Adeus
30 maio 2014 às 09h33
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“Tenho o amor burro, neurótico e, ainda despido, de um rapaz”
Da janela do ônibus, de “ida e volta de nada para nada”, eu via na beira da estrada casas ralas, envolvidas por cercas. É simples a vida das pessoas nas beiras das estradas, atrás de morros, jardins, um estar de suor e paz, mais paz que suor. Eu moraria numa vida simples, pensei assim principalmente porque era o primeiro dia de uma semana de maio, porque eu tenho o amor burro, neurótico e, ainda despido, de um rapaz de vinte e dois anos.
(Com você, por exemplo, moraria em Paris, lavaria pratos; viveria ao lado de Machu Picchu, aprenderia espanhol para compreender intimamente os versos “no me pidas que huya ahora de este huracán/ que nos tiene por completo hechos lágrimas”; iria de mala e cuia para o interior do Mato Grosso, destituía-me do centro do país; iria para uma praia ou pro sul; não importa).
No momento anterior ao meu pensar simples, burro e abstergido de um rapaz, lembro que estávamos sistematicamente parados na esquina. Nos abraçamos embaixo do sol. Um carro riscou a rua. Dali eu sairia aos trapos, para talvez não mais voltar. Antes dali, eu pensei em jurar malquerer, que você despencasse, que morresse, que fosse abatido, que eu o visse agasalhado por um lençol branco eivado de sangue. Mas eu não queria pensar na sua invernada eterna. Sim, o não mais voltar, pois eventualmente eu não mais voltaria, torna-se insanável e justifica meu pensamento em professar alguma desgraça.
(Não suportaria ver teu corpo entre lençol e sangue, eu não perdoaria Deus, não suportaria a morte, pensada ou não, não aceitaria o teu não respirar, o não mover dos dedos, a ausência da expressão de dúvida. Dizem que há linhas colaterais que se cruzam entre neurose e sentimentalismo mal-arrajando, acentuadamente na nossa idade. Tantos linhas e teias erradas na vida!)
Detrás da tarde, do abraço na absorta esquina, houve então a manhã, quando erámos duas criaturas amando num quarto emprestado. Meses antes pisávamos sob descobertas: o teu sexo, o cheiro entre a nuca e o pescoço, o salivar dos instantes que antecediam as mordidas dadas docemente nos ombros, dois corpos deitados na meia-luz. Certo dia, não me lembro se no primeiro, você pulou a janela para não desconfiarem de tua visita; outra vez eu bebi cerveja barata e repetia ao pé do seu ouvido um som incomum, você ria feito plateia de circo; depois trocamos moletons azuis, livros, fotografias, discos; outro dia mesmo chovia e me escondi no seu quarto, alguém de tua família poderia ter flagrado, mas tínhamos saudade, feito fome, incêndio, buraco-negro; eu atravessava o estado, você atravessava a noite, por mais de um ano foi assim; nossos olhares, o meu castanho, o teu verde, se cruzavam em silêncio entre as pessoas; você me espiava, eu era pavão branco, a calda chegava a dois metros, um leque; por mais de um ano e eu tenho tantos detalhes para lembrar…
No quarto emprestado, antes do agora, fui conferido por um tigre, assim me tornei, principalmente pelos seus dizeres de despedidas. Menos triste não dizer que nos perdermos, como também não se diz que perdeu uma pessoa na Frei Caneca, em São Paulo. Como não se diz que o amor acabou, não em palavras. Como tigre preferi o avanço da desonra, do pesar, eu lhe fustiguei, duro, incitei, esmurrei, esbordoei você. Ouvia gritos – os gritos deixam essas situações ainda mais desagradáveis, maçantes. Que não me perguntem o que foi aquilo. Antes de sair fitei-me nas singularidades do quarto, lá fui amado, rico, lascivo.
No centro do ônibus, neste momento, debruçado na poltrona, no fundo do coração o atalho perigoso, a próxima curva cinzenta me levando, as unhas riscando os braços, um cara vindo e indo com uma ferida, carregando uma fuga vergonhosa. Indo para a cidade que diz ser sua, vindo de cenas cravadas, como num cartão-postal. Não há relógio ou tempo que extingue o eternizado, o que poetizei. Recolhido, nenhum definido consolo. Sem saber guardar os soluços, engolindo os soluços de criança, sem saber, se por hora, vale ou não uma crônica e um cigarro.