A viagem ao inferno de Bruno Ribeiro
19 fevereiro 2017 às 10h08
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“Febre de enxofre” propõe um jogo de espelhos, no qual obra e criador se fundem
Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
O mito do homem que sela um pacto com o diabo ganha uma releitura vertiginosa em “Febre de enxofre”, de Bruno Ribeiro. Tomando o clássico “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe, como tábua de comparação, a estreia no romance do escritor mineiro radicado na Paraíba revisita algumas das composições que dão norte ao texto trágico do autor alemão: a procura desbragada por um sentido na vida, os excessos, a rivalidade entre o mundano e o etéreo, o desejo que se torna a contundência do amor. A única diferença está na recompensa. Não se trata de aprisionar a alma, mas o corpo, a matéria viva, esse invólucro de pele, carne, ossos e excreções.
A história tem início com uma despedida. Yuri Quirino, um poeta celebrado por seu primeiro livro, observa a namorada Luciana embarcar num avião com destino ao Rio de Janeiro, onde passará uma longa temporada. Ainda no aeroporto, abalado pelo frescor da separação, o personagem é abordado por um indivíduo estranho — “cabelos longos e negros, olhos e lábios finos, porcelana em forma de gente” — que se apresenta como Manuel di Paula, um fã, e afirma ter uma proposta de trabalho: escrever sua biografia. Para tanto, Quirino deveria se mudar para Buenos Aires, cidade natal do biografado, cuja mansão serviria de hospedagem. O trato também envolveria acerto financeiro.
“Não tenho tempo. Tem sim. Acho que não. O seu tempo é eterno, Yuri. Não te apresses. Não te apegues. O tempo caminha na sua direção”, altercam.
Apesar da insistência do desconhecido, o poeta decide voltar para Campina Grande, onde afoga suas mágoas na esbórnia, varando a madrugada entre a fauna local constituída por prostitutas, travestis, adictos e artistas. Num momento, está num cabaré; num outro, num lançamento de livro. Neste último, reencontra Malena, uma ex-amante, que agora namora um playboy dublê de poeta. Quirino transa com ela, transa com prostitutas, transa poesia e com travestis. Passa os dias bebendo com amigos, queimando o dinheiro que tem, enquanto não cola o rosto na tela do computador, chorando a saudade de Luciana em conversas via Skype.
Durante essa aventura hedonista, a figura misteriosa de di Paula é sempre uma sombra. Parece estar em todos os lugares, singrando o espaço-tempo, a fim de que o poeta o biografe. Chega, inclusive, a assediar Luciana, no Rio de Janeiro. Quirino continua o rechaçando o quanto pode, escorado na solidez complacente do pai. No entanto, quando a extravagância se revela uma jornada (quase fatal) de autodestruição, ele aceita o serviço e toma o avião rumo à Argentina.
A contextura dessa primeira parte se dá por meio de uma narrativa ágil, por vezes frenética, que muito lembra a carpintaria de autores como Luís Antônio Giron e, especialmente, Reinaldo Moraes. Blocos textuais que se conformam a partir de um vernáculo de transgressões e obscenidades, cujos significados transcendem o enredo. Neste caso, um exame sardônico da poesia contemporânea brasileira (“com a pós-modernidade, tudo é poesia) e da mercadização de autores de redes sociais que, na verdade, não passam de “paredes em branco”. Ribeiro desconstrói a forma, encavalando prosa linear e diálogos, abrindo apêndices, num ritmo que repercute a psiquê de seu protagonista. Achando um termo adequado na fala do próprio personagem, algo como “Beethoven dopado de LSD”.
Daí tem início a segunda metade, e o romance parece girar uma chave de contenção. Assim como acontece na parte dois de “Fausto”, a trama vai se enchendo de um clima mais velado, reduzindo o compasso e indicando outras intenções. O passado de di Paula (e, por conseguinte, o da sua família) vai sendo descoberto, tal uma história dentro da história (ou um fantasma dentro de um fantasma), na qual o autor propõe uma analogia entre não pertencimento e vampirismo. As referências também mudam: vão de Edgar Allan Poe (“A queda da casa de Usher”) a Julio Cortázar (“Casa tomada”). Ribeiro constrói uma viagem ao inferno, que é uma viagem pelo sentido identitário, pela literatura que avança contra a própria literatura para consumi-la e fazer, do seu livro, uma experiência anônima.
Com isso, o que se tem, afinal, é um jogo de espelhos confrontados cujos aços refletem o próprio autor. A quebra da barreira entre obra e criador, mostrando que a escrita nem sempre é uma maneira de expurgar demônios, mas também a chance de se fazer um pacto com o diabo.
Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc
Leia trechos do romance de Bruno Ribeiro:
TRECHO 1
¿O que há em minha boca sem dente? ¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas nochese saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno.
TRECHO 2
¿Sabe o que ela disse para mim antes de partir para o Rio de Janeiro? Estávamos no aeroporto, sozinhos, de mãos dadas. Minutos depois eu conheceria este puto do Manuel di Paula, mas neste momento, lhe juro, eu sabia que suas palavras eram verdadeiras, sabia. Yuri, ela disse e sua voz era firme, ¿você parou pra pensar em sua fraqueza? Eu parei para pensar na minha. Não importa, mas sou instável, oscilante, sei que você odeia isso, ¿mas sabe por que você odeia? Porque você tem medo do futuro. Você calcula cada passo, pois tem medo de cair, você teme as feridas e para isso criou uma carranca de certezas; você clama por aí que é cheio de cortes e que são elas que fazem você ser o escritor celebridade underground que é; falácia. O escritor em você nasceu do medo. Você teme tanto que escreve, difere sombras no papel, reproduz um grito seco que nunca poderia ter saído de ti, mas transborda da caneta; ¿sabe por que te amo? Porque você é um homem cheio de medos e são eles que fazem de você tão cheio de paixão e vontade; pois um homem com medo é um homem que não perde tempo, é alguém que precisa planejar tudo antes que seja tarde, é intenso por vida; você vive como se sempre fosse tarde, estou atrasado é seu dizer favorito, mesmo que não esteja; a pulsação no seu peito passa para o meu e aqui estamos; minha oscilação e dúvida nada mais são do que uma defesa contra sua loucura. Sem meus cuidados, nós estaríamos mortos, Yuri. Minha tensão, pilha, voz grave, nervosismo, ansiedade, não chegam perto do que passa no seu corpo, no interior de ti; a curvatura do seu demônio-bicho toma o aeroporto, toma João Pessoa, toma é tudo, é tão forte que um dia vai ganhar vida, vai comer gente ao redor, universo, galáxia, mastigar o próprio Deus e Diabo; eu conheço esse bicho, Yuri, nunca o vi, mas conheço. Eu não tenho medo dele, posso senti-lo com sua boca de eco, posso escutá-lo e não tema, pois estamos juntos, é sua loucura que me incentiva a ser forte e é minha ansiedade que o incentiva a ser um protetor e é seu medo que me incentiva a ser dura e é minha paralisação que o torna ativo; eu vejo você, Yuri. Eu poderia ter voltado de diversas maneiras para a Paraíba, amorosa, romanticazinha, mimada, mas não temos tempo para isso, algo maior do que nós está pairando no ar: o seu bicho, Yuri, é dele que tô falando. E é dele que você precisa cuidar. Agora saiba: eu quero você e estarei do seu lado; você pode ver meu bicho também, ¿não pode? Por isso que nunca seremos capazes de nos esquecermos… E você imaginou que eu voltaria como relâmpago, daqueles kamikazes que se imortalizam no céu na forma de cicatriz. Não. Eu retornei tormenta, daquelas que puxam tudo para o ralo, inundando qualquer rastro de rua.
TRECHO 3
¿E é amor? Aquela arma apontada no peito. ¿E é dor? Interrompo a traveco e em meio a gritos enlouquecidos, eu digo: nunca rime amor com dor, caralho. Já disse, ¿não disse? Disse menino, oxe, fique calmo. É difícil ter inspiração, a gente não somo artista não. ¿Calmo? ¿Vocês pensam com o intestino? ¿E a novinha? ¿Não veio hoje? As duas travecos ficam caladas. Nós três estávamos em uma das casinhas barrocas que ficam na frente da rodoviária velha. Locais que são tomados de conta por velhinhas rugosas que cobram dez reais a hora em um quarto. Cafetinas antigas, daquelas que pariam menino como se cagassem. O quarto fedia a estragado; cama de casal no chão e uma mesa de centro. Papéis e jornais enfeitavam o espaço; nós sentávamos na cama e escrevíamos com as canetas que eu trazia de casa. Elas arregalaram os olhos e começaram a me escutar. Poesia, queridas, fiquei de pé, é se perder em território linguístico. Já diria o infeliz Octavio Paz, “somos filhos do romantismo alemão”, filhos dessa ideia da inspiração, da luz no poeta, o abençoado das palavras, ora não, não existe essa abominação. Antes os verdadeiros pioneiros do século XIX, o simbolismo, a decadência, somos nós; Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, antes este último nome, o primeiro dos malditos e modernos. Aqui para vocês, uma cópia de Flores do Mal… Leiam e, na próxima classe, digam o que acharam. Digam da maneira de vocês, mas digam. Já diria Baudelaire, “ser sempre poeta, incluso na prosa”, atrevo a dizer, agora citando Yuri Quirino – eu próprio, caso não saibam – ser sempre poeta incluso na vida. E vocês, assim como eu, são poetas na vida. A ruptura é um retorno às origens e o dia-a-dia de vocês é pura ruptura. Vocês têm o que, mas não tem o como. Mas ter o que é mais importante do que o como. O que há de estudantes de literatura preenchidos pelo como não há como contabilizar, são bilhões, trilhões, e nenhum deles tem o que, o que, o que, ¿o que vou contar? Nada. Baudelaire vivia atrás do que, bebendo putas e comendo vinhos. Rimbaud abandonou tudo, ainda ninfeto, para virar traficante na África. ¿E Artaud? ¿Que viveu sua própria obra transgressiva, respirando utopia e vomitando manifestos dilacerados e falidos? Eles tinham vida, amores, cheios de que, atravessados pelo como, resultando a mistura em dinamite lapidada. ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Matar amores, gente, cotidiano, trabalho, algo deve tombar. Dissecar a linguagem e jogá-la em cima do cadáver, só assim a poesia pura renascerá. Repitam comigo: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? As duas ficam sem jeito. Começo a pular e grito: repitam. Elas repetem: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Você, eu aponto para a travesti de peruca loira, escreva uma poesia agora, sem pensar em métrica ou rima, assassine o soneto: escreva algo envolvendo morte, isso mesmo, quero algo com efeito poético e que carregue finitude. Ela pisca os olhos freneticamente, empolgada, pega a caneta, pensa por alguns segundos e começa a escrever.
TRECHO 4
A depressão vinha. Luciana não foi exclusividade, com Malena também teve distância no relacionamento. Desde pequeno, em Minas Gerais, após mudanças e mais mudanças de cidades, eu lutei contra a dor do adeus. Sinto-me feito aqueles soldados traumatizados do Vietnã, ao invés de crises sobre cadáveres, tenho crises de amor. Não há como produzir dessa maneira, sabendo que a mulher que você tanto quer está em outro lugar. Nunca consegui concretizar um relacionamento normal, sempre teve barreiras em forma de bueiros, longos e negros, tão afastados das minhas mãos que nem conseguiria medir quilometragem. Fecho o notebook e não respondo o recado de Luciana. Preso em Campina Grande, sem trabalho, sem escrever, sem nada. Meu pai é um bom homem, vem até minha casa e diz que pagará o aluguel, mas que não rola de ser assim para sempre. Sei que você é poeta, filho, ele diz, sei que você ganhou prêmios, mas porra, vai trabalhar, cacete. E eu abaixo a cabeça. Observo a varanda, três andares, no máximo conseguiria ficar aleijado. Tentar se matar e fracassar é uma das coisas mais patéticas do universo, a outra são as coisas que dizemos quando estamos amando. Ou seja, eu estava próximo de ser o maior patético do universo. Crise de gente branca é deplorável. Decido dar uma volta pelo meu bairro, Catolé, e vejo o quanto cresceu. Agora tem prédios onde havia barro, tudo desenvolve, cresce dentro do ecossistema das moradias humanas, prolifera feito barata e não existe remédio que as extermine. Agora é obra diariamente, gritos de pedreiro, assovios, movimento, tudo indo para frente. Agora é imobiliária, martelo, trator, pastilhas, argamassa, base, mão, capacete, madeira, capital, investimento, e só sei que tudo mudou. As coisas evoluem, os corpos não. Movimento é vida.
TRECHO 5
O idoso disse que quando o pai foi encontrado morto, a cidade passou por um momento de horror. A filha do prefeito estava grávida e, quando foi parir, teve uma criança sem cabeça e braço. O bebê nasceu vivo, chorava, ria, vivia: ninguém sabia como, mas era possível escutar seu choro reverberando por toda a cidade; os médicos tentaram encontrar os membros dentro da vagina da mulher, mas não havia nada, literalmente nada; o bebê sem cabeça e braço chorava sem parar, assombrando a todos da cidade. Até que o marido da mulher matou o filho e foi preso. Cinco dias depois, o marido foi encontrado em sua cela transformado em um bode vermelho: os policiais o mataram e jogaram a carcaça do animal no rio; dois dias depois, o rio estava vermelho; as plantações deixaram de crescer; os alimentos apodreceram; chovia pregos diariamente; a maioria da população se mudou para a capital, e os que ficaram tiveram que passar por uma temporada terrível e escassa de comida, pois tudo apodrecia. Os moradores das cabanas enlouqueceram e muitos se mataram e outros imploravam ajuda a Deus. Todos os bebês nascidos neste período vinham com alguma deficiência, a maioria nascia com demência ou com alguma parte do corpo faltando. Bebês decapitados e insanos foram se infestando pela cidade de Tigre; maridos bodes, mulheres perdendo os dentes e se tornando ninfomaníacas, bandidos se transformando em ratos, chuvas ácidas toda quinta-feira e eventuais terremotos e trovões de sangue; a maldição cessou quando a mansão caiu no Delta do Rio Paraná; o idoso não sabe a data em que isso aconteceu, perguntei o ano ao menos, mas ele virou as costas e pediu para eu esquecer essas coisas: a família di Paula viveu em todos os séculos, dias, anos, não tem um dia para isso, só há esquecimento e é o que se deve fazer, ele disse em castelhano e fechou a porta envelhecida da sua casa. Manuel di Paula carrega séculos de trevas em suas costas, uma maldição familiar, uma herança que o aterroriza até hoje. E também aterroriza a todos nós que aqui resistimos e escrevemos o que restou do todo.