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Dostoiévski e a perspectiva redentora

A escrita do autor russo caminha na borda do abismo. Joga-se em suas profundezas e, lá do fundo da lama, onde apenas os heróis não são completamente maculados pela sujeira, como afirmou o Homem do Subsolo, ele se levanta em ímpetos de fervor subindo novamente para as paragens seguras

“A verdade desestabilizada” em Jorge Luis Borges (2): A cegueira como um “lento crepúsculo”

Vivendo na “umbrosa noite do silêncio” de sua cegueira, o leitor-escritor depara-se com as sombras, mas não decai para a escuridão a névoa o recobre para que “o sol interior” ilumine o leitor  [caption id="attachment_108303" align="alignleft" width="620"] Jorge Luis Borges[/caption] A cegueira de Borges, tal como em Homero, Milton, Joyce – e outros escritores –, pode ter sido decisiva para a produção diferenciada do escritor argentino que se fez conhecido e reconhecido no cânone da literatura ocidental. Harold Bloom chega a dizer que Jorge Luis Borges foi para o conto “a maior influência sobre o gênero (“short stories”) na segunda metade do século XX ”. E assim, o conto – conclui Bloom: “agora tende a ser tchekhoviano ou borgiano e, nalguns casos, influenciado por ambos”. Não inferior seria a importância e a influência de Borges na Poesia. O poeta, o ensaísta, o palestrante, o homem público, para quem a cegueira não chegou como um raio, um acidente inusitado, mas como uma doença progressiva, como um “lento entardecer”; variante pessoal significativa, a cegueira em Borges teve uma dimensão existencial que o coloca em paz consigo mesmo. Sua cegueira progressiva foi como um lento crepúsculo, fazendo com que Borges se tornasse mais compreensivo e com pequeno grau de revolta (e dor) que poderiam ter-lhe afetado mais decisivamente se vítima de uma cegueira gerada, por exemplo, por um acidente. Ao contrário, a cegueira o apazigua, a ponto de avaliá-la como um dom. Deus teria, segundo o poeta e contista argentino, trazido ao mesmo tempo os livros e as sombras, mas, ao enfrentar (com valentia) a cegueira, esta “não foi um desespero nem tampouco uma infelicidade total”. E mais: Borges tornou-se um poeta mais “musical”, trocando o mundo visível pelo mundo auditivo. Não ter sentido a cegueira como uma punição, deu a Borges a vantagem do que chama de “ter adotado um novo modo de viver” (uma espécie de dom) e se inscreve entre escritores ilustres que ficaram cegos, como Homero, Milton, William Prescott, Rafael Baralt e James Joyce – que, cegos ou quase cegos, geraram obras imortais na literatura. Ao assumir a diretoria da Biblioteca Nacional da Argentina, Borges o fez como quem segue o Destino, pois era o terceiro dos presidentes cegos da entidade, depois de José Mármol e Paul Groussac. Bastou a Borges que a coincidência de sua nomeação formasse uma tríade de cegos, para que enxergasse no evento uma conotação divina ou teológica – “se dois é uma mera coincidência, três é uma confirmação  —  e confirmação de ordem ternária, quer dizer, divina ou teológica[i]”. De fato, foram cegos José Mármol(1817-1871) – poeta, lembrado sobretudo por “Amália: um romance argentino”; Groussac, que, por sua vez, nasceu na França (1848) e faleceu em Buenos Aires (1929) – cujas obras principais, originam-se de seu ofício de professor e bibliotecário (“La Biblioteca” e “Annales”), além dos estudos sobre a história da Argentina. “Devo à cegueira muitos versos e o aprendizado de idiomas” – diz Borges numa conferência que ficou famosa (“La Ceguera”) e que ainda pode ser vista na rede, através do YouTube. Além disso, há “Elogio da Sombra”, um livro que é como uma evidência objetiva de que o cego está apaziguado com o escritor e vice-versa. Um cego[ii] Não sei qual é a face que me fita Quando observo a face de algum espelho; No seu reflexo espreita-me esse velho Com ira muda, fatigada, aflita. Lento na sombra, com as mãos exploro Meus invisíveis traços. O mais belo Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo Que é já de cinza ou é ainda de ouro. Repito que perdi unicamente A superfície sempre vã das coisas. O consolo é de Milton e é valente, Mas eu penso nas letras e nas rosas, Penso que se pudesse ver a cara Saberia quem sou na tarde rara. Já se sabe que o autor argentino tinha na biblioteca sua visão pessoal do paraíso. Aos 70 anos, o autor de “Ficções” escreve um poema exemplar sobre sua relação com os livros e os dons. Sabendo que não poderia senão reconhecer as lombadas e sentir-lhes a presença – a quantidade de livros de uma biblioteca parecia a Borges algo sensível –, ao andar pelo espaço das estantes, conforme o comprovou em experiências de viagens ao exterior. Mircea Eliade bem pode subsidiar o leitor a melhor traduzir a experiência borgeana de produzir arte escrita – contos e poemas. Em “Imagens e Símbolos[iii]” ele afirma que “o pensamento simbólico não é domínio exclusivo da criança, do poeta ou do desequilibrado: ele é consubstancial ao ser humano: precede a linguagem e a razão discursiva. O símbolo revela certos aspetos da realidade — os mais profundos — que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da ´psiquê´; eles respondem a uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades do ser”. [...] Sobre o homem decidido e cego que toma esse caminho, ocorre o que Eliade definiu assim: “ Fugindo à sua historicidade o homem não abdica da sua qualidade de ser humano para se perder na «animalidade»; ele reencontra a linguagem e por vezes a experiência de um «paraíso perdido». Os sonhos, os sonhos acordados, as imagens das suas nostalgias, dos seus desejos, dos seus entusiasmos, etc., são outras tantas forças que projetam o ser humano historicamente condicionado num mundo espiritual infinitamente mais rico do que o mundo fechado do seu «momento histórico». [caption id="attachment_108304" align="alignleft" width="620"] Borges na Biblioteca Nacional da Argentina[/caption] Borges foi um desses seres que fez um voo importante para fora do seu “momento histórico” e se dizia pouco preocupado com as datas, pois “as circunstâncias das datas não importam – só os fatos como os recordamos” e a partir desse olhar de sobrevoo sobre a história do Homem, um argentino do século XX, orgulhoso descendente de ingleses, tarde veio a estudar o idioma anglo-saxão e a poesia de seus ancestrais. Ainda firmado em Eliade, que cita o pensador francês Gaston Bachelard, garantindo que a criação baseia-se sobretudo na poesia e nos sonhos e, subsidiariamente, no folclore, poderíamos facilmente mostrar como sonhos e imagens poéticas prolongam os simbolismos sagrados e as mitologias arcaicas. Indiferente à galhofa, ou ao esgar de quem quer que fosse, ele era capaz de sair gritando junto com suas alunas e colegas de estudo do idioma anglo-saxão: “Lundeburgh/Londresburgo/Romaburgh/Romaburgo” – para significar que “a alta luz de Roma havia caído sobre as ilhas boreais de seus ancestrais” e esta luz era a mesma que povoava seus sonhos e seus escritos naquele momento. O próprio Borges já afirmara no “Livro dos Sonhos” (1976) que “Coleridge deixara escrito que as imagens da vigília inspiram sentimentos, ao passo que nos sonhos os sentimentos inspiram as imagens (...) Se um tigre entrasse neste quarto, sentiríamos medo; se sentimentos medo no sonho, engendramos um tigre...” (...) Junho, 1968[iv] Na tarde de ouro ou numa serenidade cujo símbolo poderia ser a tarde de ouro, o homem dispõe os livros nas prateleiras que aguardam e sente o pergaminho, o couro, a tela e o prazer que dão a previsão de um hábito e o estabelecimento de uma ordem. Stevenson e outro escocês, Andrew Lang, reatarão aqui, magicamente, a lenta discussão que interromperam os mares e a morte e a Reyes não desagradará decerto a proximidade de Virgílio. (Ordenar bibliotecas é exercer, de modo silencioso e modesto, a arte da crítica.) O homem, que está cego, sabe que já não poderá decifrar os belos volumes que manuseia e que não o ajudarão a escrever o livro que o justificará perante os outros, mas na tarde que é talvez de ouro sorri perante o curioso destino e sente essa felicidade peculiar das velhas coisas amadas. Sobre a “arte antiga e rudimentar da leitura”, poucos dela se aproximaram com tal paixão, criando sobre esta uma mitologia tão notável como a deste escritor argentino. A leitura foi para Borges, em dado momento, uma oitiva. Alguém lia para ele seus livros prediletos, levando-o a “reler”  textos antigos, por intermédio de leituras feitas pela mãe ou por sua secretária – até Alberto Manguel leu para el... Assim, o leitor-ouvinte passava por uma espécie de sonho e de aprendizado dantesco do real sentido das palavras. Ler uma a uma todas as palavras, como se deve, obrigatoriamente, fazer diante de um idioma desconhecido que se está estudando, tentando dominar, ler e reler no idioma nativo, mas sempre entender as nuances do que se leu. Esta parece ser a fórmula mágica do “fingidor” Borges que, segundo João Alexandre Barbosa[v], nos leva sempre a ler Borges pensando em outros escritores, fazendo analogias com outros textos (texto chama texto que chama texto); como se ler um texto fosse ler todos ou estar lendo outros textos, com ironia, ele “transfere para o leitor uma carga paródica e de fingimento” – aquela “verdade desestabilizada” de que falei na primeira parte deste ensaio. Ou, como sugere Bloom, ler Borges é como adentrar a “um labirinto vivo da literatura imaginativa”, tanto nos contos, quanto nos poemas, guiados pela mão de um gnóstico ascético e leitor voraz. Destarte, Borges analisa uma quadra do soneto do Quixote (de Lotário para Clóris), aqui na tradução dos viscondes de Castilho e Azevedo. “Da umbrosa noite no silêncio, quando Meigo sono refaz os mais viventes, Só eu vou meus martírios inclementes Aos céus e à minha Clóris numerando”. Vivendo na “umbrosa noite do silêncio” de sua cegueira, o leitor-escritor depara-se com as sombras, mas não decai para a escuridão – a névoa o recobre para que “o sol interior” ilumine o leitor. Da análise feita para o Quixote não me ocuparei agora, mas asseguro que o leitor comum ficará sempre em dívida com o crítico, tanto quanto com o escritor Borges, pelos desafios que nos propõe, pelas inumeráveis cifras que ele nos faz descobrir, das leituras novas que são propostas, pelos enigmas a dirimir. Há, no entanto, uma medida de espanto que o autor nos causa por ter lido infinitamente mais e tão mais profundamente do que nós – pelo menos no caso deste cronista –, em que sempre nos surpreende quando se sabe que, ao praticar a arte da escrita, este argentino-universal passou em muito a média de leitura de nosso tempo, seja pelo tempo de meditação e solidão que a cegueira o doou, seja pelo Amor, este, sim, ingrediente fundamental aos que praticam a literatura, tanto como autor, como leitor apaixonado. Devo a Borges o conhecimento de Bioy Casares, Chesterton, Blake, De Quincey, Léon Bloy e tantos outros. Devo-lhe as melhores interpretações do Quixote, de Pascal, de Carlyle, de Coleridge, de J.W. Dunne, de Keats e tantos outros bons escritores. Sua aproximação amorosa dessa coisa “leviana, calada e sagrada” que Oscar Wilde chamava Poesia lhe permitiu seguir à risca o que Dante (Canto V, Paraíso) chamava de o verdadeiro aprendizado: ter de memória inúmeros textos amados – seja no idioma nativo (espanhol), em inglês (anglo-saxão), francês e alemão. Dante já dissera: “Abre ora a mente pra o que te elucido, /e o guarda, que não faz erudição, /sem o reter, ter somente entendido” . A lição, como sabemos, vem de São Tomás de Aquino, para quem só o Amor pode expandir a capacidade da memória, pois esta é uma potência intelectiva da alma. Desse leitor ideal, retiro de “Elogio da Sombra”, esses versos que testemunham que Borges tomou a cegueira como um dom e continuou lendo e meditando, sonhando acordado. Um leitor exemplar. Borges é a figura d´O leitor por excelência, entre tantos. Um leitor Que outros se jactem das páginas que escreveram; a mim me orgulham as que li. Não fui um filólogo, não pesquisei as declinações, os modos, a laboriosa mutação das letras, o de que se endurece em te, a equivalência do ge e do ka, mas ao longo de meus anos tenho professado a paixão da linguagem. Minhas noites estão cheias de Virgílio; ter sabido e ter esquecido o latim é uma possessão, porque o esquecimento é uma das formas da memória, seu impreciso porão, o outro lado secreto da moeda. Quando em meus olhos se apagaram as vãs aparências amadas, os rostos e a página, entreguei-me ao estudo da linguagem de ferro que usaram meus antepassados para cantar espadas e solidões, e agora, através de sete séculos, desde a Última Tule, tua voz me alcança, Snorri Sturluson. O jovem, ante o livro, impõe-se uma disciplina precisa e o faz em busca de um conhecimento preciso; em minha idade, toda tarefa é uma aventura que limita com a noite. Não acabarei de decifrar as antigas línguas do Norte, não afundarei as mãos ávidas no ouro de Sigurd; a tarefa que empreendo é ilimitada e há de acompanhar-me até o fim, não menos misteriosa que o universo e que eu, o aprendiz. — “Alles Nähe werde fern” (Tudo que é próximo se afasta) – disse J.W. Goethe. Borges nos ensina que, tal como o sol se põe ao fim do dia, na vida tudo pode se esmaecer, fugir, afastar-se... o que está próximo bem pode daqui a pouco desaparecer; como este ensaio que se finda; como a vida do maior escritor argentino do século XX – um ser que soube “tirar da circunstância miserável de nossa vida, coisas eternas”, ele que se afastou deixando-nos coisas que desejamos sejam eternas – diante dele, o melhor é descer das estantes as formas em celulose chamadas livros, que ainda podemos ler sem temor, enquanto nossos olhos o permitem. NOTAS [i] Citado no artigo de Isabella Lígia Moraes: “A noite escura da alma: misticismo e cegueira em John Milton e Jorge Luis Borges”, cf. link da revista Capitu online, consultado em 16/10/2017: https://revistacapitu.com.br/a-noite-escura-da-alma-misticismo-e-cegueira-em-john-milton-e-jorge-luis-borges-8831a34a34f4 [ii] Tradução de Fernando Pinto do Amaral, em “Obras Completas III”, 1975-1985, Editorial Teorema, 1998. [iii] ELIADE, Mircea. “Imagens e símbolos”, Editorial Arcadia, 1979, p. [iv] "Elogio da sombra" (1969) - tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques. [v] BARBOSA, João Alexandre. “Alguma crítica”, Ateliê Editorial, 2002.

Os “Cinco Magníficos” de Cambridge: comunistas, homossexuais e espiões – parte 1

O quadro em que tudo se desenrola é a ascensão e solidificação no poder de Hitler e Mussolini. De forma simplificada, esses espiões viam-se a si mesmos como tendo sido recrutados pelos soviéticos para “lutar contra o fascismo ascendente”. Obviamente que trair a pátria, nesse processo, para eles, era um mero detalhe [caption id="attachment_108211" align="alignleft" width="620"] Os cinco espiões de Cambridge[/caption] Frank Wan Especial para o Jornal Opção Conhecidos sob diversas nomenclaturas, os "Cambridge five" (Os cinco de Cambridge), Kim Philby, Donald Duart Maclean, Guy Burgess, Anthony Blunt e John Cairncross, é um grupo  de espiões duplos que pertenceram ao topo da hierarquia dos serviços secretos de Inglaterra. São o produto da mais alta educação que a Inglaterra da época podia fornecer, todos pertenciam à elite social e profissional e alguns são filhos da nobreza inglesa. Entre 1940 e 1951 tiveram acesso às informações mais sensíveis do estado inglês. Entraram, todos juntos, num jogo de vai-vem extremamente perigoso em que entregavam segredos à União Soviética e forneciam informações para o estado inglês. Na Inglaterra, são conhecidos pelos “Cambridge Five” ou pelos “Cambridge Spy Ring”. O termo “Cambridge” aparece na nomenclatura porque foram todos recrutados pela União Soviética durante os anos que estiveram na University of Cambridge. Recrutados pela antiga NKVD e posterior KGB, aparecem nos relatórios e descrições em russo como os “Cinco magníficos”. Em torno deste tema consegue-se estabelecer alguns factos, mas quase tudo está envolto em camadas espessas  de mistérios: por um lado poder-se-ia pensar que Ióssif Stálin se beneficiou muito com as informações fornecidas, por outro, quando se vê as opções tomadas quer por Stálin, quer pela Inglaterra (e por outros), as informações que correram tiveram pouca influência sobre os acontecimentos – convém não esquecer que, no âmbito militar e político, nesta época, as informações que provinham dos serviços de inteligência não tinham o peso que ganhariam mais tarde, acreditava-se mais na força bruta das armas. O que aconteceu realmente? Qual a sucessão de acontecimentos? Como conseguiram as coisas mirabólicas que conseguiram? Que métodos utilizaram? O que realmente os motivou? Penso que nunca teremos respostas completas, mas não restam dúvidas que os “Cinco magníficos” ficam nos anais da história como uma das melhores histórias de espionagem. A arte nunca conseguirá imitar os sucessivos absurdos que compõem a vida. A história dos cinco está ligada a Cambridge e ao Partido Comunista Inglês. O Partido Comunista Inglês foi fundado em 1920 e tomou o nome de “Comunist Party of Great Britain”, resultou da fusão de pequenos partidos marxistas. Durante a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Vermelha, o partido angariou muitos apoios de muitas comissões, não era um partido de grandes dimensões e organização, como o francês ou italiano, mas estava muito implementado entre muitos setores da sociedade inglesa – de forma misteriosa, o marxismo sempre foi muito atractivo para muitos membros da “nobreza” e, claro, para os intelectuais. As eleições de 1924 tinham sido ganhas pelo Partido Trabalhista com Ramsay MacDonald que ficou no poder muito pouco tempo. Seguiram-se medidas de austeridade fortíssimas com violentos cortes orçamentais que vão dar lugar a uma Greve Geral de 1926. É neste ambiente que o economista inglês e agente soviético Maurice Dobb cria a primeira célula comunista em Cambridge. Todos sabiam que Dobb recrutava entre os alunos da faculdade alunos que mais tarde seriam agentes soviéticos.  Com o tempo e o agravamento da situação econômico-financeira  a célula cresceu,  o Crash de 1929 fez o efeito final sobre as mentes: o capitalismo estava falido como modelo econômico e o comunismo era a alternativa. Um por um, o grupo dos cinco vai acabar reunindo: Kim Philby (nome de código: Stanley), Donald Duart Maclean (Homer), Guy Burgess (Hicks), Anthony Blunt (Tony Jonhson) e John Cairncross (Liszt). O número cinco é mais simbólico que real: o famoso coronel do KGB Oleg Gordievsky, também ele agente dos Serviços de Inteligência ingleses, entre outros, forneceu listas diversas com nomes fictícios e reais. Todos os livros de Gordievsky são extremamente interessantes, basta lê-los sempre cum granus salis já que, no fim da vida, assegurou uma confortável posição para si e para a sua família colaborando  caninamente com a inteligência americana e inglesa. De uma forma elíptica, sem entrar em detalhes labirínticos  argumentativos de que , estou certo, estas mentes seriam capazes, todos concordavam que o “sistema capitalista” era impotente face à crise que estava instalada e que as democracias seriam esmagadas pelo fascismo crescente e que, já sei que alguns olhos se revirarão aqui, só a URSS seria capaz de parar esta avalanche fascista. Obviamente que este caldo é regado por doses maciças de idealismo de que os “acadêmicos” são sempre pródigos. Comecemos pelo princípio, portanto, por Arnold Deutsch. Por muitas fontes que se consultem é difícil perceber qual é a nacionalidade de Deutsch. Uma coisa é certa: era espião soviético e foi ele que recrutou Tim Philby dando início a todo o processo. Arnold Deutsch, e todo o processo inicial, estarão sempre desfocados pela bruma envolvente. Deutsch está ligado a Viena de Áustria e toda a elite inglesa da época(e até europeia) era atraída pelo ambiente filosófico e social que se vivia em Viena. Na verdade estava em curso uma espécie de Woodstock à europeia, uma revolução sexual mais ou menos controlada. Os cinco magníficos tinham uma visão “revolucionária”, não apenas política e social, mas também sexual. Vejamos as listas daquilo que erradamente , no meu tempo, se chamava “opções”: dois eram gays, Burgess e Blunt, Maclean era bissexual, Philby e Cairncross eram heterossexuais insaciáveis. Para quem tenha conhecido, por dentro, os ambientes de Cambridge e Oxford sabe que o termo “ring” traduz facilmente os elos que se estabelecem naqueles meios. No fundo e na prática, bastava recrutar um elemento que os outros capilarmente se juntariam. Sem entrar em detalhes históricos, o quadro em que tudo se desenrola é a ascensão e solidificação no poder de Hitler e Mussolini. De forma simplificada, os cinco magníficos viam-se a si mesmos como tendo sido recrutados pelos soviéticos para “lutar contra o fascismo ascendente”. Obviamente que trair a pátria, nesse processo, para eles, era um mero detalhe. Lendo exaustivamente as declarações, livros e relatos de todos vê-se coisas estonteantes: nunca algum se chamou a si mesmo de “soviético”!!! quando se lhes é perguntado qual o objetivo das suas ações todos respondem com o bordão da época “trabalhavam para a paz”... trabalhavam para a paz porque, por exemplo, viam-se “simplesmente” como inimigos de Adolf Hitler – o facto de, para lutar contra o ditador alemão, passarem informações a um regime totalitário era totalmente desvalorizado. (Continua) Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, professor e tradutor.

“Mad Men” e a derrocada do homem contemporâneo

A série representa a derrocada do homem enquanto sujeito contemporâneo. Ao nos contar a história de Draper, Weiner conta a história do sujeito humano em vias de se transformar em pós-moderno, nas bordas das grandes explosões políticas e socio-culturais que já vivemos

“A verdade desestabilizada” em Jorge Luis Borges (1)

O sentido da presença central de Borges neste texto é, pois, ressaltar o prazer da leitura que neste ano, para mim, se complementou em um presente trazido por um amigo, do Uruguai. O volume: “Inquisiciones. Otras inquisiciones". Pois a obra em português eu já a conhecia parcialmente [caption id="attachment_107796" align="aligncenter" width="620"] Jorge Luis Borges e sua mãe, Leonor Acevedo[/caption] O nome do argentino Jorge Luis Borges está inscrito na literatura universal como o de quem compôs uma obra desafiadora e complexa porque, principalmente, gerada a partir de sua vida em meio aos livros, donde deriva o emaranhado de cifras, referências e enigmas. Pouco teria Borges experimentado do mundo como paisagem exterior. Sua cegueira progressiva, iniciada na infância, agravou-se aos 38 anos e tornou-se completa aos 56 (tendo falecido aos 87), ficando o poeta impedido de cumprir a agenda de um homem de ação. “Como a maior parte de meus familiares haviam sido soldados, até o meu tio paterno que chegou a oficial da Marinha –, eu sabia que nunca poderia sê-lo e, muito cedo em minha vida, senti-me envergonhado de ser uma pessoa destinada aos livros e não à vida de ação” (Autobiografia) Conservador declarado, Borges não deve ser visto, no entanto, como militante do Partido Conservador (ao que chegou a se filiar), e, por conseguinte, desprezado pelos leitores de esquerda, não deve estar sujeito às análises sócio-políticas, mas sim às literárias. Ou, mais apropriado ainda: deve ser lido como são lidos Proust, Kafka, ou, como se deveria ler Coleridge e Léon Bloy como disse o amigo que na dedicatória do presente apresentou Borges como “uma civilização — mais do que um país [Argentina], talvez um império”. Adequado, pois o próprio Borges sentia-se cidadão do mundo e, não sem razão, o destino o levou a falecer em Genebra. Ora, se “somos versículos, palavras ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que existe no mundo; ou melhor dito: é o mundo...” (conforme Léon Bloy, citado pelo próprio Borges)ele, Borges, é um capítulo único e desafiador desse livro coletivo que se escreve com sofreguidão abaixo do Equador. Borges nasceu em 1899, embora para muitos, incluindo Carpeaux, valha a mentira que o jovem autor contara ao editor da revista “Nosotros”, Alfredo Bianchi: “nasci em 1900!” Tal mentira é leve para um escritor que falsificou histórias e fabricou uma miríade de lendas com o seu saber enciclopédico e seu humor peculiar, principalmente quando escrevendo em parceria com o amigo Bioy Casares (criando o pseudônimo de Bustos Domecq, escreveram “La leche cuajada de La Martona”, 1935). Esta iniciativa publicitária, tida como ação involuntária, serviu de ponto de partida à colaboração literária entre Borges e Bioy Casares, que levaria à publicação de contos, traduções, críticas de livros e à organização da coleção de contos policiais "El Séptimo Círculo". [caption id="attachment_107798" align="aligncenter" width="620"] Borges e seu amigo, o também escritor Adolfo Bioy Casares[/caption] Sim, Borges pode ter mentido, admitem os biógrafos Helft e Pauls, autores de uma interessante “biografia ilustrada” (“Nove ensaios ilustrados[i]”). É como se o velho bibliotecário dissesse, principalmente em “A história universal da infâmia”: “posso ter mentido, mas tudo que disse tem uma fonte e é nessa zona de verdade desestabilizada onde o pecado da mentira é mais abstrato e mais perturbador”. Ou, da fonte original: “a verdade não se diz; se delata, sempre parcialmente, naquilo que se diz”. Segundo Otto Maria Carpeaux, Borges passou rapidamente do “futurismo”, a poesia radical de Huidobro (1918), à criação de um sistema próprio de escrita. Para isso, Borges“integrou os elementos irracionalistas do criacionismo num sistema filosófico cuja tese principal é o caráter cíclico do Tempo e, portanto, a reversibilidade de todos os acontecimentos. Mas em vez de um tratado de metafísica, escreveu contos filosóficos, as “ficciones” altamente fantásticas, engenhosamente construídas e baseadas em notas eruditas diabolicamente inventadas, com a ajuda de toda a erudição fabulosa de que Borges dispõe realmente. É uma arte das mais requintadas, algo fria e desumana, sempre fascinante: obra significativa do século XX. Sua influência internacional se confundirá, em parte com a obra de Kafka[ii]”. Interessa sobremodo ao leitor de Borges um título como este de Jorge Schwartz (“Borges Babilônico: Uma Enciclopédia"), um volume de 580 páginas, que levou mais de 20 anos para ser coligido com a ajuda de 60 especialistas, com mil verbetes sobre o argentino mais universal de que se tem notícia nas letras. Certamente, não pretendo aqui o enciclopédico pelo tom “dubitativo e conversado” de minha crônica, como afirma o próprio J.L.B. em “A penúltima versão da realidade. [iii]” O sentido da presença central de Borges neste texto é, pois, ressaltar o prazer da leitura que neste ano, para mim, se complementou em um presente trazido por um amigo, do Uruguai. O volume: “Inquisiciones. Otras inquisiciones[iv]”. Pois a obra em português eu já a conhecia parcialmente. De lá, já colhi “A flor de Coleridge”, de onde se aprende que é perdoável que por um período de aprendizado sigamos o conselho de Rodrigo Gurgel – copiar nossos escritores prediletos, imitá-los até que o estilo desses em nós impregnado, nos revele o nosso próprio estilo:  “Aqueles que copiam minunciosamente um escritor fazem-no de modo impessoal, fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se afastar dele em um ponto é afastar-se da razão e a ortodoxia. Durante muitos anos, eu acreditei que a quase infinita literatura estava em um homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-Asséns, foi De Quincey” (Jorge Luis Borges, em Outras inquisições). [caption id="attachment_107808" align="alignleft" width="260"] "El factor Borges", de Helft Nicolás e Alan Pauls[/caption] Naturalmente, tateando, lendo com dificuldade e/ou ouvindo livros lidos por secretárias (entre essas, sua mãe), à medida que a cegueira avança, o escritor encontra seu próprio estilo à custa de muita leitura e alguma cópia, até ser considerado um autor enciclopédico. Seu amor à biblioteca e às enciclopédias vem da infância: “meu pai tinha uma grande biblioteca, principalmente composta de livros ingleses, e me autorizou a escolher o que quisesse, que não me recomendaria nada e que, se um livro me causasse tédio, que o deixasse e partisse para outro. ” Com a mãe (Leonor Acevedo), travou uma aliança, que designou por “sociedade edipiana de uma eficácia impecável” (Helft/Pauls) – ela lia para o filho já sofrendo da cegueira, ele a educava. Daí se extrai uma estranha imagem que a parceria mãe e filho forjou: “um escritor cego, prematuramente envelhecido, de fama mundial, que guia pelo mundo das letras a uma mulher mais velha, frágil e irredutível a um só tempo, ambos suspensos a um tempo fora do Tempo”. A ação em Borges é, assim, uma ação literária de um conservador que treina a mente para os aforismos, as frases lapidares e uma sabedoria silenciosa, mesmo quando faz uso de emissões radiofônicas ou televisivas[v] – superando sua dificuldade de falar (“los problemas de Borges para hablar fueron tan célebres y tan persistentes como los de sus ojos” – cf. Helft/Pauls). Entanto, fala, à rádio, à TV, aos documentários cinematográficos, com certo pudor e certo alheamento de si mesmo, quando fala de Borges, fala mais de outros – Spinoza, Stevenson, Whitman, Bloy...Herman Hesse: “todo homem inclui toda a Humanidade”. Compreender toda essa multidão e essa miríade de conhecimentos, eis a tarefa a que se propôs o argentino Jorge Luis Borges, avesso às paixões imediatas do jogo, do fútil e do passageiro – apegado a uma Eternidade que, no entanto, negava ou discutia cartesianamente, às vezes, ancorando-se em Spencer e Spinoza para circundá-la. Em “A duração do Inferno”, Borges confessa que “nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder” – lembrando-nos dos infernos de Gibbon, Dante, Quevedo, Torres Villaroel e Baudelaire, concluindo que “há eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do livre arbítrio assim o necessita; ou temos a faculdade de construir para sempre ou a individualidade é ilusória. A virtude desse raciocínio não é lógica, é muito mais: é inteiramente dramática. [...]  Teu destino é coisa veraz, nos dizem; condenação eterna e salvação eterna estão no teu minuto; essa responsabilidade é tua honra. É um sentimento parecido com o de Bunyan: “Deus não brincou ao converter-me; o demônio não brincou ao tentar-me; nem eu brinquei ao mergulhar em um abismo sem fundo, quando as aflições do Inferno se apoderaram de mim e tampouco devo brincar agora ao contar. (Grace abounding to the chief of sinners, the preface).[vi] Desejando continuar reforçando a seriedade de Bunyan, citada por Borges, aos amigos agnósticos que dizem não acreditar no Paraíso, eu costumo responder que ele existe e consta de XXXIII Cantos, conforme a poesia de Dante. Ora, esse não é o caso aplicável ao escritor argentino, para quem a especulação parece a este cronista mais um temor de enfrentamento da questão da fé, que Bloy, para citar um dos escritores favoritos de Borges já o fazia com a dúvida cristã impregnada à sua cabeça universal. Em um artigo dedicado a J.W. Dunne, Borges afirma: “Os teólogos definem a eternidade como a simultânea e lúcida posse de todos os instantes do tempo e declaram-na um dos atributos divinos. Dunne, surpreendentemente, supõe que a eternidade já nos pertence e que isso é corroborado pelos sonhos de cada noite. Nestes, segundo ele, confluem o passado imediato e o imediato porvir. Na vigília percorremos o tempo sucessivo a uma velocidade uniforme, no sonho abarcamos uma área que pode ser vastíssima. Sonhar é coordenar os vislumbres dessa contemplação e com eles urdir uma história, ou uma série de histórias. Vemos a imagem de uma esfinge e a de uma botica e inventamos que uma botica se transforma em esfinge. No homem que amanhã conheceremos colocamos a boca de um rosto que nos olhou ontem à noite... (Schopenhauer escreveu que “a vida e os sonhos são folhas de um mesmo livro e que as ler em ordem é viver; folheá-las, sonhar. ”). Dunne garante que na morte aprenderemos o feliz manejo da eternidade. Recuperaremos todos os instantes de nossa vida e os combinaremos como bem entendermos. Deus, e nossos amigos, e Shakespeare colaborarão conosco. Diante de uma tese tão esplêndida, qualquer falácia cometida pelo autor resulta insignificante. ” A apreciação que Borges tinha por Léon Bloy é notável – ele, Bloy, que é um desses escritores que a crítica e os livreiros decidem fazerem-se esquecidos por uma quadra e os leitores o “descobrem”, como neste caso em que vem sendo cada vez mais lembrado, aliás, já merecendo traduções e reedições em português do Brasil. Pois bem, é de Bloy a citação com que encerro esta primeira crônica sobre Borges[vii]: “Léon Bloy escreveu: "Não há na terra um ser humano capaz de declarar quem é. Ninguém sabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas ideias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da Luz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os jotas e os pontos não valem menos que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns e de outros é indeterminável e está profundamente oculta" (L´Âme de Napoléon, 1912). O mundo, segundo Mallarmé, existe para um livro; segundo Bloy, somos versículos, ou palavras, ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: melhor dizendo, é o mundo.” Do capítulo deste universal “livro mágico” intitulado Borges, deixo essas minguadas referências e, aos meus cinco leitores, a recomendação entusiasmada que o leiam em português, ou em espanhol, e que o possam decifrar, saboreando o ritmo da língua original do autor ou as boas traduções que temos na língua de Camões. É como vem se tornando um hábito – um velho hábito destemido, frente ao ritmo de 140 caracteres da atualidade, findo com dois poemas de Borges, traduzidos pelos poeta gaúcho Carlos Nejar[viii] e Manoel Bandeira: LABIRINTO (Borges, na tradução de Carlos Nejar) Não haverá nunca uma porta. Estás dentro E o alcácer abarca o universo E não tem um anverso nem reverso Nem externo muro nem secreto centro. Não esperes que o rigor de teu caminho Que teimosamente se bifurca em outro, Que obstinadamente se bifurca em outro, Tenha fim. É de ferro teu destino Como teu juiz. Não aguardes a investida Do touro que é um homem e cuja estranha Forma plural dá horror à maranha De interminável pedra entretecida. Não existe. Nada esperes. Nem sequer No negro crepúsculo a fera. PÁTIO (Borges, na tradução de Manuel Bandeira) Com a tarde Cansaram-se as duas ou três cores do pátio. A grande franqueza da lua cheia Já não entusiasma o seu habitual firmamento. Hoje que o céu está frisado, Dirá a crendice que morreu um anjinho Pátio, céu canalizado. O pátio é a janela Por onde Deus olha as almas. O pátio é o declive Por onde se derrama o céu na casa. Serena A eternidade espera na encruzilhada das estrelas. Lindo é viver na amizade obscura De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna. NOTAS [i] HELFT, Nicolás e PAULS, Alan. “El factor Borges. Nueve ensayos ilustrados”, Fondo de Cultura Económica de Argentina, 1ª. Ed., 2000. 159 p. [ii] CARPEAUX, Otto Maria. “História da Literatura Ocidental”, vol. 8, p. 2079. [iii] BORGES, J. Luis. “Discussão”. Tradução de Claudio Fornari., 3ª. Ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1994, p.9 [iv] BORGES, Jorge Luis. “Inquisiones. Oras Inquisiciones, 3ª. Ed., Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ed. Debolsillo, 2016, 389 p. [v] Neste link, Borges é entrevistado por Antonio Carrizo, quando da celebração dos 80 anos do Autor. Link consultado em 12/10/17 https://www.youtube.com/watch?v=dUZJGhPqspQ [vi] Cit. Por Borges em Discussão, p.70 (vide ref. iii acima). [vii] BORGES, J.Luis. cf. ref. iv, p.288, tradução minha – artigo de 1951 intitulado “Del culto de los libros”. [viii] BORGES, Jorge Luís.   Elogio da sombra. Poemas. Tradução Carlos Nejar e Alfredo Jacques.  

Ateologia*

A fé dos bolcheviques russos é uma fé implícita, de carvoeiro, uma fé de servos não menos que a dos seus avós. A ateologia é uma teologia

“Esta é a vossa hora, e o poder das trevas”: a possessão em David Lynch

Obra do diretor norte-americano é um grande projeto que demonstra, sempre de maneira sutil, como os filmes, e metonimicamente Hollywood, tornaram-se uma fonte ctônica, novas águas caudalosas e primordiais que geram imagens e demônios pelos quais somos possuídos

Mas, afinal, quais são os critérios para a escolha do prêmio Nobel de literatura?

O critério primordial levado em conta pela academia sueca não é o formalismo. O pendor sociológico parece ser primordial em seus julgamentos

Abgar Renault e a poética pessimista

O olhar do poeta mineiro, sendo moderno, não faz da tradição literária um acervo ultrapassado, ou um utensílio de manipulação apenas. Reconhece que esse diálogo com o passado é uma via de mão dupla, isto é, um verdadeiro diálogo de troca

Aleister Crowley, um mago na tradução

O controverso e excêntrico esotérico se tornou mundialmente notório por sua dedicação ao ocultismo, mas suas incursões pelo mundo da tradução são pouco conhecidas

Em busca das raízes no Brasil profundo

Entre a ficção e a reportagem, Nicodemos Sena reconstitui o dia em que fez uma viagem, na companhia de seu pai, às ruínas da cidadezinha amazonense de Belterra

O dever da tolerância: Raymond Aron e “O ópio dos intelectuais”

Às voltas com um mundo de dúvidas, os intelectuais se agarram a uma certeza aparentemente mais próxima que o céu: a ideologia política

“As crianças é que temem ver o diabo pintado”- Reflexões shakespeareanas Parte 1

Macbeth é uma criança em guerra. Uma imaginação trágica que absorve como imã gigantesco todo o seu ato monstruoso, e o interpreta monstruosamente diante do mundo inteiro [caption id="attachment_90412" align="aligncenter" width="620"] Orson Welles e Jeanette Nolan como Macbeth e Lady Macbeth, em cena do filme "Macbeth", de 1948, dirigido pelo próprio Welles[/caption] It is the eye of childhood that fears a painted devil. – Macbeth, II.ii 52-53 Fernando Simões Especial para o Jornal Opção Quando eu estava no ensino fundamental e a defesa de algum colega fraquinho era sempre ocasião de arrumar mais uma briga, minha reação era a da mais pura felicidade. Os fracos eu os defendia sempre. Sem exceção. Houvesse um fracozito de sapatos sujos e alguém que lhes apontasse a sujeira, lá ia eu, feliz da vida, protestar com socos e pontapés aquela observação pouco gentil, pouco precisa, quase sempre insincera, que eu reputava ao malfeitor. O mundo infantil é essa repetição dolorida de uma inconsciência que se prolonga, que se quer pura, que a si reivindica, pelas caras angelicais, imberbes, e pela ignorância, o perdão generalizado do mundo adulto. Pelo menos era assim que eu fazia na sala da diretora: tinha socado o colega, minha mão doía, mas eu era puro, não vê, dona Maria Isabel, nos meus olhos?, como em mim tudo é pureza e boa vontade? Com vergonha, sem dúvidas, mas certo do perdão ligeiro, do perdão quase imediato. Depois crescemos. A diretora não acredita mais nas nossas boas intenções. Insiste em nos lembrar, naquela sua voz grave, naquela sua voz rouca, naquela sua voz gorda de mulher solteira, que há consequências. “Você não pode”, querendo dizer que eu não posso mais socar os colegas assim tão impunemente. Se dona Olga, a diretora do ensino médio, tivesse alguma cultura, talvez me dissesse para parar com esses trejeitos esquisitos de Dom Quixote. Dona Olga era loira, filha de poloneses, cultivava um bigodinho claro que me chamava mais atenção do que aquelas palavras que ela me dizia. Adultos. Emprego, uniforme, etc. Macbeth tinha o seu: o militarizado, e portava lá a sua espada, a sua brandished steel, com que rasgava os inimigos do umbigo até a altura das costelas. Foi assim na guerra, que venceu, ao lado de Banquo. Macbeth já deveria ter aí os seus 35-40 anos, e portanto já havia internalizado boa parte dos mandamentos das diretoras, e mais aqueles outros do pecado, e mais ainda aqueles outros instituídos pela boa burocracia da sua época. Conhecia o crime. Conhecia a maçã. O homem era corajoso. E também era sabido dessas coisas todas. Mas lhe vêm as bruxas. Que destino formidável e oblíquo, o seu. Com conjurações em rimas parelhas – aquelas próprias às criancinhas - as bruxas vão empurrando ao coração de Macbeth mistérios e mistérios que lhe torcem e retorcem e dele fazem pingar as gotas fúnebres da decisão assassina. if the assassination Could trammel up the consequence, and catch With his surcease success. (I.vii 2-4) (Se o golpe detivesse em suas redes Todas as consequências, e lograsse Triunfar com a morte dele.) É a primeiro raciocínio de Macbeth, no começo da sétima cena do primeiro ato. Duncan, o Rei, deve ser morto para que Macbeth cumpra a profecia das bruxas. Esses três pequenos versos nos mostram a natureza infantil escondida do homem adulto que pretende agir livremente como as crianças. Do homem adulto que pretende agir livremente como as crianças. Não há diretora que lhe perdoe a má ação. Durante a compunção, após o crime, Macbeth ele próprio vai se fazendo o papel do adulto que mostra à criança o conteúdo moral da maldade praticada. Macbeth enobrece, agiganta-se, se vê num alto de rochedo prestes a pular no infindável e negro mar de uma noite densa. Aqui, abro parênteses, entro no assunto chato. Eu não queria, com medo de entediar o leitor. Mas concedo. Transijo. Dos críticos, há os bons (Bloom, Wilson Knight, Nuttall), há os do meio (Garber, Mack), e há o melhor, na minha opinião, e é dele que vou falar agora. Harold Goddard. “The Meaning of Shakespeare” é o único livro em que Goddard discute todas as peças de William Shakespeare. E o melhor, nele, é seu ensaio sobre Macbeth. Goddard é pouco aclamado. Pouco aplaudido. Bloom o elogia de pé, bate palmas e o homenageia em público, mas é voz isolada numa multidão quase infinita de direções editoriais. De resto, nada. A Riverside Shakespeare o cita na bibliografia. Mas a New Cambridge, não. Vejam o seguinte, uma questão chatinha do mercado editorial: o Macbeth da New Cambridge é, hoje, a melhor edição disponível. Braunmuller, o editor, é gigante. E, no entanto, lá no fim, na lista bibliográfica, não há nada sobre o livro do Goddard. Mas é Goddard quem sai de cima do muro e resolve a questão. Não dá tapas, não dá chutes no joelho. Não há jogos linguísticos, interpretações sobre a questão do tempo, das sucessões, etc. Macbeth é sobre o eclipse da civilidade e da masculinidade, é sobre o triunfo temporário do mal. É o que nos diz Frank Kermode no seu prefácio à edição da Riverside Shakespeare. E é assim que Harold nos vai devolvendo a peça à consciência, em quadros vermelhos e de espessura noturna. A escuridão que antecede a aurora. Há apenas um problema para Goddard: qual é a qualidade trágica de Macbeth, e o que ele nos diz de si próprio se comparado à sua esposa? A questão do mal. Da culpa. Da compunção e do arrependimento. Goddard é o fundamento da crítica do ponto de vista metafísico. Macbeth é personagem de imaginação trágica, desenvolvida. Diferentemente da esposa, vê no seu ato assassino uma monstruosidade quase metafísica. Diante do crime sanguinolento em que Duncan é apunhalado enquanto dorme, a reação de Lady Macbeth é simplória, prática, costumeira: LADY MACBETH: A little water clears us of this deed: How easy is it, then! (II.ii 66-67) (Um pouco d’água limpa-nos Deste ato: como é simples!) Em contraposição, a reação de Macbeth só é possível em uma imaginação que abrange toda a terra, sim, mas também todo o paraíso e todo o inferno: MACBETH: What hands are here? ha! they pluck out mine eyes. Will all great Neptune's ocean wash this blood Clean from my hand? No, this my hand will rather The multitudinous seas in incarnadine, Making the green one red. (II.ii 58-62)  (MACBETH: Que mãos são estas? Oh, elas horrorizam-me! Me arrancam Os olhos! Lavaria o grande oceano De Netuno esta mão ensanguentada? Não! Esta minha mão é que faria Vermelho o verde mal de polo a polo!) Goddard nos assola. É uma transcendência. Wilson Knight havia, décadas antes, no seu “The Wheel of Fire”, nos mostrado todos os detalhes da maldade. Um metafísico, sem dúvidas. Mas é Goddard quem nos revela os mecanismos psicológicos do apelo sedutor que tem o mal em nossas vidas. Macbeth, que a princípio nos parece analítico, dialético, um tipo que vai organizando pontos contrastantes um em frente ao outro para chegar a uma conclusão, como fazem as crianças diante de um jogo, depois se mostra grandioso na sua culpa. Tem medo. Sua mão, tão pequena, pode encarnar com a cor do sangue o verde vasto e infinito do oceano. Que imaginação! Que diferença com a pouca água da pia da cozinha a que reclama como suficiente a sua esposa! Macbeth é uma criança. Eu digo. As rimas emparelhadas das bruxas, os versos livres de Macbeth, ainda que isso esteja na tradição poética de todas as épocas. Feitiço é sempre feito em rimazinhas. Um leitor desatento talvez julgasse que esse recurso das rhymed couplets (i'll drain him dry as hay / sleep shall neither night nor day, etc) fosse utilizado por Shakespeare apenas de modo inconsciente, ou, no máximo, para chamar atenção da plateia, como parte contrastante aos versos brancos, sem rima. Mas não. O discurso de Macbeth (nothing is but what is not) absorve o sickening see-saw rhythm das bruxas. Ritmo de gangorra. São versinhos próprios às crianças, usados nas escolas para facilitar a memorização. (Sobre a relação entre rima e sangue e feitiço e sangue, deixo aqui uma nota de Arden Shakespeare 2 sobre esse assunto: Dowden comments on this parallel that Shakespeare intimated by it 'that, upon these hags, the connection is already established between his soul and them. Their spells have already wrought upon his blood.) Macbeth foi vítima porque foi criança. E foi criança porque teve imaginação. Antes do crime, depois de pensar um pouco, Macbeth desiste de matar Duncan, mas sua esposa, num gesto, põe em dúvida a sua masculinidade, e diz, pontualmente, de forma dilacerante para um homem, que não se pode voltar atrás com uma promessa: How tender 'tis to love the babe that milks me: I would, while it was smiling in my face, Have pluck'd my nipple from his boneless gums, And dash'd the brains out, had I so sworn as you Have done to this. (I.vii 55-58) (Bem conheço As Delícias de amar um terno filho Que se amamenta: embora! Eu lhe arrancara Às gengivas sem dente, ainda quando Vendo-o sorrir-se para mim, o bico De meu seio, e faria sem piedade Saltarem-lhe os miolos, se tivesse Jurado assim fazer, como juraste Cumprir esta empreitada.) Macbeth é uma criança em guerra. Uma imaginação trágica que absorve como imã gigantesco todo o seu ato monstruoso, e o interpreta monstruosamente diante do mundo inteiro. É uma escolha que lembra a reação de Hamlet após a conversa com o fantasma: O all you host of heaven! O earth! what else? And shall I couple hell? O, fie! Hold, hold, my heart. (I.v 92-93) Dois exemplos. Lady Macbeth, à espera do marido que a esta altura está cometendo o crime, conjectura as possíveis falhas, deseja o sucesso, rechaça a tentativa frustrada. Macbeth, que está num plano mais alto do palco, onde ficam os quartos dos hóspedes, vai descendo, e à mulher explica o que houve: MACBETH: One cried, “God bless us!”, and “Amen” the other, As they had seen me with these hangman’s hands. List’ning their fear, I could not say “Amen” When they did say, “God bless us!”  LADY MACBETH: Consider it not so deeply. MACBETH: But wherefore could not I pronounce “Amen”? I had most need of blessing, and “Amen” Stuck in my throat. (II.ii 26-32)  (MACBETH: Um deles gritou: “Valha-nos Deus!” E o outro: “Amém!”, como se houvessem visto Estas mãos de carrasco. E eu, a ouvir-lhes O medo, não podia repetir “Amém” quando disseram: “Deus nos valha!”. LADY MACBETH: Não o leves tanto a sério MACBETH: Que motivos Me impediu de proferir “Amém”, se tanto Me era graça divina necessária? O “Amém” colou-se-me à garganta) Macbeth está ali com as adagas sujas de sangue. As mãos sujas de sangue. E se perturba com o “Amém” que não pôde dizer! É um maravilhamento que parece lhe cair dos céus como um presente divino. Não é cogitação verdadeira que acometesse a um assassino, é perturbação interior de alguém que se vê espantado diante de um mistério. Macbeth, a criança assassina, procurando por trás da porta o verdadeiro significado metafísico da sua ação. Qualquer sombra lhe assalta. Qualquer ruído lhe é inimigo. O inferno do crime é o espelho onipresente em que se reflete seu coração. Logo após, batem à porta. Macbeth diz: Whence is that knocking? How is’t with me, when every noise appalls me? What hands are here? (II.ii 57-59) (Quem será que bate? O que há comigo, que qualquer ruído Me sobressalta assim?) Lady Macbeth, sabendo do crime, responde às batidas de outras forma: I hear a knocking At the South entry. (II.ii 64-65)  (Estão batendo à porta Do lado sul.) Macduff e Lennox estão batendo à porta. As batidas ressoam em mundos diferentes. Crianças não têm memória, por isso esta lagartixa no jardim, que tenta se esconder atrás da luz fixada à parede, pode ser um dragão, pode ser um jacaré, pode ser o monstro que lhes devorará os sonhos ou o filhinho da fada que lhes visita à noite. Tudo é dúvida. Só existem perguntas. As breves certezas, quando surgem, são logo desviadas pelos córregos adjacentes, cheios de mato, galhos de árvore e peixes esquisitos, hostis; dentro de pouco, pelo assombro, as certezas voltam a ser dúvidas. Cada objeto irradia uma perspectiva que se alarga e se torna nova. Nada é o que é. O que não é, na verdade, é mais do que aquilo que é, porque a literalidade e os sentidos são apenas portas para um mundo independente cujo soberano é a Imaginação. NOTA: As traduções dos trechos de “Macbeth” são de Manuel Bandeira (São Paulo: COSACNAIFY, 2009). Fernando Simões é ensaísta e cursa Direito na Faculdade Dom Bosco.

Simone, Edwarda ou por uma aprovação ilimitada da vida na obra de Georges Bataille

Se o laço que sustenta as relações comuns extrai sua força coesiva da estabilidade conferida por ele aos seres que ele liga entre si, o laço que liga Simone e Edwarda aos seus, é inteiramente pulsional: um laço que tem sua origem e seu fim no corpo vivo, um laço que é menos identidade do que intensidade

Por uma releitura de “Rei Lear”

Se a tragédia, como bem percebeu Aristóteles, é a representação de homens superiores, o que faz de Lear superior? Podemos dizer que Lear é um herói trágico por excelência, pois ele concentra em si uma paixão e um desejo de ação que lhe serão fatais