Mais que uma “resposta” ao “1984”, de Orwell,  o livro de Burgess parte de observações pessoais, concretas, da vida política e social da Europa dos anos 1970, para mostrar a incapacidade do Ocidente de preservar a sua própria civilização 

Anthony Burgess é muito conhecido por seu clássico “Laranja Mecânica”. Mas em “1985”, o escritor inglês pintou um quadro “profético” sobre a Europa que está se tornado cada vez mais atual | Foto: Reprodução

Jayme Chaves
Especial para o Jornal Opção

Distopia é uma palavra da moda nos estudos culturais. Ca­co­topia, uma palavra esquecida. O escritor britânico Anthony Burgess preferia esta última, por acreditar que ela evocava coisas ainda piores. Imagino que agora, no centenário de seu nascimento, seu livro mais famoso – que também é uma das mais famosas cacotopias da literatura – “Laranja Mecânica”, voltará a despertar alguma atenção. Mas não causará nenhuma surpresa se ignorarem quase por completo a sua outra cacotopia, escrita em 1978, e que pretendia ser, ao mesmo tempo, uma análise, uma refutação, e uma alternativa à mais famosa de todas as distopias. Estamos falando, evidentemente, de “1984”. Ou melhor, de “1985”.

Pois é exatamente “1985” (L&PM, Porto Ale­gre, n/d. 256 p. Tradução de João Maia Neto e Júlia Tettamanzy) o título do livro de Bur­gess. Publicado no Brasil em 1980, e fora de catálogo há muito tempo – como, aliás, to­da a obra traduzida de Burgess, com exceção justamente de “Laranja Mecânica” (Aleph, São Paulo, 2012, 342 p. Tradução de Fábio Fernandes) – sua estrutura é bastante engenhosa: as primeiras cem páginas, divididas em nove capítulos, constituem a Primeira Par­te, de caráter não-ficcional. Ou quase. A Se­gunda Parte é o romance propriamente dito, seguida de mais um ensaio, este de caráter linguístico, e um “Epílogo” não-ficcional. Ou quase.

Burgess pergunta-se, em “1985”, se poderia haver de fato uma ditadura tal como descrita em “1984”, de G. Orwell

É difícil resumir, dentro das limitações deste artigo, a enorme gama de assuntos abordados nos ensaios. É como se 1985 fosse uma súmula de todos os temas abordados por Burgess em seus livros. Da filosofia à política, da sociologia à análise comportamental, da história à literatura, tudo é comentado tendo como base a experiência pessoal do autor, fundamental para submeter determinadas abstrações filosóficas e políticas ao teste do common sense. A pergunta que Burgess tenta responder ao longo do livro é: seria possível uma ditadura totalitária tal qual George Orwell concebeu em “1984”? Burgess não tinha nenhuma dúvida de que as liberdades individuais estavam – e estão – em permanente risco. A questão era como elas seriam suprimidas. Não surpreende que o livro tenha sido escrito em Mônaco, durante o longo autoexílio do casal Burgess no final dos anos de 1960, motivado pelos absurdos impostos ingleses na época – cerca de 90% da renda do casal.

O primeiro capítulo, “Catecismo”, é uma ex­planação sucinta, em forma de diálogo, da sociedade futura tal como descrita por Orwell em seu romance. No segundo, “Inten­ções”, o autor declara o propósito de entender as origens do pesadelo de Orwell, seus erros e acertos, “e criar um quadro alternativo para os rumos que a década de 70 parece estar tomando” (p. 19)

O terceiro capítulo, “1948: Entrevista com um Velho”, é uma falsa entrevista concedida por Burgess a um interlocutor imaginário, onde ele defende a ideia, que ainda nos soa espantosa, de que 1984 é, na verdade, ­um livro cômico, “uma transposição cômica de Londres no fim da Segunda Guerra” (p. 21). Burgess tece paralelos entre vários eventos no livro com aspectos da vida social na Londres de 1948. No entender de Burgess, Orwell não estava prevendo o futuro, mas descrevendo o presente, o seu presente em 1948.

[relacionadas artigos=”89658″]

Os capítulos seguintes são cinco pequenos ensaios e outra falsa entrevista, onde são abordados vários aspectos da sociedade distópica criada por Orwell: em “Reflexões sobre o Ingsoc”, Burgess analisa a Novi­lín­gua e o duplipensar, bem como sua aplicabilidade no mundo real; em “Cacotopia”, co­mo o próprio nome já diz, Burgess se apropria de um termo utilizado por Jeremy Ben­tham em 1818, para caracterizar o universo criado por Orwell; “Estado e Superestado” é mais uma entrevista com o interlocutor imaginário; “Os Filhos de Bakunin” trata da propensão da juventude para o anarquismo; “Laranjas Mecânicas” é uma visão retrospectiva de seu livro mais famoso; e “A Morte do Amor” trata da relação entre os protagonistas de 1984, Julia e Winston Smith.

A Segunda Parte é o romance propriamente dito, “1985”. Estamos em TUK (The United Kingdom), ou TUC (Trade Union Congress). TUK = TUC, logo o Reino Unido passa a ser conhecido, jocosamente, como Tuclândia. Os sindicatos se tornaram mais poderosos do que o próprio Estado, a ponto de paralisar qualquer serviço, a qualquer momento, e por qualquer motivo. Trabalhar sem ser sindicalizado é proibido. Os sindicatos controlam tudo, inclusive a educação. O estudo de História foi reduzido ao essencial, ou seja, à História do Movi­mento Sindicalista. E o ensino da língua inglesa resume-se ao ensino de um modelo geral de linguagem proletária, o IO, Inglês Operário – objeto de estudo do ensaio linguístico no final do livro. O IO se fundamenta em uma única regra: o uso. “Tu foi é empregado por 85% da população; logo, tu foi é o certo” (p. 125).

Parece familiar?

Paralela ao aumento do poder dos sindicatos, há também a crescente – trocadilho inevitável – expansão islâmica. Os muçulmanos, graças ao dinheiro do petróleo, se tornam proprietários de grande parte das empresas e imóveis. Controlam progressivamente as fábricas de bebidas alcoólicas, em um óbvio movimento no sentido de aboli-las. A proletarização do Estado através do crescimento dos movimentos sindicais provoca uma diminuição da importância e da influência da religião cristã na sociedade, o que abre cada vez mais espaço para a infiltração dos seguidores de Maomé. De fato, o romance abre com as seguintes linhas: “Era a semana antes do Natal, meio-dia de uma segunda-feira tranquila e abafada e os muezzins da zona oeste de Londres anunciavam, com suas vozes em falsete, que não havia outro Deus, senão Alá: La ilaha illa’lah. La ilaha illa’lah” (p. 105).

O contraste entre a época natalina e o canto dos muezzins resume, admiravelmente, logo no início, o espírito da Inglaterra de 1985 segundo Burgess: um país laicizado, descristianizado, incapaz de se opor à expansão do Islã.

É neste cenário que se desenrola a via crucis do protagonista, Bev Jones, um opositor de consciência. Ex-professor de história, que pede demissão de seu cargo após o sucateamento da disciplina e passa a trabalhar como confeiteiro em uma fábrica de chocolates, sua vida desmorona após a morte da esposa, queimada durante um incêndio criminoso no hospital onde estava internada. Os bombeiros, em greve, se recusaram a combater as chamas. Quando Jones decide furar a greve de sua própria classe, é demitido do emprego e do sindicato. Im­pos­sibilitado de conseguir outro emprego, junta-se a marginais de rua, vivendo de pequenos furtos e de aulas clandestinas para grupos de delinquentes que se comunicam em latim, e sonham com a volta da alta cultura nos currículos escolares. Preso por tentativa de roubo em um supermercado, é enviado para uma instituição de reeducação.

Incapaz de se en­quadrar no sistema, é solto e então se une a um grupo de oposição, os Bretões Li­vres, que se organiza como uma força pa­ramilitar com o propósito inicial de garantir os serviços essenciais durante uma greve geral. O problema é que o gru­po, na verdade, é financiado pelos árabes, e sua verdadeira intenção é derrubar o governo e instaurar um governo islâmico no Reino Unido. Os Bretões Livres, desnecessário dizer, não eram livres.

O golpe fracassa. Im­pos­si­bilitado de trabalhar por se recusar a pertencer a um sindicato, Jones volta a sua vida de furtos, é preso novamente e encaminhado para um asilo de doentes mentais. Neste asilo, perde progressivamente a noção do tempo. A realidade da vida fora do asilo deixa de existir. Esparsas informações sobre um suposto avanço do Islã chegam de forma fragmentada e de impossível averiguação. Os anos passam. Ele envelhece. Tenta manter sua lucidez ensinando história para os internos, mas quando procura fazer alguma conexão do passado com o presente, não consegue. O presente torna-se incognoscível. O passado, aos poucos, vai sendo esquecido. Os “alunos” se desinteressam. Seu último gesto é atirar-se contra a cerca eletrificada do asilo, pondo fim a sua vida.

Embora seja impossível, para o propósito deste artigo, dar conta de todos os detalhes do mundo cacotópico criado por Burgess, alguns pontos devem ser sublinhados, para que o leitor brasileiro se indague da pertinência, ou não, da visão “profética” do autor. E, mais importante: da conveniência, ou não, de correr para os sebos de sua cidade e procurar o livro.

“Dever é coisa do passado. Hoje só existem direitos. A Comissão dos Direitos Humanos: isso faz sentido. Mas uma Comissão dos Deveres Humanos seria uma idiotice, não é mes­mo?” (p. 117). Isso é o que Bev Jones ouve do secretário-geral de seu sindicato, quando ar­gu­menta que os bom­­­beiros em greve eram tão culpados pela morte da esposa quanto aqueles que provocaram o incêndio, pois não haviam cumprido o seu dever. No mesmo capítulo, intitulado “Tuclândia, a Admirável”, o secretário-geral oferece cigarros a Jones: “O maço de cigarros tinha um desenho que era uma reprodução bastante exata, embora em tamanho reduzido, de um pulmão devorado pelo câncer. Ordens do Ministério da Saúde, já que simples avisos verbais nunca tinham adiantado muito”. (p. 116)

O primeiro país a adotar as advertências ilustradas em maços de cigarros foi o Canadá, em 2000. O Brasil foi o segundo, em 2002. Burgess publicou o livro em 1978. Nada mal para quem disse, no “Epílogo”, que é “sempre tolice escrever uma obra de ficção sobre um futuro que seus leitores logo poderão conferir pessoalmente” (p. 243).

A questão do domínio islâmico na Inglaterra existe desde que o historiador Edward Gibbon, na segunda parte do capítulo cinquenta e dois do quinto volume de sua famosa obra “Declínio e Queda do Império Romano” (1788), especulou, em um exercício pioneiro de história contrafactual, o que poderia acontecer com a Europa se Carlos Martel tivesse sido derrotado na Batalha de Poitiers, no ano de 732. Uma de suas visões é a de ingleses estudando o Corão nos minaretes de Oxford. Burgess, no “Epílogo”, menciona o último romance de G.K.Chesterton, “The Flying Inn”, publicado em 1914, no qual ele descrevia uma Inglaterra convertida ao islamismo, onde as bebidas alcoólicas seriam proibidas (p. 250). E o próprio Burgess tratou da questão do Islã em vários romances, dois dos quais editados no Brasil: “Sinfonia Napoleão” (Artenova, Rio de Janeiro, 1974, 351 p.) e “Poderes Terrenos” (Record, Rio de Janeiro, 1980, 605 p.)

“1985”, de Burgess, tem importantes pontos de convergência com “Submissão”, de Michel Houellebecq

Neste ponto, é impossível não atravessar o Canal da Mancha e pensar no recente best-seller de Michel Houellebecq, “Submissão” (Objetiva, Rio de Janeiro, 2015, 253 pg. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar). Houellebecq situa o seu romance em 2020, ano em que a Fraternidade Muçulmana vence as eleições na França e começa a implantar um governo islâmico. Burgess, no epílogo de 1985, sugere a concretização da distopia de Chesterton em 2100. Mas as datas não são relevantes. As datas, no caso, como salienta Burgess na página 18, funcionam como metáforas. Mesmo que hoje, em 2017, nós saibamos que o estado totalitário absoluto imaginado por Orwell não aconteceu, o ano de 1984 permanece uma poderosa metáfora para os nossos piores pesadelos.

O que é relevante é que tanto Burgess como Houellebecq partem de suas observações pessoais, concretas, da vida política e social da Europa, para mostrar que este cenário é perfeitamente plausível. E ambos demonstram que a causa principal será a incapacidade do Ocidente de preservar a sua própria civilização. Como diz Burgess, “a natureza superior abomina o supervácuo. Com a morte do cristianismo institucionalizado, crescerá o poder do Islã” (p. 250). E em determinado momento de “1985”, o Coronel Lawrence, comandante da milícia dos Bretões Livres, diz para Bev Jones: “A única maneira de resolver os problemas da Inglaterra, Sr. Jones, é promovendo o retorno dos velhos conceitos de responsabilidade, lealdade, religião. Em uma palavra, o retorno a Deus. E quem nos levará até ele? Os cristãos? O cristianismo acabou com o Concílio Vaticano II. Os judeus? Eles cultuam uma divindade tribal. (…) Eu não sonhava com a revolução islâmica na Inglaterra: pensava antes numa conversão lenta, uma infiltração islâmica apoiada nas suas riquezas e influência moral” (p. 211). Compare-se este trecho com a fala de Robert Rediger, reitor da Sorbonne, em Submissão: “Essa Europa que estava no auge da civilização humana realmente se suicidou, no espaço de alguns decênios (…) Houve em toda a Europa os movimentos anarquistas e niilistas, o apelo à violência, a negação de qualquer lei moral. E depois, alguns anos mais tarde, tudo terminou por essa loucura injustificável da Primeira Guerra Mundial. Freud não se en­ganou, Thomas Mann também não: se a França e a Alemanha, as duas nações mais avançadas, mais civilizadas do mundo, eram capazes de se entregar a essa carnificina insensata, então era porque a Europa estava morta (…) E no outro dia — segunda-feira de Páscoa —, em presença de umas dez testemunhas, pronunciei a fórmula ritual da conversão ao islã” (p. 217). A conversão ao Islã durante a maior celebração do cristianismo é uma cena análoga a do canto dos muezzins na semana do Natal.

Rediger diz, posteriormente, que “o auge da felicidade humana reside na submissão mais absoluta” (p. 219); o psiquiatra do asilo onde Bev Jones é encarcerado proclama que “A loucura é definida como a rejeição do ethos da maioria” (p. 229). Não há espaço, sob um estado laico ou sob um estado teocrático, para oposição de consciência. Como diz Burgess nas linhas finais de “1985”, devemos ter cuidado.
Temos que ter muito cuidado. l

Jayme Chaves é doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)