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Jéssyca Nunes, de 23 anos, era estudante de jornalismo e foi vítima de atropelamento enquanto tentava atravessar a faixa de pedestre que fica em frente à universidade, localizada na Avenida Fued Sebba, no Jardim Goiás. A jovem morreu após primeira orientação de TCC no último semestre do curso, no dia 04 de agosto
[caption id="attachment_13867" align="alignleft" width="620"] Foto: Arquivo Pessoal[/caption]
“(...) morreu uma menina de 13 anos do meu edifício deixando a mãe tonta, morreu o meu tonitruante amigo Marino Besouchet. Desculpem, mas se morre”.
Minha cara-amiga, por hora, resolvi lhe escrever. Esse trecho aí de cima é Clarice Lispector, de uma crônica que li há uns dois ou três anos. Agora, no final deste agosto, depois de sua partida – ou diria passagem? – a crônica da escritora, a morte, o estar vivo, clarões intensos e repentinos de memórias ficaram rodando na minha cabeça.
Tentei evitar os últimos episódios por uns dias. Não consegui, sobretudo porque quando chego do jornal, ainda cansando pelo tumulto e calor das ruas, após girar a chave na porta, me deparo irremediavelmente com um dos livros que me emprestastes: Só as mães são felizes. Depoimento da mãe de Cazuza, o máximo poeta-cantor que já ouvimos.
Sobre o ocorrido, primeiro veio o estarrecimento, a não aceitação. Pessoas próximas tentaram me dizer coisas, coisas que não suavizaram o baque. E eu fiquei por muito tempo, por dias, tentando me organizar, mas algo forte e doce havia sido carpido do menino que sou. E por uma porção de tempo fiquei fazendo um barulho silencioso.
Aí depois ponderei: eu precisava te eternizar, menina. Nem que fosse apenas uma carta, mas eu precisava te eternizar. Jornalistas e escritores dominam o eterno. E Deus, Deus domina eternamente o eterno.
Estes e depois destes, foram dias tristíssimos. No sétimo caminhei até a igreja. Rezei. Lá ouvi umas canções bonitas que falavam de Jesus e da Virgem Maria, e nada de Legião Urbana, Frejat ou Humberto Gessinger. O padre proíbe cantos não litúrgicos na paróquia universitária. Nessa hora não segurei o riso tímido, ri porque sabia que você riria disso.
Ainda por lá, recebi uma camiseta branca com tua foto estampada, abracei tua mãe, sua filha de apenas 4 anos, e por último seus/nossos amigos jornalistas. Nesse mesmo dia, em casa, deitei na cama e tentei distrair-me e do som veio a voz do Renato Russo. Adormeci.
Acordei no oitavo dia e pela noite uma dezena foi para a rua manifestar por ti, entregamos flores para os motoristas e cantamos Pais e Filhos, exatamente na faixa de pedestre onde o carro de uma mulher veio em alta velocidade e.
E ventou. [Silêncio]
Por tudo o que houve neste mês eu ainda teria muitas coisas a confessar e a escrever para ti e por ti, como: não pretendo devolver seu livro para nenhuma pessoa; alguns são honrados até “na hora da estrela”, você, por exemplo, doou as córneas; faltou o empréstimo de um livro do Caio F. e a apresentação de um álbum do cantor capixaba Silva – o melhor da década.
Agora, entrando neste novo mês: não desejo que meu agosto se estenda pelas próximas semanas e vá por outubro ou novembro adentro, nem o meu nem dos que você amava. Por fim, eu sei que você ficará por aqui, naquele canto da sala, ao lado daquelas três meninas; você ficará em algum show de rock; em um parque; ficará nos discos; na profissão; na televisão.
Estou sentindo saudades, que desponta do mais fundo. Um dia desses, amiga, aqui em Goiânia ou em São Paulo, num infinito azul-branco ou no mar, a gente vai se reencontrar e então:

De acordo com investigações, a mulher só sobreviveu por sorte. Especialistas discordam, afirmando que na verdade trata-se de azar. Solução para o caso continua nas mãos do destino

Como suportar, durante a exibição de um filme de arte, a presença de alguém produzindo ruídos incômodos ao retirar pipocas do interior do saco de papel?

Um casal morre de mãos dadas no Estados Unidos e prova que morrer não dói em uma situação: quando a gente vai embora levando na bagagem quem a gente gosta

Porque do céu nada cai exceto nós mesmos, despertos de nossos sonhos de grandeza em cada pequeno acaso de nosso dia depois do outro

[caption id="attachment_10371" align="alignright" width="620"] Foto: Kumar Gauraw[/caption]
Graça Taguti Especial para o Jornal Opção
A premência de atos de coragem se manifesta em nossas vidas desde o instante do nascimento. Ambos, o bebe e sua mãe, precisam de imensa determinação e desejo, para trocar, abandonar um ambiente aquoso, seguro e acalentador pela vinda à luz na terra dos homens.
Mudar de hábitos, largar ambientes mornos por outros desconhecidos — ainda que anunciem o bônus de certa prosperidade, demanda entrega e decisão.
Mergulhar na névoa, nas ondas escuras e geladas de viagens solitárias são ações que acarretam desvendamentos, nem sempre doces de fatias do nosso psiquismo.
Coragem para se enxergar em carne-viva, sem escamoteações quaisquer. Detectar o medo lá dentro de suas caixas fechadas, as defesas algemadas na garganta e crispadas nas mãos trêmulas de dúvidas.
Ter a ousadia de convocar os diabos e demais anjos da maldade a se reunirem conosco, intimando-os a revelar seus fétidos estratagemas de demolição da alegria e paz, nossa e alheias.
Arrancar o amor, entranhado à língua, levando-o às palavras. Uma confissão de bem, um ramalhete de flores para quem nos cerca a toda hora de atenções e delicadezas.
Ter coragem, como insígnia da bravura eleita, é trocar as infinitas mortes cotidianas por sobressaltos verdes, vermelhos, lilases. Gargalhadas soltas e úmidas, prontas a invadir cenários de vento e a se refestelarem, displicentes, ao ar livre.
Coragem para ser feliz. Como sonegamos de nós essa tal felicidade, como se ela não nos fosse devida, um bem legítimo, herdado dos céus. Também poderemos estendê-la à solidariedade macia, móvel e atenta ao entorno, evoluindo em um balé glorioso, pelos arcos planetários.
Coragem carimbada nas mínimas escolhas. Levantar os olhos do celular, guardar o tablet em uma gaveta, o notebook na mesa do quarto e, então, partir para trocar dois dedos de prosa com a revoada de andorinhas que se exibem diante de nossas janelas.
São tantas e multifacetadas coragens de que carecemos nos pequenos e grandes movimentos que compõem a partitura nossa de cada dia, com suas melodias assíncronas, que nos faltam indumentárias apropriadas. Abraçar o doente, o bêbado, o paciente terminal e lhe oferecer água e mel, a ternura mais fresca da alma, introduzindo-a neste quadro de dores e discretas bênçãos.
Coragem para se dizer o que sente. Sem eufemismos, perfumes de toucador ou maquiagens pesadas por acúmulos de autoenganos. Perdoar, ou pelo menos buscar esquecer, quem nos odeia ou inveja- nossos traiçoeiros inimigos, vigilantes do alto das coxias, desde o palco em que nos apresentamos à sociedade — essa gestora de ferro. Implacável julgadora de direitos e deveres dos homens.
Um misto de coragem, humildade e tolerância consiste em receber sem discórdias a presença de noites sem lua. Aristóteles sentenciava: “A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras”.
Sem coragem, deslizamos sobre o mundo como vermes na pele de pessoas apáticas e sem rumo. Repetimos rituais de convivência sem questioná-los. Repudiamos as sementes da boa nova, em várias nuances de nossa esgarçada existência.
Anaïs Nin, libertária escritora, apregoava “a vida contrai-se e expande-se proporcionalmente à coragem do indivíduo”.
Na maior parte do nosso espremido tempo, pulsamos encolhidos em conchas, torres prisioneiras de castelos em cujas masmorras apodrecemos desejos, energias, prenúncios de gestos fecundos. Shakespeare sublinhava “os covardes morrem muitas vezes antes de sua verdadeira morte; os valentes provam a morte só uma vez”.
Por fim, há algo inevitável nos pequenos movimentos das coragens nossas de cada dia. Olhar nos olhos da morte. Encará-la de perto, aceitando seu convite para enfrentá-la em mais um combate. Aqui, viver ou morrer não está em questão. Lutar é o que importa.
Graça Taguti é escritora.
via Revista Bula
André Gomes
Especial para o Jornal Opção
[caption id="attachment_9631" align="aligncenter" width="544"] Shawn van Daele[/caption]
Você que de quando em vez chora à noitinha, na solidão da alcova. Você que se arrebenta no cumprimento das obrigações. Que perde um tempo danado desviando das porradas de todo dia.
Você que tem medo do arrependimento um minuto depois de tomar uma decisão. Você que esconde seu pavor de morrer só, de não ter onde cair morto, de lhe faltar um gato para puxar pelo rabo.
Você que ainda tem avós mas que pouco os vê. Que tem saudade da infância, que sente culpa por não telefonar mais seguido a seus pais. Você que já não tem pais e nem avós e quase só usa o telefone para pedir comida e responder que não, não quer assinar jornal nenhum.
Você que tem uma inveja inofensiva das pessoas que demonstram afeto. Você que queria ter mais irmãos, você que tem irmãos distantes, você que não tem irmão nenhum.
Você que ainda corta a carne no prato do filho ou da filha. Que tem criança pequena e conhece o medo doloroso de lhe faltar.
Você que se deu conta de que nunca será um astronauta, um campeão olímpico, um astro do rock. Que acha superficial e cínico quem defende que não se deve dar esmolas, quando a quem pede esmolas nada se faz para ajudá-lo a seguir outro caminho.
Você que olhou nos olhos de um mendigo e sentiu um calafrio em algum lugar insuspeitado da alma.
Você que sentiu culpa por estar ocupado demais para ouvir um amigo quando ele mais honestamente precisou falar.
Você que já passou horas deitado no sofá de barriga para baixo, cutucando com a unha a sujeira leve que pousa e se instala impertinente nas ranhuras do chão. Você que enxerga rostos nos desenhos dos ladrilhos. Que observou a poeira flutuando contra a luz do sol e lembrou de um amor antigo. Você que não sabe lidar com um amor novo.
Você que, no mais das vezes, das conversas do dia a dia não ouve nada senão relinchos, cacarejos e conversas para boi dormir entupidas de preconceito e burrice.
Você que já se perguntou onde repousam as borboletas, enquanto imaginava sua vida secreta, e esse foi seu único instante de paz no dia confuso. Você que descobriu espantado que as baratas, quando esmagadas pelo chinelo da gente, liberam ovos que se transformarão em novas baratas que sobreviverão à hecatombe nuclear.
Você que já pediu a Deus um tempo para viajar a um lugar distante e ver o sol nascer de outro canto, na tentativa honesta de lavar com sabão e esponja a sua alma cheia de borras e sentimentos esverdeados, envelhecidos. Depois estendê-la no varal de um dia inteiro e deixá-la ali secando ao sol.
Você que já teve a impressão de que, se não fizer alguma coisa, a vida periga se transformar em um eterno domingo à noite. Você…
Seja bem-vindo. Bem-vinda. Dá cá um abraço. Viver dói e se dói é porque você vive. Resista, deixe estar.
E acredite: para cada angústia há uma desforra gloriosa, esperando sua vez de vir ao mundo.
André Gomes é escritor e publicitário.
via Revista Bula

[caption id="attachment_9020" align="alignright" width="620"] Foto: Gaspar Nóbrega/VIPCOMM[/caption]
Maurício Falleiros
Especial para o Jornal Opção
Do nada, o homem resolveu puxar assunto no elevador, coisa que nunca tinha feito antes. Se arrependeu mortalmente.
— E a seleção ontem, hein?
— Não tem pra ninguém, né? O Neymar joga demais.
— Hum... Não acho ele tudo isso, não.
— Como não?! O cara come a bola.
— Só firula.
— Que firula, o quê?! O cara é gênio.
— Gênio é cientista, essas coisas. Ele só joga bola.
— Mas quando o assunto é bola, ele é o cara.
— Puro marketing.
Pararam no andar do homem. O outro morador saiu junto do elevador.
— Você mora nesse andar também? Nunca te vi por aqui...
— Não, moro no décimo-oitavo.
— E desceu aqui por quê?
— Pra gente terminar o nosso papo.
— Para com isso. Só tava puxando assunto.
— Você me fala que o Neymar não joga nada e fica por isso mesmo?
— Isso pode continuar outra hora. — Disse isso e entrou de supetão no apartamento.
No dia seguinte, ele abriu a porta do apartamento e deu de cara com o neymarzete.
— Que você tá fazendo aqui?
— Tomando coragem.
— Pra?
— Tocar sua campainha.
— Pra?
— Terminar aquela conversa.
— Tá nessa ainda?
— Você ainda acha que o Neymar é só firula?
— Acho.
Sem dar chance de resposta para o inconveniente, o homem correu para o elevador. O vizinho impediu a porta com o pé:
— Ainda não terminamos.
— Terminamos, sim! — Falou, empurrando o pé do vizinho para fora do elevador.
Horas mais tarde, ao chegar do trabalho, o homem por pouco não atropelou um ser que estava parado feito um cone na sua vaga. Era o vizinho.
— Não é possível! O que você quer de mim, cara?
— Que você reconheça que falou besteira!
— Eu não vou reconhecer porcaria nenhuma. O Neymar é um firulento. E você, um mala!
— Também não concordo com essa sua opinião. — Retrucou, seguindo o homem até a porta do elevador.
O homem questionou:
— Você vai subir de elevador?
— Vou, sim.
— Então, eu vou de escada.
— Eu te acompanho.
— Se você for de escada, eu vou de elevador.
— Por que isso, cara? Tá fugindo da conversa?
— Não, tô fugindo de você.
Com um salto ornamental, o homem voou para dentro do elevador apertou todos os botões e se mandou. Quando entrou no seu apartamento, o interfone tocou. Ele teve a chance de deixar o aparelho tocando, mas atendeu. Se arrependeu novamente: — Pronto.
— Arrá! Me driblou igual ao Neymar, hein? Lance de gênio! Mas eu te peguei. Bora trocar aquela ideia?
— Você?! Vai arranjar alguma coisa pra fazer, dar um trato na sua esposa, se você tiver uma ainda, sei lá!
— Tô descendo aí.
— Se aparecer aqui, eu te dou um tiro. Eu juro. E faço parecer suicídio!
Desligou o interfone e depois o tirou do gancho. Passou todas as travas na porta, preparou um uísque e pensou alto: — Nunca mais puxo assunto com ninguém. E se alguém puxar comigo, eu me faço de surdo.
Deu um gole no uísque e ouviu um barulho na porta da sacada. Virou para lado e viu um vulto. Adivinha quem era.
Maurício Falleiros é escritor.
"Fui pra rua, protestei, li cartazes de pessoas tão indignadas quanto eu, gritei o mesmo coro dos que ali estavam. Então a Copa chegou, e eu (brasileiríssimo) vesti a camisa. Sim, a camisa oficial da Seleção Brasileira custando mais de trezentos reais"

Foi pelo futebol que quis ser médico. Foi por volta dos 14 anos, também. Numa pelada, contra meu primo, só que o mano a mano que tive foi com a bola

A nova legislação dizia bem assim: que cada família se virasse e tomasse tento dos seus doentes mentais, ao invés de atirá-los à clausura, ao abandono, ao esquecimento de um hospício cujos corredores tinham um cheiro de fezes mesclado ao eucalipto dos desinfetantes”

Vem a vida em sua energia secreta e natural, intraduzível e irrevelada, cozinhando devagar suas transformações de cada dia, em silêncio. Conspirando para fazer o nosso tempo passar mais devagar

Mãos ao alto! Joguem ao chão defesas, sustos, ressentimentos, maledicências. Rejeitem desconfianças de toda a ordem. O amor existe e insiste em lhe entregar uma flor

Alguém sugeriu despejar tequila enrustida, colocar fogo naquela coleção medonha ali mesmo e aproveitar o calor da ignorância para derreter alguns marshmallows

"Tenho o amor burro, neurótico e, ainda despido, de um rapaz"
[caption id="attachment_5560" align="alignright" width="800"] Foto de um quadro fixado na parede da casa do cantor e compositor Nando Reis, em São Paulo | Foto: Nando Reis[/caption]
Da janela do ônibus, de "ida e volta de nada para nada", eu via na beira da estrada casas ralas, envolvidas por cercas. É simples a vida das pessoas nas beiras das estradas, atrás de morros, jardins, um estar de suor e paz, mais paz que suor. Eu moraria numa vida simples, pensei assim principalmente porque era o primeiro dia de uma semana de maio, porque eu tenho o amor burro, neurótico e, ainda despido, de um rapaz de vinte e dois anos.
(Com você, por exemplo, moraria em Paris, lavaria pratos; viveria ao lado de Machu Picchu, aprenderia espanhol para compreender intimamente os versos "no me pidas que huya ahora de este huracán/ que nos tiene por completo hechos lágrimas"; iria de mala e cuia para o interior do Mato Grosso, destituía-me do centro do país; iria para uma praia ou pro sul; não importa).
No momento anterior ao meu pensar simples, burro e abstergido de um rapaz, lembro que estávamos sistematicamente parados na esquina. Nos abraçamos embaixo do sol. Um carro riscou a rua. Dali eu sairia aos trapos, para talvez não mais voltar. Antes dali, eu pensei em jurar malquerer, que você despencasse, que morresse, que fosse abatido, que eu o visse agasalhado por um lençol branco eivado de sangue. Mas eu não queria pensar na sua invernada eterna. Sim, o não mais voltar, pois eventualmente eu não mais voltaria, torna-se insanável e justifica meu pensamento em professar alguma desgraça.
(Não suportaria ver teu corpo entre lençol e sangue, eu não perdoaria Deus, não suportaria a morte, pensada ou não, não aceitaria o teu não respirar, o não mover dos dedos, a ausência da expressão de dúvida. Dizem que há linhas colaterais que se cruzam entre neurose e sentimentalismo mal-arrajando, acentuadamente na nossa idade. Tantos linhas e teias erradas na vida!)
Detrás da tarde, do abraço na absorta esquina, houve então a manhã, quando erámos duas criaturas amando num quarto emprestado. Meses antes pisávamos sob descobertas: o teu sexo, o cheiro entre a nuca e o pescoço, o salivar dos instantes que antecediam as mordidas dadas docemente nos ombros, dois corpos deitados na meia-luz. Certo dia, não me lembro se no primeiro, você pulou a janela para não desconfiarem de tua visita; outra vez eu bebi cerveja barata e repetia ao pé do seu ouvido um som incomum, você ria feito plateia de circo; depois trocamos moletons azuis, livros, fotografias, discos; outro dia mesmo chovia e me escondi no seu quarto, alguém de tua família poderia ter flagrado, mas tínhamos saudade, feito fome, incêndio, buraco-negro; eu atravessava o estado, você atravessava a noite, por mais de um ano foi assim; nossos olhares, o meu castanho, o teu verde, se cruzavam em silêncio entre as pessoas; você me espiava, eu era pavão branco, a calda chegava a dois metros, um leque; por mais de um ano e eu tenho tantos detalhes para lembrar...
No quarto emprestado, antes do agora, fui conferido por um tigre, assim me tornei, principalmente pelos seus dizeres de despedidas. Menos triste não dizer que nos perdermos, como também não se diz que perdeu uma pessoa na Frei Caneca, em São Paulo. Como não se diz que o amor acabou, não em palavras. Como tigre preferi o avanço da desonra, do pesar, eu lhe fustiguei, duro, incitei, esmurrei, esbordoei você. Ouvia gritos - os gritos deixam essas situações ainda mais desagradáveis, maçantes. Que não me perguntem o que foi aquilo. Antes de sair fitei-me nas singularidades do quarto, lá fui amado, rico, lascivo.
No centro do ônibus, neste momento, debruçado na poltrona, no fundo do coração o atalho perigoso, a próxima curva cinzenta me levando, as unhas riscando os braços, um cara vindo e indo com uma ferida, carregando uma fuga vergonhosa. Indo para a cidade que diz ser sua, vindo de cenas cravadas, como num cartão-postal. Não há relógio ou tempo que extingue o eternizado, o que poetizei. Recolhido, nenhum definido consolo. Sem saber guardar os soluços, engolindo os soluços de criança, sem saber, se por hora, vale ou não uma crônica e um cigarro.