Projeto de poder da esquerda francesa passa pelo assassinato da reputação de François Fillon
22 fevereiro 2017 às 15h46
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Ex-primeiro ministro e deputado apoiado pelos Republicanos é o alvo a ser abatido. O jogo já começou e um escândalo financeiro veio à tona. Veremos se funcionará
Frank Wan
Especial para o Jornal Opção
As eleições presidenciais francesas avizinham-se e há muita gente que até perde o fôlego, tamanha a tensão: muita coisa está em jogo. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, acontecimento tido por muitos analistas como “anormal” e com graves repercussões em diversos níveis, vai ser importante apenas dentro dos EUA e na relação dos mesmos com o resto do mundo? Ou, muito mais grave: vai ser o início de um dominó imprevisível pelo mundo afora? É possível isolar o fenômeno Trump?
As presidenciais francesas são as primeiras eleições num país centro-europeu com graves repercussões no futuro próximo.
Os olhos viram-se todos para Marine Le Pen, a filha do famoso Jean-Marie Le Pen, o homem mais à direita do espectro político francês. Sob certos aspectos é a continuadora de seu pai, mas, cada vez mais, em mais áreas, afasta-se quer dos métodos quer do discurso político a que ele nos habituou. Talvez seja bom recordar que a Frente Nacional, partido de suporte, tem ideias pro-fascistas (ou mesmo fascistas) e segue defendendo teses negacionistas da Segunda Guerra Mundial.
As apostas seguem altas no nome de Emmanuel Macron, ex-ministro da Economia e qualificado como “Independente” — seja lá o que isso signifique nestes tempos de conceitos políticos brumosos — e, ainda à esquerda seguem-se outros nomes como seja o de Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon.
O labirinto de candidatos é gigantesco com misturas heterogéneas de origens e apoios, mas, como sempre, o tempo esclarecerá todas as coisas e estes muitos nomes e apoios acabarão por se fundirem à medida que forem vendo as suas reais possibilidades.
Conviria à esquerda que Le Pen fosse a candidata para o segundo turno, pois poderiam assim agitar todas as bandeiras que ainda estão desfraldadas da recente eleição de Trump e aproveitariam a carona do histerismo midiático para o lançar tudo sobre a candidata de coloração fascista, com a gigantesca vantagem de ainda se poder atribuir qualquer peso da direita extrema europeia a Trump. Trump passaria a ser culpado até do fato de o Sol ter nascido de manhã — a mídia gosta disso e as redes sociais também se alimentam de figuras que se possam odiar sem grande esforço de pensamento.
Nesta equação da esquerda, o grande problema é François Fillon.
Fillon é um girondino clássico, antigo primeiro ministro e deputado apoiado pelos Republicanos (Les Républicains). Um homem que está longe de ideologias xenófobas, revisionismos históricos ou qualquer outro extremismo, um homem sério que veio para ganhar e está longe do perfil histriônico de Trump.
Para muita gente, de interesses dúbios, este homem, obviamente, tem que ser abatido. Como se abate um candidato? Nos EUA, com algum escândalo sexual de última hora e, no moderno manual de caça às bruxas, na Europa, através de escândalos financeiros que tomam sempre o título diabólico de “corrupção”. As acusações tomam a forma habitual deste tipo de circo: ter recebido 21 mil euros dos Fundos Públicos do Senado entre 2005 e 2007 (soma irrisória face ao que ganha um antigo primeiro ministro e qualquer quadro superior francês e outras acusações que, materialmente, não são relevantes).
A partir do “Escândalo Fillon” (Affaire Fillon), todos os noticiários abrem com o assunto, todos os jornais fazem dele a primeira página. Neste momento, na última conferência que Fillon deu foram colocadas 87 perguntas, das quais 83 foram sobre o “escândalo” financeiro. Estamos, portanto, perante um “assassinato político-midiático”, ou um “assassinato de reputação”.
Fillon reage e passa ao ataque: denuncia os “comunistas enrustidos”, denuncia as pseudo-agências de informação, etc. O tom do discurso muda e, na minha opinião, aparecem em Fillon um orador exímio e um pensador profundo. Liberto das malhas do diktat das campanhas, Fillon começa a voar livre e, apesar da máquina contra ele, os franceses percebem que estão perante um homem que não teme e não treme.
Obviamente que Fillon vai pagar um preço elevado por este processo, seja qual for o resultado. A tensão é tão grande que se cogita até mesmo a retirada da candidatura. Quem poderia substituir Fillon? A alternativa mais “pesada” seria Alain Juppé, o candidato que perdeu as primárias presidenciais da direita em 2016 para Fillon.
Nas eleições presidenciais francesas cada candidato deve ter um trunfo: o seu primeiro-ministro. Fillon, de alguma forma, não está bem acompanhado. Os chamados “pesos pesados” (poids lourd) não o veem acompanhando e não têm um bom “primeiro ministro” para apresentar.
Sem manobras de escândalos convenientes, Fillon pode obter o chamado “ingresso” (ticket) para o segundo turno e, se isso acontecer, tornaremos a falar no mais sério candidato da direita francesa, um homem na esteira dos velhos valores de respeitabilidade, honestidade, tolerância e liberalismo (num sentido próprio). Um homem que tem uma visão moderna sobre os novos desafios e que sabe que não pode recorrer a velhos conceitos, estratégias e instrumentos.
Voltarei a esta coluna para falar das candidaturas de Emmanuel Macron, Benoît Hamon e Jean-Luc Mélenchon. Todas elas com características politicamente muito interessantes, uma vez que, resolvem problemas político-ideológico modernos, sem mobilizar grandes conceitos de Teoria Política e dão respostas aos desafios econômicos sem grandes quadros de referências.
Sei que os leitores portugueses irão rir até às lágrimas, mas a grande referência da esquerda francesa é a coligação que governa Portugal.
Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, tradutor e professor.