mais de 150, faturamento de 11,875 milhões de euros, 260 empresas e cooperativas e mais de 74 mil pessoas.
À medida que a economia espanhola começava a dar sinais de recuperação, Arizmendiarrieta avaliava quais eram as necessidades e oportunidades no País Basco e incentivava os moradores a formarem novas cooperativas. Sua figura sintetiza todas as características que procuramos e tentamos desenvolver em nossos líderes, como carisma, responsabilidade, capacidade de comunicar e de estabelecer metas e objetivos, inspirando as pessoas a buscarem seu melhor e realizarem seus sonhos.
Dessa forma, surgiram inúmeras novas cooperativas, merecendo destaque especial a Caja Laboral, fundada em 1959, uma cooperativa de crédito que possibilitou ferramentas financeiras que fomentaram a criação e o desenvolvimento de várias outras cooperativas. Uma década depois surgiu Eroski, uma enorme cooperativa de consumo, que atualmente conta com cerca de duas mil unidades e mais de 450 mil associados.
Cultura organizacional e não socialismo
Ao se conhecer o sucesso do cooperativismo em Mondragón um erro comum ao observador menos atento é acreditar que se trata de um modelo socialista, comunista. Tal percepção cria dificuldades à corporação, que, durante sua expansão para o Leste Europeu, teve resistências. A Polônia — país que viveu a terrível experiência socialista sob o tacão do ditador Stálin, da União Soviética — é um exemplo de resistência.
O cooperativismo nada tem a ver com socialismo. As empresas cooperativistas fazem parte do capitalismo, buscam o lucro e competem no cenário econômico global em busca de eficiência, economia de escala e rentabilidade.
Ressalte-se que o lucro, se é um objetivo, não está acima de tudo. As cooperativas têm valores muito bem estabelecidos — como a cooperação, responsabilidade social, participação e inovação. Não se trata de um mero discurso, e sim de aplicação prática, levando a riqueza gerada para cada trabalhador e para a sociedade na qual está inserido. Os funcionários recebem salários, como em toda empresa; contudo, existe uma preocupação com a desigualdade social. Em geral a diferença salarial entre a base e o topo do organograma institucional é de 4,5 a 6 vezes.
Se o mais simples operário tem um salário de mil euros, o presidente da empresa, o CEO, recebe no máximo 6 mil euros por mês. Em uma empresa convencional, a diferença pode passar de cem vezes. Tal realidade monetária faz com que, ao se visitar uma fábrica da Corporação Mondragón, não se consegue identificar facilmente o cargo de alguém por sinais tradicionais. No estacionamento os automóveis dos operários e do corpo diretivo são de modelos semelhantes. Todos comem a mesma comida e no mesmo ambiente. Os filhos estudam na mesma escola pública e frequentam o mesmo hospital, também público.
A intercooperação é outra marca registrada da corporação. Sempre que se discute sobre criatividade e inovação, ficamos fascinados com as startups do Vale do Silício. Ali se desenvolve uma cultura na qual cooperação é mais valiosa que a competição. Em Mondragón é a regra há mais de 50 anos.
O padre Arizmendiarrieta estimulou que as primeiras cooperativas ajudassem as novas e, até hoje, parte das sobras (equivalente ao lucro nas empresas tradicionais) é destinada a um fundo de solidariedade que ajuda cooperativas em dificuldades e a outro fundo voltado à promoção de novos projetos.
Em 2013, após acumular uma grande dívida com vários fornecedores, a pioneira Fagor foi vendida para outro grupo. Porém, de maneira surpreendente, os dirigentes conseguiram realocar mais de mil funcionários em outras cooperativas, o que evitou demissões que comprometeriam dezenas de famílias. Outro exemplo difícil de imaginar em alguns países, sobretudo nos tropicais — nos quais os políticos aumentam, na madrugada, seus próprios salários — foi a medida adotada após a crise de 2008 que provocou uma poderosa recessão na Espanha. Ao invés de cortar custo, por meio de demissões, a opção adotada foi reduzir os salários. Tal ação evitou demissões.
Por esse tipo de decisão, o País Basco foi a região da Espanha menos afetada pela crise, com menores taxas de desemprego e uma das que mais rapidamente vem se recuperando. Até hoje o salário não voltou ao patamar pré-crise.
Ao se deparar com um problema, o cooperativista enxerga uma oportunidade. A cooperativa prioriza negócios com outras cooperativas, seja no fornecimento de matéria-prima, na execução de projetos, na distribuição. E se nenhuma das empresas da corporação está capacitada para resolver a situação talvez esteja ali a oportunidade para criar uma nova cooperativa.
Esse ambiente de intercooperação é extremamente profícuo para a inovação. Aprende-se com os erros e se estimula a todo momento desenvolver novas ideias que possibilitem agregar valor, seja a um produto já existente, a um processo interno ou a um serviço a ser prestado.
Fundo para educação
Mesmo com a robotização das fábricas, além da incorporação de novas tecnologias, não houve aumento do desemprego. Ao criar uma inovação que aumenta a produtividade simultaneamente entra em campo outra característica do mundo cooperativista: a educação. Todas as cooperativas destinam recursos a um fundo para educação.
O funcionário que será substituído por um robô é requalificado para desenvolver outra função, como dar manutenção ao próprio robô. Frise-se que a Corporação Mondragón surgiu da base educacional instituída pelo padre Arizmendiarrieta. A corporação conta com a Universidade Mondragón, além de centros de ensino de línguas, educação secundária e formação técnica. Há um grande investimento em pesquisa e desenvolvimento. Apenas cerca de 40% das receitas da universidade vêm das matrículas, o restante é proveniente das parcerias com empresas, em uma verdadeira integração entre ensino, pesquisa e aplicação prática.
A faculdade de Ciencias Empresariales é um grande exemplo de inovação. Os estudantes constituem, no primeiro ano, uma empresa real que deve fazer negócios e sobreviver durante os quatro anos de sua formação. As disciplinas são ensinadas com aplicação prática imediata em sua própria empresa.
No primeiro ano os jovens alunos visitam escolas na Finlândia, um dos maiores celeiros de inovação e novas práticas na educação. É um exemplo que destoa do fisiologismo de sindicalistas que em outros países se preocupam mais na manutenção de seus benefícios do que com os resultados pífios alcançados no teste Pisa.
No segundo ano de curso, os alunos viajam para a Califórnia, a fim de fazer negócios internacionais com suas empresas, e ver um outro ambiente que também prima pelo incentivo à inovação, a tão falada região do Vale do Silício, berço de empresas de tecnologia como Google e Apple.
Os custos da viagem e estadia é paga com as receitas da empresa criada pelos próprios alunos no primeiro ano de curso superior. No terceiro ano, precisam fazer negócios na China e na Índia, oportunidade para se relacionar com países emergentes, conhecer culturas completamente diferentes, e abrir as portas para uma carreira internacional. Novamente a viagem não é a passeio, e sim uma viagem comercial e educacional. Aprender mais sobre gestão e fechar negócios para sua empresa, que é responsável pelo custo da viagem. Como as cooperativas valorizam o ambiente social em que estão inseridas, os alunos também prestam serviço social nesses países, ajudando, por exemplo, no cuidado de pessoas menos favorecidas nos subúrbios indianos.
Capitalismo e democracia
Sem dúvida alguma é impossível visitar a Corporação Mondragón e não voltar modificado. Trata-se de um exemplo concreto de que o capitalismo aliado à democracia é até hoje a melhor forma de organização criada pelo homem; contudo, é possível ir além. Trabalhar em uma empresa organizada democraticamente — em que o trabalho é soberano, a gestão é participativa, e ademais prioriza a intercooperação, educação e transformação social — é algo de um prazer imensurável.
É claro que tal modelo não é a solução apropriada para todas as empresas, para todas as regiões ou para todas as pessoas. Entretanto, é fundamental conhecer esse experiência, pois no mínimo serve de inspiração para que valorizemos a cultura da inovação e a sociedade na qual esta cultura da inovação e a sociedade na qual estamos inseridos, trabalhando para transformá-la. l
Mayler Olombrada, médico cardiologista em Goiânia, esteve na Espanha recentemente para conhecer o cooperativismo do país.