O dever da tolerância: Raymond Aron e “O ópio dos intelectuais”
14 abril 2017 às 09h59

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Às voltas com um mundo de dúvidas, os intelectuais se agarram a uma certeza aparentemente mais próxima que o céu: a ideologia política

“O conhecimento verdadeiro do passado nos remete ao dever da tolerância, a falsa filosofia da história dissemina o fanatismo”.
— Raymond Aron
Mário Zeidler Filho
Especial para o Jornal Opção
Certas obras – e mais raramente, certas ideias – encontram-se tão entranhadas em nossa cultura (individual ou coletiva) que, quando finalmente tomamos contato direto com elas, nos parecem desprovidas de novidade, talvez até de interesse. A primeira vista, este seria o caso de “O ópio dos intelectuais” (Três estrelas, 352 páginas, tradução de Jorge Bastos), de Raymond Aron (1905-1983). Entretanto, como frequentemente acontece ao persistirmos na leitura dessas obras, o livro de Aron, publicado em 1955, demonstra não só as qualidades que vulgarmente chamamos proféticas, mas apresenta um problema que, mais de meio século depois, continua presente, e sente-se aqui tentado a dizer que a questão – a atração dos intelectuais por ideologias totalitárias – seja um embaraço verdadeiramente perene.
Tido como o grande representante do racionalismo e do liberalismo francês no século 20, Aron teve uma formação eminentemente filosófica, com interesse crescente pela história e pela sociologia. Nascido no mesmo ano que o filósofo Jean Paul-Sartre, com quem participou da fundação da revista “Les Temps Modernes”, Aron manteve o hábito, que marcaria sua geração, do intelectual público, atuando durante quase toda sua vida como polemista e comentarista político, atividade que descrevia como a de um “espectador engajado” (termo que, inclusive, serviu de título a uma coletânea de entrevistas com o autor).
A posição do indivíduo diante da história e seu senso de responsabilidade individual, principalmente em relação àqueles que, através da atividade intelectual, pretendem interferir no curso histórico, compõem os eixos fundamentais de “O ópio dos intelectuais”. Dedicado à crítica do comunismo enquanto ideologia totalitária, a tese de Aron, no entanto, não se aplica exclusivamente ao marxismo, e ele mesmo exemplifica a adesão da chamada classe intelectual a diversas ideologias, dos revolucionários de 1789 ao nazi-fascismo. Entretanto, o nazismo e o fascismo, como ideologias “sérias”, estavam basicamente extintos na década de 1950 (restando deles apenas as sombras do franquismo espanhol e do salazarismo português), e o islamismo, embora carregando desde sempre seus traços de “religião ideológica”, ainda não demonstrava a importância que hoje possui no cenário europeu. Com o fortalecimento da União Soviética e o prestígio emprestado pela Resistência após 1945, o comunismo tornou-se uma ideologia de grande preeminência na esquerda francesa, e esta, por sua vez, apresentava-se como tendência dominante entre a intelligentsia, apoiando-se no descrédito dos intelectuais conservadores, atirados de cambulhada entre os “colaboracionistas”. Em 1955, os excessos de Josef Stalin, morto pouco antes, já eram bem conhecidos no mundo ocidental, mas as atrocidades do stalinismo ainda não haviam sido formalmente “denunciadas” pelas autoridades soviéticas, muito ocupadas com sua própria disputa interna pelo poder. O “Discurso Secreto” de Nikita Kruschev, “Sobre o culto à personalidade e suas conseqüências”, só seria proferido no ano seguinte, em fevereiro de 1956, e publicado oficialmente apenas em 1989.
Os franceses, portanto, viviam algo próximo de uma “hegemonia cultural” de esquerda, e havia alguma reserva entre os bem-pensantes em criticá-la. Aron utiliza como ilustração o caso do escritor franco-argelino Albert Camus, que, protestando contra a entrada da Espanha franquista na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), não fez o mesmo em relação à União Soviética, embora ali também fossem denunciados casos de desrespeito aos direitos humanos e às liberdades individuais. Essa crítica ao comportamento complacente e à questão da responsabilidade (ou à falta dela) entre os intelectuais franceses é aprofundada de forma aguda pelo historiador Tony Judt em “Passado Imperfeito: um olhar crítico sobre a intelectualidade francesa no pós-guerra” (Nova Fronteira, 477 páginas, tradução de Luciana Persice Nogueira).
“Mitos formadores” e “Religião secular”
Nas primeiras linhas de “O ópio dos intelectuais”, Raymond Aron nos apresenta uma questão fundamental: “A alternativa entre esquerda e direita tem ainda algum significado?” Com essa pergunta, Aron inicia uma espécie de teogonia do que ele chama de “religião secular” dos intelectuais, no que poderíamos chamar de “mitos formadores”: a Esquerda, a Revolução e o Proletariado.
A distinção entre os termos Esquerda e Direita, bem como o mito da esquerda unitária e em eterna oposição, nasce, digamos, por mera formalidade: “A esquerda, segundo o dicionário Littré, é ‘o partido de oposição (…) que ocupa os assentos à esquerda do presidente’”. Naturalmente, essa posição pode reunir grupos de interesses os mais distintos, não formando necessariamente um “partido”. Aron nos mostra que desde 1789 essas esquerdas só poderiam ser tomadas como um “bloco” ideológico a posteriori, ignorando-se evidências históricas para a construção de uma narrativa de unidade revolucionária, ou, excepcionalmente, durante crises específicas, em face de um inimigo comum; a igualdade social nem sempre foi pauta unificadora das “esquerdas”, que já foram burguesas, republicanas, democráticas, liberais.
No século 19, entre as ideologias burguesas que compunham o que Aron chama de as esquerdas, ou seja, as diversas correntes do socialismo, ganham importância entre a intelligentsia não exatamente por representar os anseios dessa classe, mas pela suposta nobreza de suas intenções: em meio às vulgares disputas políticas movidas por puro interesse próprio, o socialismo trabalha em defesa de uma ideia desinteressada, a sociedade sem classes. Para os marxistas, este seria o desdobramento natural e inescapável do capitalismo que, exaurindo-se, daria passagem à racionalidade e à solidariedade do socialismo e, afinal, à verdadeira igualdade no comunismo. Ao proletário, visto como uma espécie de “homem primordial”, ao mesmo tempo desprovido e mártir, Adão e Messias (o proletário não dispõe de uma face própria, está desumanizado, como coloca Aron), caberia a missão de acelerar a realização desse processo. Entretanto, nunca houve um partido de sans-culottes; para que o proletariado deixe de ser “alienado” e se torne a força motriz da sociedade igualitária, é preciso que essa missão lhe seja revelada; assim, em meio a uma incerta disputa de classes, o partido comunista aparece não como partido do proletariado, mas como partido para o proletariado. Guiar a revolução, portanto, seria a missão do partido – uma missão intelectual, naturalmente. Aqui encontramos a junção de dois fetiches intelectuais: a ação e o poder. Se, por um lado, a política de interesses desconfia de qualquer ideia que não lhes seja imediatamente útil e o homem de ação despreza o comportamento demasiadamente analítico do intelectual, o fanático é um homem de ação imbuído de uma idéia, e cabe quase sempre a um líder – ou um ideólogo – inoculá-la.
Porém, como afirma Aron, “a realidade é sempre mais conservadora que as ideologias” e uma vez que o partido revolucionário tenha atingido seu objetivo e conquistado o poder, surge inevitavelmente uma meta mais urgente, que é mantê-lo. O ideólogo dá lugar ao pragmático e a ideia se transforma em causa. A “renovação” se torna ortodoxia, a “libertação popular” termina em dinastia hereditária, e quanto mais ameaçada a causa estiver (ou parecer) mais liberdade de ação terão seus dirigentes e maior será a “liberalidade” de ideias compatíveis com ela. A “revolução permanente”, como estado de perpétua exceção, permite o exercício virtualmente ilimitado do poder, ao mesmo tempo em que justifica seu autoritarismo pelo ideal que pretende atingir num futuro cada vez mais distante; como a verdadeira meta é simplesmente a manutenção do poder, o “vanguardismo” revolucionário se transforma rapidamente no conservantismo mais empedernido – na política como na arte, na economia como nos costumes.
Idolatria da História
Passando ao século 20 e deste ao 21, retomamos outra questão fundamental, hoje ainda mais válida que em 1955: qual o motivo do sucesso de uma ideologia de classe quando essa mesma classe se encontra em pleno declínio numérico e, acrescentando posteriormente, “não está mais reduzida à nudez da condição humana”? De fato, ontem como hoje, o próprio operariado visa muito mais à ascensão social que à revolução política, e quem “busca o apocalipse” não é a classe, mas o partido. Embora hoje em dia o ideário da esquerda e da direita sejam muito mais difusos, em 1955 os vetores do socialismo/marxismo se confundiam com as velhas bandeiras positivistas: a “razão”, na forma de planificação econômica, e o “progresso”, na forma de avanço técnico-científico. Sobre esses trilhos, o motor revolucionário do proletariado chegaria fatalmente à “Estação Finlândia” da sociedade sem classes.
Sabemos que nem um nem outro surtiram o resultado esperado. Para Raymond Aron, de acordo com essa ideologia, “o progresso técnico promete garantir a todos condições de vida decente e, com isso, a possibilidade de participação na cultura”; entretanto, o avanço gerou também a hiperespecialização e a burocratização da produção, substituindo o operário pelo funcionário. Continuando com Aron, “uma sociedade de funcionários não é, necessariamente, uma sociedade conciliada consigo mesma”, e o resultado a que chegamos pelo progresso técnico não foi a sociedade sem classes, mas a sociedade de consumo. Também os resultados da economia estritamente planificada são bastante conhecidos, embora a estagnação econômica e a escassez de recursos continuem sendo creditadas, na maioria dos casos, a outros motivos embargantes. Curiosamente, os poucos países que alcançaram uma maior igualdade social através da planificação econômica – as sociais-democracias europeias – o fizeram exatamente através do malfadado “reformismo”, inimigo número dois do revolucionário.
Entretanto, muito mais importante que os eixos que suportam a ideologia revolucionária, e o que justifica todos os desvios em seu percurso, é o seu fim; este, como a Cidade de Deus, se confunde com o próprio fim da história, que é tomada como dogma. A crítica da concepção escatológica da história no marxismo compõe outra linha fundamental em “O ópio dos intelectuais”, discussão que, entretanto, não é nova: foi assunto para Croce, Freud, Georges Sorel, Julien Benda, Johan Huizinga e até para marxistas de peso como Antonio Gramsci e Walter Benjamin, passando por “socialistas democráticos” como Norberto Bobbio e, talvez, o próprio Aron.
Essa “idolatria da História” não ocorre em função daquilo que chamamos de História num senso comum: não se refere ao conhecimento do passado ou a sua utilização para a interpretação do presente; trata-se, antes, de uma “história do futuro”, onde o passado e o presente se justificarão num futuro redentor. Assim, todas as contradições entre discurso e ação, entre fatos e relatos, serão reconciliados com a verdade futura, para onde levam todos os caminhos. Essa concepção escatológica da história rapidamente atraiu a simpatia de intelectuais religiosos, já naturalmente inseridos em ideologias semelhantes, mas principalmente de intelectuais “secularistas”, desligados por temperamento do pensamento religioso mas confrontados pelo vácuo existencial causado pela “morte de deus”. Às voltas com um mundo de dúvidas, os intelectuais se agarram a uma certeza aparentemente mais próxima que o céu: a ideologia política. A esse respeito, Aron nos apresenta algumas passagens espantosas de autores de esquerda, seja nas palavras discretamente cínicas de um Sartre, seja na verdadeira confusão mental de um Merleau-Ponty.
Hoje em dia, esse ponto está mais ou menos pacificado – não se fala mais em uma sociedade futura inexorável em seus princípios, mas em “outro mundo possível”; com a consolidação quase geral no ocidente de uma sociedade burguesa temperada pela social-democracia, as ideologias revolucionárias foram fragmentadas em uma miríade de bandeiras minoritárias, e, em contraponto, um liberalismo difuso alia-se, por interesse, a um conservadorismo confuso. Não obstante, a contradição justificada pelo dogma e a mentira justificada pela boa intenção ainda são práticas correntes, à esquerda quanto à direita, como temos visto com espantosa violência e desfaçatez nos últimos meses. Com a “chegada do ceticismo” que desejava Aron veio também uma larga dose de cinismo, e estes, ao invés de “corroer o fanatismo”, os alimentam.
Narcóticos de ontem e hoje…
Em 1935, vinte anos antes do aparecimento de “O ópio dos intelectuais”, Johan Huizinga publicava um libelo contra a ascensão das ideologias totalitárias na Europa, principalmente o Nazismo, intitulado “Nas Sombras do Amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo”. Neste livro, o historiador holandês afirmava que “o otimismo inabalável por enquanto é privilégio ou daqueles incapazes de enxergar o que há de errado com a cultura, tendo sido eles mesmos afetados pelo mal, ou daqueles que, com sua doutrinação salvacionista, julgam possuir a receita da civilização futura, prontos para despejá-la sobre as cabeças da humanidade sofredora” [Tradução de Sérgio Marinho – Caminhos, 2017, no prelo]. Para Huizinga, a Europa passava por uma “infantilização” cultural, abrindo mão de suas tradições culturais e políticas, rapidamente substituídas por certas novidades nem sempre duráveis e quase nunca “saudáveis”. As regras sociais, observadas como “regras do jogo”, transformavam a vida numa espécie de evento esportivo, onde o entusiasmo substitui a convicção; a política se transforma em competição, a ciência em cientificismo, a cultura em moda. Como numa partida de futebol, uma sociedade nesses moldes abre rapidamente as portas para o fanatismo e a irresponsabilidade.
É bastante possível que nem Huizinga nem Raymond Aron suspeitassem o mundo que encontraríamos no século 21. Aquele apelando para uma espécie de “resistência humanista” e este para um “ceticismo reparador” desejavam sobretudo a vitória da tolerância e do bom senso – ideais hoje em dia tão distantes de nós quanto a “Cidade de Deus” ou a “Sociedade sem Classes”.
O aspecto tristemente cômico das cenas que temos presenciado nos últimos meses no Brasil (e também fora) evidenciam os graves problemas políticos e culturais de que são sintomas. A disputa política transformada em “guerra de memes” e travada nas redes sociais são sinais claros de nosso “infantilismo” como nação, e, embora tenham ocorrido episódios isolados, esperamos que a disposição para o fanatismo que se percebe nas ruas não tome as dimensões que tem tomado na Europa e nos Estados Unidos, onde o terrorismo islâmico tem feito cada vez mais adeptos, acompanhado de perto pelos grupos de extrema direita simpatizantes do nazi-fascismo.
Por outro lado, enquadrados definitivamente no espectro burguês, a classe intelectual já não tem, como no século 20, aderido fisicamente aos conflitos propriamente ditos. Não há, que se saiba, “brigadas internacionais” de escritores na Síria, nem “poetas-milicianos” como um Brasillach ou editores-terroristas, como um Giangiacomo Feltrinelli. Entretanto, a intelligentsia tem aderido com entusiasmo crescente às ideologias “repaginadas” do século 21, disputando os califados universitários e elegendo verdadeiros gurus para uma classe média confusa, seja com os “liberais-conservadores-radicais” da chamada “Alt-Right”, seja com a bandeira de retalhos coloridos da “esquerda freestyle” (termo do amigo historiador Valney Oliveira). Em ambas as partes se percebe um sentimento de grande “superioridade moral” traduzido num comportamento policialesco e intolerante, distribuindo ao mesmo tempo condenações sumárias e apoio “total e irrestrito” às mais diversas pessoas e situações, numa “roda viva” que muitas vezes beira e quase sempre cai na má-fé.
Se, como queria Aron, o ceticismo pode destruir o fanatismo, a irresponsabilidade e o conforto burguês adubam cada vez mais o fanatismo teleguiado das ideologias de sofá. Pela resistência ou pelo ceticismo, resta-nos esperar que, no apagar das luzes da “société du spectacle”, encontremos na porta o bom e velho amigo Bom Senso. E que a ressaca nos seja breve.
Mário Zeidler Filho é escritor e editor
Trechos de “O Ópio dos Intelectuais”

“O marxismo é uma filosofia de intelectuais que seduziu uma parte do proletariado, e o comunismo se serve dessa pseudociência para chegar ao seu objetivo específico, a tomada do poder. Os operários não acreditam espontaneamente que foram eleitos para a salvação da humanidade. Muito mais forte neles é o desejo de uma ascensão em direção à burguesia.” p.95
“Os regimes totalitários restabelecem a unidade das hierarquias técnica e política. Pode-se aclamá-los ou amaldiçoá-los, mas somente à condição de ignorar a experiência dos séculos pode-se ver alguma novidade nisso. As sociedades livres do Ocidente, onde os poderes são divididos e o Estado é laico, constituem uma singularidade da história. Os revolucionários, que sonham com libertação total, trazem de volta velharias do despotismo.” p. 104
“O fim da história é uma idéia da razão e caracteriza não o homem individual, mas o esforço dos homens em grupos, ao longo do tempo. É o ‘projeto’ da humanidade, na medida em que esta se pretende sensata.” p. 166
O ópio dos intelectuais
Autor: Raymond Aron
Tradução: Jorge Bastos
Páginas: 352
Editora: Três Estrelas