Opção cultural

O quadro em que tudo se desenrola é a ascensão e solidificação no poder de Hitler e Mussolini. De forma simplificada, esses espiões viam-se a si mesmos como tendo sido recrutados pelos soviéticos para “lutar contra o fascismo ascendente”. Obviamente que trair a pátria, nesse processo, para eles, era um mero detalhe
[caption id="attachment_108211" align="alignleft" width="620"] Os cinco espiões de Cambridge[/caption]
Frank Wan
Especial para o Jornal Opção
Conhecidos sob diversas nomenclaturas, os "Cambridge five" (Os cinco de Cambridge), Kim Philby, Donald Duart Maclean, Guy Burgess, Anthony Blunt e John Cairncross, é um grupo de espiões duplos que pertenceram ao topo da hierarquia dos serviços secretos de Inglaterra. São o produto da mais alta educação que a Inglaterra da época podia fornecer, todos pertenciam à elite social e profissional e alguns são filhos da nobreza inglesa. Entre 1940 e 1951 tiveram acesso às informações mais sensíveis do estado inglês. Entraram, todos juntos, num jogo de vai-vem extremamente perigoso em que entregavam segredos à União Soviética e forneciam informações para o estado inglês.
Na Inglaterra, são conhecidos pelos “Cambridge Five” ou pelos “Cambridge Spy Ring”. O termo “Cambridge” aparece na nomenclatura porque foram todos recrutados pela União Soviética durante os anos que estiveram na University of Cambridge. Recrutados pela antiga NKVD e posterior KGB, aparecem nos relatórios e descrições em russo como os “Cinco magníficos”. Em torno deste tema consegue-se estabelecer alguns factos, mas quase tudo está envolto em camadas espessas de mistérios: por um lado poder-se-ia pensar que Ióssif Stálin se beneficiou muito com as informações fornecidas, por outro, quando se vê as opções tomadas quer por Stálin, quer pela Inglaterra (e por outros), as informações que correram tiveram pouca influência sobre os acontecimentos – convém não esquecer que, no âmbito militar e político, nesta época, as informações que provinham dos serviços de inteligência não tinham o peso que ganhariam mais tarde, acreditava-se mais na força bruta das armas.
O que aconteceu realmente? Qual a sucessão de acontecimentos? Como conseguiram as coisas mirabólicas que conseguiram? Que métodos utilizaram? O que realmente os motivou? Penso que nunca teremos respostas completas, mas não restam dúvidas que os “Cinco magníficos” ficam nos anais da história como uma das melhores histórias de espionagem. A arte nunca conseguirá imitar os sucessivos absurdos que compõem a vida.
A história dos cinco está ligada a Cambridge e ao Partido Comunista Inglês.
O Partido Comunista Inglês foi fundado em 1920 e tomou o nome de “Comunist Party of Great Britain”, resultou da fusão de pequenos partidos marxistas. Durante a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Vermelha, o partido angariou muitos apoios de muitas comissões, não era um partido de grandes dimensões e organização, como o francês ou italiano, mas estava muito implementado entre muitos setores da sociedade inglesa – de forma misteriosa, o marxismo sempre foi muito atractivo para muitos membros da “nobreza” e, claro, para os intelectuais.
As eleições de 1924 tinham sido ganhas pelo Partido Trabalhista com Ramsay MacDonald que ficou no poder muito pouco tempo. Seguiram-se medidas de austeridade fortíssimas com violentos cortes orçamentais que vão dar lugar a uma Greve Geral de 1926. É neste ambiente que o economista inglês e agente soviético Maurice Dobb cria a primeira célula comunista em Cambridge. Todos sabiam que Dobb recrutava entre os alunos da faculdade alunos que mais tarde seriam agentes soviéticos. Com o tempo e o agravamento da situação econômico-financeira a célula cresceu, o Crash de 1929 fez o efeito final sobre as mentes: o capitalismo estava falido como modelo econômico e o comunismo era a alternativa.
Um por um, o grupo dos cinco vai acabar reunindo: Kim Philby (nome de código: Stanley), Donald Duart Maclean (Homer), Guy Burgess (Hicks), Anthony Blunt (Tony Jonhson) e John Cairncross (Liszt).
O número cinco é mais simbólico que real: o famoso coronel do KGB Oleg Gordievsky, também ele agente dos Serviços de Inteligência ingleses, entre outros, forneceu listas diversas com nomes fictícios e reais. Todos os livros de Gordievsky são extremamente interessantes, basta lê-los sempre cum granus salis já que, no fim da vida, assegurou uma confortável posição para si e para a sua família colaborando caninamente com a inteligência americana e inglesa.
De uma forma elíptica, sem entrar em detalhes labirínticos argumentativos de que , estou certo, estas mentes seriam capazes, todos concordavam que o “sistema capitalista” era impotente face à crise que estava instalada e que as democracias seriam esmagadas pelo fascismo crescente e que, já sei que alguns olhos se revirarão aqui, só a URSS seria capaz de parar esta avalanche fascista. Obviamente que este caldo é regado por doses maciças de idealismo de que os “acadêmicos” são sempre pródigos.
Comecemos pelo princípio, portanto, por Arnold Deutsch. Por muitas fontes que se consultem é difícil perceber qual é a nacionalidade de Deutsch. Uma coisa é certa: era espião soviético e foi ele que recrutou Tim Philby dando início a todo o processo. Arnold Deutsch, e todo o processo inicial, estarão sempre desfocados pela bruma envolvente.
Deutsch está ligado a Viena de Áustria e toda a elite inglesa da época(e até europeia) era atraída pelo ambiente filosófico e social que se vivia em Viena. Na verdade estava em curso uma espécie de Woodstock à europeia, uma revolução sexual mais ou menos controlada. Os cinco magníficos tinham uma visão “revolucionária”, não apenas política e social, mas também sexual. Vejamos as listas daquilo que erradamente , no meu tempo, se chamava “opções”: dois eram gays, Burgess e Blunt, Maclean era bissexual, Philby e Cairncross eram heterossexuais insaciáveis.
Para quem tenha conhecido, por dentro, os ambientes de Cambridge e Oxford sabe que o termo “ring” traduz facilmente os elos que se estabelecem naqueles meios. No fundo e na prática, bastava recrutar um elemento que os outros capilarmente se juntariam.
Sem entrar em detalhes históricos, o quadro em que tudo se desenrola é a ascensão e solidificação no poder de Hitler e Mussolini. De forma simplificada, os cinco magníficos viam-se a si mesmos como tendo sido recrutados pelos soviéticos para “lutar contra o fascismo ascendente”. Obviamente que trair a pátria, nesse processo, para eles, era um mero detalhe.
Lendo exaustivamente as declarações, livros e relatos de todos vê-se coisas estonteantes: nunca algum se chamou a si mesmo de “soviético”!!! quando se lhes é perguntado qual o objetivo das suas ações todos respondem com o bordão da época “trabalhavam para a paz”... trabalhavam para a paz porque, por exemplo, viam-se “simplesmente” como inimigos de Adolf Hitler – o facto de, para lutar contra o ditador alemão, passarem informações a um regime totalitário era totalmente desvalorizado.
(Continua)
Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, professor e tradutor.

A série representa a derrocada do homem enquanto sujeito contemporâneo. Ao nos contar a história de Draper, Weiner conta a história do sujeito humano em vias de se transformar em pós-moderno, nas bordas das grandes explosões políticas e socio-culturais que já vivemos

“Querem catalanizar a Espanha? Querem catalanizar-se a si mesmos? Querem fazer cultura? Pois terão de fazê-lo em espanhol, na língua em que escreveram Boscán, Campmany, Balmes, Milá, Piferrer, Pí e Maragall..., na língua em que hoje realizam obra de cultura política Maragall, Oliver, Zululeta...”

Como interpretar a utilização transmidiática da mitologia viking? Esse fenômeno possui dois lados. Um é plenamente positivo, pois mantêm viva a mitologia mesmo tendo se passado séculos da Era Viking. O outro, é o perigo de se apresentar todo esse rico cenário de forma simplória, não dando a importância necessária para os documentos históricos

As mulheres em Claudia Machado configuram arquétipos de Medeia, Helena, Maria Madalena, Frida, Bartira, Janaína, Iemanjá, Carmem, Anaïs Nin, Leocádia e dezenas de outras que “se apresentam” com outros nomes

[caption id="attachment_107828" align="alignleft" width="267"] Danielle Darrieux, atriz e cantora francesa[/caption]
Herondes Cezar
Especial para o Jornal Opção
A atriz e cantora francesa Danielle Darrieux morreu no dia 17 de outubro, terça-feira, em Bois-le-Roi, de complicações decorrentes de uma queda. Tinha 100 anos.
Darrieux fez sua estreia no cinema aos 14 anos, em 1931, e atuou em mais de 100 filmes até 2010. Tornou-se logo uma estrela e assim permaneceu até os anos 1960. A partir da década de 1970, esteve mais presente na TV, diminuindo significativamente suas aparições no cinema, embora desempenhando sempre bons papéis.
A melhor parte de sua filmografia são três filmes que fez com Max Ophüls, diretor alemão que fez carreira internacionalmente: "Conflitos de Amor" (La ronde, França, 1950), "O Prazer" (Le plaisir, França, 1952) e "Desejos Proibidos" (Madame de..., França/Itália, 1953).
Ela, que cantou em muitos de seus filmes, foi requisitada para trabalhar em outros países, inclusive em Hollywood. Entre seus filmes memoráveis estão também "Pequena Sapeca" (Quelle drôle de gosse!, França, 1935), "Mayerling" (Idem, França, 1936), "A Sensação de Paris" (The Rage of Paris, EUA, 1938), "A Volta ao Lar" (Retour à l'aube, França, 1938), "Rica, Bonita e Solteira" (Rich, Young and Pretty, EUA, 1951), "Cinco Dedos" (5 Fingers, EUA, 1952), "O Vermelho e o Negro" (Le rouge et le noir, França/Itália, 1954), "Fruto de Verão" (The Greengage Summer, Reino Unido, 1961), "Duas Garotas Românticas" (Les demoiselles de Rochefort, França, 1967), "Um Quarto na Cidade" (Une chambre en ville, França, 1982) e "8 Mulheres" (8 femmes, França/Itália, 2002).
Em 1985, ela recebeu um prêmio César honorário.
Danielle Yvonne Marie Antoinette Darrieux nasceu em 1º de maio de 1917, em Bordeaux, França, mas foi criada em Paris. O ator Olivier Darrieux (1921-1994) era seu irmão. Era viúva do marido do seu terceiro casamento, com quem adotou um filho, já falecido.
Herondes Cezar é crítico de cinema.
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https://www.youtube.com/watch?v=-QXIFJQGqao

O sentido da presença central de Borges neste texto é, pois, ressaltar o prazer da leitura que neste ano, para mim, se complementou em um presente trazido por um amigo, do Uruguai. O volume: “Inquisiciones. Otras inquisiciones". Pois a obra em português eu já a conhecia parcialmente
[caption id="attachment_107796" align="aligncenter" width="620"] Jorge Luis Borges e sua mãe, Leonor Acevedo[/caption]
O nome do argentino Jorge Luis Borges está inscrito na literatura universal como o de quem compôs uma obra desafiadora e complexa porque, principalmente, gerada a partir de sua vida em meio aos livros, donde deriva o emaranhado de cifras, referências e enigmas. Pouco teria Borges experimentado do mundo como paisagem exterior. Sua cegueira progressiva, iniciada na infância, agravou-se aos 38 anos e tornou-se completa aos 56 (tendo falecido aos 87), ficando o poeta impedido de cumprir a agenda de um homem de ação.
“Como a maior parte de meus familiares haviam sido soldados, até o meu tio paterno que chegou a oficial da Marinha –, eu sabia que nunca poderia sê-lo e, muito cedo em minha vida, senti-me envergonhado de ser uma pessoa destinada aos livros e não à vida de ação” (Autobiografia)
Conservador declarado, Borges não deve ser visto, no entanto, como militante do Partido Conservador (ao que chegou a se filiar), e, por conseguinte, desprezado pelos leitores de esquerda, não deve estar sujeito às análises sócio-políticas, mas sim às literárias. Ou, mais apropriado ainda: deve ser lido como são lidos Proust, Kafka, ou, como se deveria ler Coleridge e Léon Bloy — como disse o amigo que na dedicatória do presente apresentou Borges como “uma civilização — mais do que um país [Argentina], talvez um império”. Adequado, pois o próprio Borges sentia-se cidadão do mundo e, não sem razão, o destino o levou a falecer em Genebra.
Ora, se “somos versículos, palavras ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que existe no mundo; ou melhor dito: é o mundo...” (conforme Léon Bloy, citado pelo próprio Borges) — ele, Borges, é um capítulo único e desafiador desse livro coletivo que se escreve com sofreguidão abaixo do Equador.
Borges nasceu em 1899, embora para muitos, incluindo Carpeaux, valha a mentira que o jovem autor contara ao editor da revista “Nosotros”, Alfredo Bianchi: “nasci em 1900!” Tal mentira é leve para um escritor que falsificou histórias e fabricou uma miríade de lendas com o seu saber enciclopédico e seu humor peculiar, principalmente quando escrevendo em parceria com o amigo Bioy Casares (criando o pseudônimo de Bustos Domecq, escreveram “La leche cuajada de La Martona”, 1935). Esta iniciativa publicitária, tida como ação involuntária, serviu de ponto de partida à colaboração literária entre Borges e Bioy Casares, que levaria à publicação de contos, traduções, críticas de livros e à organização da coleção de contos policiais "El Séptimo Círculo".
[caption id="attachment_107798" align="aligncenter" width="620"]
Borges e seu amigo, o também escritor Adolfo Bioy Casares[/caption]
Sim, Borges pode ter mentido, admitem os biógrafos Helft e Pauls, autores de uma interessante “biografia ilustrada” (“Nove ensaios ilustrados[i]”). É como se o velho bibliotecário dissesse, principalmente em “A história universal da infâmia”: “posso ter mentido, mas tudo que disse tem uma fonte e é nessa zona de verdade desestabilizada onde o pecado da mentira é mais abstrato e mais perturbador”. Ou, da fonte original: “a verdade não se diz; se delata, sempre parcialmente, naquilo que se diz”.
Segundo Otto Maria Carpeaux, Borges passou rapidamente do “futurismo”, a poesia radical de Huidobro (1918), à criação de um sistema próprio de escrita. Para isso, Borges“integrou os elementos irracionalistas do criacionismo num sistema filosófico cuja tese principal é o caráter cíclico do Tempo e, portanto, a reversibilidade de todos os acontecimentos. Mas em vez de um tratado de metafísica, escreveu contos filosóficos, as “ficciones” altamente fantásticas, engenhosamente construídas e baseadas em notas eruditas diabolicamente inventadas, com a ajuda de toda a erudição fabulosa de que Borges dispõe realmente. É uma arte das mais requintadas, algo fria e desumana, sempre fascinante: obra significativa do século XX. Sua influência internacional se confundirá, em parte com a obra de Kafka[ii]”.
Interessa sobremodo ao leitor de Borges um título como este de Jorge Schwartz (“Borges Babilônico: Uma Enciclopédia"), um volume de 580 páginas, que levou mais de 20 anos para ser coligido com a ajuda de 60 especialistas, com mil verbetes sobre o argentino mais universal de que se tem notícia nas letras. Certamente, não pretendo aqui o enciclopédico pelo tom “dubitativo e conversado” de minha crônica, como afirma o próprio J.L.B. em “A penúltima versão da realidade. [iii]”
O sentido da presença central de Borges neste texto é, pois, ressaltar o prazer da leitura que neste ano, para mim, se complementou em um presente trazido por um amigo, do Uruguai. O volume: “Inquisiciones. Otras inquisiciones[iv]”. Pois a obra em português eu já a conhecia parcialmente.
De lá, já colhi “A flor de Coleridge”, de onde se aprende que é perdoável que por um período de aprendizado sigamos o conselho de Rodrigo Gurgel – copiar nossos escritores prediletos, imitá-los até que o estilo desses em nós impregnado, nos revele o nosso próprio estilo:
“Aqueles que copiam minunciosamente um escritor fazem-no de modo impessoal, fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se afastar dele em um ponto é afastar-se da razão e a ortodoxia. Durante muitos anos, eu acreditei que a quase infinita literatura estava em um homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Cansinos-Asséns, foi De Quincey” (Jorge Luis Borges, em Outras inquisições).
[caption id="attachment_107808" align="alignleft" width="260"]
"El factor Borges", de Helft Nicolás e Alan Pauls[/caption]
Naturalmente, tateando, lendo com dificuldade e/ou ouvindo livros lidos por secretárias (entre essas, sua mãe), à medida que a cegueira avança, o escritor encontra seu próprio estilo à custa de muita leitura e alguma cópia, até ser considerado um autor enciclopédico. Seu amor à biblioteca e às enciclopédias vem da infância: “meu pai tinha uma grande biblioteca, principalmente composta de livros ingleses, e me autorizou a escolher o que quisesse, que não me recomendaria nada e que, se um livro me causasse tédio, que o deixasse e partisse para outro. ” Com a mãe (Leonor Acevedo), travou uma aliança, que designou por “sociedade edipiana de uma eficácia impecável” (Helft/Pauls) – ela lia para o filho já sofrendo da cegueira, ele a educava. Daí se extrai uma estranha imagem que a parceria mãe e filho forjou: “um escritor cego, prematuramente envelhecido, de fama mundial, que guia pelo mundo das letras a uma mulher mais velha, frágil e irredutível a um só tempo, ambos suspensos a um tempo fora do Tempo”.
A ação em Borges é, assim, uma ação literária de um conservador que treina a mente para os aforismos, as frases lapidares e uma sabedoria silenciosa, mesmo quando faz uso de emissões radiofônicas ou televisivas[v] – superando sua dificuldade de falar (“los problemas de Borges para hablar fueron tan célebres y tan persistentes como los de sus ojos” – cf. Helft/Pauls). Entanto, fala, à rádio, à TV, aos documentários cinematográficos, com certo pudor e certo alheamento de si mesmo, quando fala de Borges, fala mais de outros – Spinoza, Stevenson, Whitman, Bloy...Herman Hesse: “todo homem inclui toda a Humanidade”.
Compreender toda essa multidão e essa miríade de conhecimentos, eis a tarefa a que se propôs o argentino Jorge Luis Borges, avesso às paixões imediatas do jogo, do fútil e do passageiro – apegado a uma Eternidade que, no entanto, negava ou discutia cartesianamente, às vezes, ancorando-se em Spencer e Spinoza para circundá-la. Em “A duração do Inferno”, Borges confessa que “nenhum outro assunto da teologia tem igual fascinação e poder” – lembrando-nos dos infernos de Gibbon, Dante, Quevedo, Torres Villaroel e Baudelaire, concluindo que “há eternidade de céu e de inferno porque a dignidade do livre arbítrio assim o necessita; ou temos a faculdade de construir para sempre ou a individualidade é ilusória. A virtude desse raciocínio não é lógica, é muito mais: é inteiramente dramática. [...] Teu destino é coisa veraz, nos dizem; condenação eterna e salvação eterna estão no teu minuto; essa responsabilidade é tua honra. É um sentimento parecido com o de Bunyan:
“Deus não brincou ao converter-me; o demônio não brincou ao tentar-me; nem eu brinquei ao mergulhar em um abismo sem fundo, quando as aflições do Inferno se apoderaram de mim e tampouco devo brincar agora ao contar. (Grace abounding to the chief of sinners, the preface).[vi]
Desejando continuar reforçando a seriedade de Bunyan, citada por Borges, aos amigos agnósticos que dizem não acreditar no Paraíso, eu costumo responder que ele existe e consta de XXXIII Cantos, conforme a poesia de Dante. Ora, esse não é o caso aplicável ao escritor argentino, para quem a especulação parece a este cronista mais um temor de enfrentamento da questão da fé, que Bloy, para citar um dos escritores favoritos de Borges já o fazia com a dúvida cristã impregnada à sua cabeça universal. Em um artigo dedicado a J.W. Dunne, Borges afirma:
“Os teólogos definem a eternidade como a simultânea e lúcida posse de todos os instantes do tempo e declaram-na um dos atributos divinos. Dunne, surpreendentemente, supõe que a eternidade já nos pertence e que isso é corroborado pelos sonhos de cada noite. Nestes, segundo ele, confluem o passado imediato e o imediato porvir. Na vigília percorremos o tempo sucessivo a uma velocidade uniforme, no sonho abarcamos uma área que pode ser vastíssima. Sonhar é coordenar os vislumbres dessa contemplação e com eles urdir uma história, ou uma série de histórias. Vemos a imagem de uma esfinge e a de uma botica e inventamos que uma botica se transforma em esfinge. No homem que amanhã conheceremos colocamos a boca de um rosto que nos olhou ontem à noite... (Schopenhauer escreveu que “a vida e os sonhos são folhas de um mesmo livro e que as ler em ordem é viver; folheá-las, sonhar. ”). Dunne garante que na morte aprenderemos o feliz manejo da eternidade. Recuperaremos todos os instantes de nossa vida e os combinaremos como bem entendermos. Deus, e nossos amigos, e Shakespeare colaborarão conosco. Diante de uma tese tão esplêndida, qualquer falácia cometida pelo autor resulta insignificante. ”
A apreciação que Borges tinha por Léon Bloy é notável – ele, Bloy, que é um desses escritores que a crítica e os livreiros decidem fazerem-se esquecidos por uma quadra e os leitores o “descobrem”, como neste caso em que vem sendo cada vez mais lembrado, aliás, já merecendo traduções e reedições em português do Brasil. Pois bem, é de Bloy a citação com que encerro esta primeira crônica sobre Borges[vii]:
“Léon Bloy escreveu: "Não há na terra um ser humano capaz de declarar quem é. Ninguém sabe o que veio fazer neste mundo, a que correspondem seus atos, seus sentimentos, suas ideias, nem qual é seu nome verdadeiro, seu imorredouro Nome no registro da Luz... A história é um imenso texto litúrgico no qual os jotas e os pontos não valem menos que os versículos ou capítulos inteiros, mas a importância de uns e de outros é indeterminável e está profundamente oculta" (L´Âme de Napoléon, 1912). O mundo, segundo Mallarmé, existe para um livro; segundo Bloy, somos versículos, ou palavras, ou letras de um livro mágico, e esse livro incessante é a única coisa que há no mundo: melhor dizendo, é o mundo.”
Do capítulo deste universal “livro mágico” intitulado Borges, deixo essas minguadas referências e, aos meus cinco leitores, a recomendação entusiasmada que o leiam em português, ou em espanhol, e que o possam decifrar, saboreando o ritmo da língua original do autor ou as boas traduções que temos na língua de Camões.
É como vem se tornando um hábito – um velho hábito destemido, frente ao ritmo de 140 caracteres da atualidade, findo com dois poemas de Borges, traduzidos pelos poeta gaúcho Carlos Nejar[viii] e Manoel Bandeira:
LABIRINTO (Borges, na tradução de Carlos Nejar)
Não haverá nunca uma porta. Estás dentro
E o alcácer abarca o universo
E não tem um anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor de teu caminho
Que teimosamente se bifurca em outro,
Que obstinadamente se bifurca em outro,
Tenha fim. É de ferro teu destino
Como teu juiz. Não aguardes a investida
Do touro que é um homem e cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe. Nada esperes. Nem sequer
No negro crepúsculo a fera.
PÁTIO (Borges, na tradução de Manuel Bandeira)
Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
Por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e
de uma cisterna.
NOTAS
[i] HELFT, Nicolás e PAULS, Alan. “El factor Borges. Nueve ensayos ilustrados”, Fondo de Cultura Económica de Argentina, 1ª. Ed., 2000. 159 p.
[ii] CARPEAUX, Otto Maria. “História da Literatura Ocidental”, vol. 8, p. 2079.
[iii] BORGES, J. Luis. “Discussão”. Tradução de Claudio Fornari., 3ª. Ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1994, p.9
[iv] BORGES, Jorge Luis. “Inquisiones. Oras Inquisiciones, 3ª. Ed., Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Ed. Debolsillo, 2016, 389 p.
[v] Neste link, Borges é entrevistado por Antonio Carrizo, quando da celebração dos 80 anos do Autor. Link consultado em 12/10/17 https://www.youtube.com/watch?v=dUZJGhPqspQ
[vi] Cit. Por Borges em Discussão, p.70 (vide ref. iii acima).
[vii] BORGES, J.Luis. cf. ref. iv, p.288, tradução minha – artigo de 1951 intitulado “Del culto de los libros”.
[viii] BORGES, Jorge Luís. Elogio da sombra. Poemas. Tradução Carlos Nejar e Alfredo Jacques.

Em 2 horas e 40 minutos, ex-beatle conquista mais uma vez fãs mineiros com apresentação recheada de simpatia e hits à altura da energia do músico, aos 75 anos

Sob a regência de Neil Thomson, Regente Titular e Diretor Artístico da Filarmônica de Goiás e idealizador da série de eventos do "Música Impopular", a soprano britânica Alice Zawadzki interpretará “Cabaret Songs” dos compositores Spoliansky e Hollaender e ainda, uma das obras musicais mais marcantes da era modera, “Pierrot lunaire” de Schoenberg. A suíte da “Ópera dos três vinténs” também integra o programa.
A segunda etapa da série "Música Impopular" acontece no Teatro do Instituto Federal de Goiás no dia 19 de outubro, às 20h e no Centro Cultural Martim Cererê no dia 20 de outubro, às 21h. Zawadzki atua intensamente como solista e como colaboradora em consagrados festivais do Reino Unido, incluindo o London Jazz Festival, Vortex, Celtic Connections e ainda em festivais internacionais, como o Taipei International Jazz Festival (Taiwan), Coventry Calling (Massachusetts, EUA) e Sűdtirol Jazz Festival (Itália).
SERVIÇO
Data: 19 de outubro de 2017 (quinta-feira), 20h
Local: Teatro do IFG
Solista: Alice Zawadzki (soprano)
Regente: Neil Thomson
Programa
Weill: Kleine Dreigroschenmusik (Suíte da “Ópera dos três vinténs”)
M. Spoliansky e F. Hollaender: Cabaret Songs
A. Schoenberg: Pierrot Lunaire, Op. 21
Data: 20 de outubro de 2017 (sexta-feira), 21h
Local: Centro Cultural Martin Cererê
Solista: Alice Zawadzki (soprano)
Regente: Neil Thomson
Programa
Weill: Kleine Dreigroschenmusik
M. Spoliansky e F. Hollaender: Cabaret Songs
A. Schoenberg: Pierrot Lunaire, Op. 21
ENTRADA GRATUITA

[caption id="attachment_98875" align="alignleft" width="278"] Capa do livro "Sobre a Tirania: vinte lições do século XX para o presente" (Companhia das Letras, 2017, 168 páginas)[/caption]
No livro Sobre a Tirania: vinte lições do século XX para o presente (Companhia das Letras, 168 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), recém-publicado no Brasil, o historiador americano Timothy Snyder oferece ao leitor uma lista de dezessete livros que, se lidos com atenção, podem servir como verdadeiras armas contra a irrupção de regimes políticos tirânicos.
A lista se encontra na "lição número 9", intitulada "Trate bem a língua", na qual podemos ler, como advertência inicial, o seguinte: "Evite proferir as frases que todo mundo usa. Reflita sobre sua maneira de falar, mesmo que apenas para transmitir aquilo que você acha que todos estão dizendo. Faça um esforço para afastar-se da internet. Leia livros."
Pois bem, então, o que ler? É esta a questão que Snyder procura responder. E sua resposta começa pela literatura, indo de um clássico incontestável até um romance infantojuvenil de grande sucesso editorial:
"Qualquer bom romance estimula nossa capacidade de pensar sobre situações ambíguas e de julgar as intenções alheias. Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, talvez sejam adequados a nosso momento. O romance Não vai acontecer aqui, de Sinclair Lewis, talvez não seja uma grande obra de arte. Complô contra a América, de Philip Roth, é melhor. Um romance conhecido por milhões de jovens americanos e que oferece um relato de tirania e resistência é Harry Potter e as relíquias da morte, de J. K. Rowling. Se você, seus amigos ou seus filhos não o entenderam assim da primeira vez, vale a pena lê-lo de novo.”Após a indicação desses cinco romances, Snyder indica onze livros de não ficção, que abordam a política e a história do século XX. E finaliza a lista indicando a leitura das Sagradas Escrituras, da tradição judaico-cristã. Para tanto, argumenta:
“Os cristãos podem retornar ao seu livro fundamental, que sempre é muito oportuno. Jesus ensinou que ‘é mais fácil um camelo passar através do buraco de uma agulha do que um único rico entrar no reino de Deus’. Devemos ser modestos, porque ‘quem se exaltar será humilhado e que se humilhar será exaltado’. E é claro que temos de nos preocupar com o que é verdadeiro e com o que é falso: ‘E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará’.”Reuni, abaixo, todos os dezessete livros indicados. A maior parte está traduzida e publicada no Brasil. Referencio todas as edições, tanto as disponíveis no mercado editorial nacional quanto aquelas que ainda não estão. É uma ótima oportunidade de leitura, sobretudo para quem está de férias!
Segue a lista:

















Sobre o autor:


O autor valeu-se do conhecimento dos laços familiares da biografada e de pesquisas de arquivo para estabelecer sua trajetória, marcada especialmente por sua morte num acidente de avião

“Eu sou o poeta mundano/ Aquele que não é/ Arte pela arte./ Sou, sim, parte sobre parte/Plano sob plano.” Com esses versos do “Prefácio”, Alex Sugamosto estampa a força de sua dicção poética e sua proposta artística

Um filme até pode “não ser para todos os gostos”, mas essa não pode ser sua ambição original, sob pena de ter que sofrer as consequências por tal opção alternativa, que pode ser genuína, mas raramente fica bem em um blockbuster

Estando na Galeria do Uffizi, foi possível esquecer o que deixara na Lombardia, ao sair de Milão; no acervo tão procurado, eu estava na verdade à espera ansiosa de dois quadros pelos quais tenho uma paixão secular – as musas visitam a Primavera e o Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli
[caption id="attachment_107155" align="alignleft" width="620"] "Nascimento de Vênus", pintura de Sandro Botticelli[/caption]
Sabe-se que a crônica de viagem tem uma tradição e estudá-la, como de resto a todos os clássicos, é um dever do cronista (e do escritor em geral), segundo o velho Machado de Assis: “estudar-lhes as formas mais apuradas da linguagem, desentranhar deles mil riquezas, que, à força de velhas se fazem novas, não me parece que se deva desprezar. Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos; com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”, para concluir que “escrever como [Miguel Eanes] Azurara ou Fernão Mendes seria hoje um anacronismo insuportável. Cada tempo tem o seu estilo.[i] ”
Insisto, no entanto, em um ponto que já estivera presente na crônica de Machado (Notícia da atual literatura brasileira, 1873) – se à época, “feitas as exceções devidas não se leem muito os clássicos no Brasil ”; hoje, passados 143 anos, simplesmente, não se lê no Brasil – simples assim; tendo a preguiça de ler levado os cronistas ao texto telegráfico à la Twitter – ao que, prefiro os clássicos e os antigos – retroativo até mesmo ao Eanes e sua Crônica da conquista da Guiné, celebrada por Cristóvão Tezza, no romance “O professor”.
Portanto, parafraseando Machado, concedo “Ao leitor, as batatas...” e também os cafés, os molhos, as massas finas, os quadros vistos, as iguarias todas, todos os vinhos não bebidos pelo cronista – que apesar de não degustá-los mais, é capaz de imaginá-los, estando abstêmio, capta seu frescor, suas notas frutadas e seus aromas; ao leitor, o sumo dos livros lidos na língua de Giacomo Leopardi, o cansaço de longas caminhadas e o repouso merecido, a sombra e o sol da Toscana, todas as “mágicas que a Graça do Senhor faz são Poesia” (Jorge de Lima) – poesia de que a Toscana foi grande beneficiária; os campos, os ciprestes italianos; tudo, enfim, da Beleza que inunda os mágicos caminhos dessa pródiga região italiana. Que estes, no entanto, sejam servidos à moda italiana.
Antipasto: esta crônica é como um campo arado à espera de chuva na Toscana, o espaço pronto para receber as sementes – as ideias, as provocações. Esta crônica é o espaço em que se misturam o Sagrado e o profano como um cantuccio que deve ser saboreado embebendo-o no vino santo – mas isso já seria a conclusão, não nos adiantemos no tempo da crônica e da refeição.
Respirando o ar da Toscana, refaço a subida da estradinha de chão, ladeada por ciprestes que nos levava, minha mulher e eu a ser recebidos com fidalguia pelo casal Giuseppe e Antonella, na propriedade agrícola San Fedele, próximo à cidade de Siena. A Toscana, que já apresentara suas cartas em Milão e Florença, deveria ter em Siena apenas um rito de passagem, mas que passagem saborosa, como um antepasto a uma bela refeição regional. Os ciprestes verdes em contraste com a terra amarela da região nos fazem viajar duplamente, pois que espiritualmente regamos o canteiro das memórias para a chegada de novas sensações e sabores – o que incluiu a coleta de funghi porcini na floresta quatrocentona da San Fedele.
Primo piato: porque o ato de viajar é algo que envolve o desconforto dos deslocamentos (principalmente os intercontinentais), mas também muita alegria espiritual, é preciso se preparar para a viagem. Em geral, chega-se faminto ao (e do) destino. Neste ponto, eu me ponho em desacordo com Xavier de Maistre, no isolamento (obrigatório no caso dele), mas concorde à sua conclusão quando pontua que “Minha alma é de tal modo aberta a toda sorte de ideias, de gostos e de sentimentos; recebe tão avidamente tudo o que se lhe apresenta! […] Não há gozo mais atraente, no meu entender, do que o de seguir a pista das próprias ideias (…) ”
O grande problema começa quando me salta à memória a frase de José Guilherme Merquior, para quem o homem comum é capaz de uma ou duas ideias originais. Assim, pois, há que se dar atenção aos que se instruem no rapto das ideias – o roubo da Beleza, louvado por Ortega y Gasset, para quem “Deus pôs a beleza no mundo para que fosse roubada. ”
Secondo piato. Ora, por não se tratar de rapto de mulher, coisa mais complexa e atemporal, declaro-me submisso a Ortega, e sua taxativa citação: “a beleza foi feita para ser roubada” – título da bela seleta de ensaios do pensador espanhol organizada pelo professor Ricardo Araújo, da UnB; o que fica bastante bem provado no estudo de caso de Machado de Assis, como um plagiário, estudo este organizado pelo professor João Cezar de Castro Rocha, que nos provou com sua seleta de textos em torno de Machado de Assis que não há vilania no autor como um plagiário[ii].
Nossa ideia inicial para esta viagem era fixar-nos em uma região e percorrê-la nos dias disponíveis com a mais sincera abertura a descobrir-lhes as pistas do gozo deste prolongado período “sabático” que vivemos.
Naturalmente, quem vai à Toscana, tem o mandatório encontro marcado com Boticelli e Leonardo. Ao primeiro, compareci embevecido e saí ainda mais emocionado apreciador.
Com o segundo, fiquei ainda mais bem impressionado com as lições que ele tão bem aprendeu como discípulo do mestre Andrea del Verrocchio. Abandonei a um canto o meu Ortega e seu ensaio sobre Leonardo e a Mona Lisa, receoso de que isso levaria a crônica a outro destino. E como não cogitava de rapto de mulher, mas de sabores, de momentos tão voláteis eis que me não me aventurava a reescrever o ensaio do mestre espanhol. Simplesmente, ia como caminhante, pelos campos da Toscana, na companhia de Santa Caterina de Sena e de outro espanhol – o poeta Antonio Machado.
Não compareci ao que Milão mais me prometera, por anos a fio. Infelizmente, as medidas de restrição de acesso que limitam os visitantes a no máximo vinte e cinco (por período de visitas), me impediram de ver a “Santa Ceia” de Leonardo, na histórica parede do antigo refeitório dos frades, na igreja Santa Maria da Graça em Milão, cuja recuperação recente era anunciada com entusiasmo (afinal exigira 22 longos anos!), isso tudo depois das que fizeram Bellotti (1720) e Mazza (1770).
A obra do mestre Leonardo não morreu, como previra Ortega, tampouco foi “perdida como uma pérola ferida” como queria Gabriel D´Annunzio em “Ode per la morte di un capolavoro”.
E porque havia Boticelli e a Galeria do Uffizi, com sua arte maior e sua coleção inesquecível, foi possível esquecer o que deixara na Lombardia, ao sair de Milão; no acervo tão procurado, eu estava na verdade à espera ansiosa de dois quadros pelos quais tenho uma paixão secular – as musas visitam a Primavera (ou A Primavera) e o Nascimento de Vênus de Sandro Boticelli.
Dessas duas importantes obras, estive bem próximo e me emocionei ao lembrar de uma conversa que mantive com Pietro Maria Bardi, a quem tive a honra de conhecer e conviver durante a avaliação do acervo da Pinacoteca da Caixa Econômica Federal, no Museu da entidade, em Brasília, nos idos dos anos 1980.
Ele, Bardi, que me presentou com o seu “Sodalício com Assis Chateaubriand”, teria dito sobre Boticelli o que não me apresso a reescrever: “Este pintor é uma expressão típica do ambiente em que viveu: católico e pagão a um tempo, ocioso e asceta, gozador da fantástica mesa dos Médici e chorão da humilde seita de Savonarola, apreciador de disputas teológicas e pintor de Vênus muito nuas e, ao mesmo tempo, das mais castas madonas, Botticelli carrega no seu íntimo a crise de seu século. Pensai que Botticelli teria podido pintar “A Primavera” e a “Adoração dos Reis Magos” fora de Florença, fora da cidade em que as orgias principescas formavam um todo com a alegria popular, a luta religiosa acirrada, a poesia no seu auge, o espírito da renascença borbulhante? Cada um dos florentinos do século XV ofereceu a Botticelli, pelos caminhos milagrosos ao longo dos quais o espírito se manifesta nos seus tecidos misteriosos, algo de imperceptível: as recordações evanescentes estranhas da tonalidade duma cor, o sentido duma forma, de uma atmosfera, de uma atitude, de uma fisionomia, de uma melodia, percepção dos limites que na natureza separam o necessário do supérfluo. A obra de arte na nasce por si mesma como fato egoisticamente íntimo (…) "
Pois bem, ele, Bardi, me dissera que sobre este quadro um estudo das espécies florais retratadas pelo pintor toscano recenseara mais de duas centenas. Não o comprovei nem vi prova que o refute. Fico, pois, com esse número na memória, até que encontro a referência de cinco centenas!
Dolce & Café. Come-se muito bem na Toscana – come-se muito e o paradoxo francês parece aplicar-se aos toscanos, pois são na sua maioria esbeltos. O cronista volta com uma esposa pronta a repetir as receitas aprendidas na Scuola de Cucina de Lella (Siena) e um apetite voraz de alguém que quer manter a forma de sexagenário magro.
Depois de três semanas longe de casa, volto ao lar onde me esperam livros diversos – dois Eças; um Borges, um Camilo e o livro de poemas “A estante” – de Felipe Fortuna. Aguardam-me os campos ressecados do cerrado goiano e as rotinas que foram suspensas com a viagem, recebem-me com afagos os que nos amam: filhas, genros e netos. Eu e minha mulher felizes com os afetos, não nos sentindo mais “em férias”, mas sim no gozo de um “ano sabático” que se deseja permanente.
As novidades da volta, os aspectos oníricos que embalam quase toda viagem, se esvanecem quando se confrontam com a realidade. Se a arte de viajar – como eu disse alhures, repetindo Xavier de Maistre consistisse em viajar em torno do próprio quarto (ou à roda do meu quarto, na tradução de Marques Rebelo), pois bem, fosse isso verdade absoluta – mesmo para os punidos com a prisão domiciliar (no caso de Maistre por conta de um duelo!), ainda assim, repito o que disse há dois anos atrás, as companhias aéreas estariam em maus lençóis e os guias de viagem seriam desnecessários e nós, amantes da viagem, em grande perda espiritual, mas isso já é assunto para a próxima quinta-feira aqui neste espaço.
Dito isso, deixo meus cinco leitores com um trecho da tradução Italo Eugênio Mauro para dois trechos dos Cantos IV e V do Paraíso de Dante n´ A Divina Comédia [iii]que adaptados me parecem a esse manjar que não se troca por outros bens.
“Entre dois pratos iguais, atraentes
e a igual distância, antes morreria
de fome, um homem, de lhes pôr os dentes;
e entre dois lobos não se moveria
um cordeiro, temendo o duplo apuro,
e, dois chacais, um cão estacaria.
Por meu silêncio assim não me censuro,
ante as dúvidas minhas colocado,
nem me louvo por tê-lo mais seguro.
Calava eu, mas, do meu afã, pintado
tinha no rosto o semblante fiel,
mais quente que se fora pronunciado.
E fez Beatriz o que usara Daniel,
Nabucodonosor livrando da ira
que injustamente o tornara cruel.
[...]
“Do principal estás ora informado,
mas, pois que a Igreja nisso dá dispensa,
o que ao meu dito soa desencontrado,
ainda é essencial à mesa a tua presença,
porque o farto manjar que hás ingerido
ajuda quer pra que seu ganho vença.
Abre ora a mente pra o que te elucido,
e o guarda, que não faz erudição,
sem o reter, ter somente entendido.
[...]
“Pensa, leitor, se o que ora delineio
não procedesse, quão te iria causar,
por mais saber, angustioso anseio. ”
NOTAS
[i] ASSIS, Machado de. Machado de Assis: crítica, notícia da atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28 - 34: Instinto de nacionalidade. (1ª ed. 1873).
[ii] The Author as Plagiarist. The case of Machado e Assis (Center for Portuguese Sudies and Culture, University of Massachusetts Dartmouth, 2015). Link consultado em 07/10/17: https://www.academia.edu/26051439/The_Author_as_Plagiarist_-_The_Case_of_Machado_de_Assis
[iii] ALIGHIERI, Dante. “A divina comédia: paraíso”. Tradução e notas de Italo Eugenio Mauro. São Paulo; Ed. 34, 1998. Cantos IV e V, p. 31; 38 e 41.

Os contos “Crostinhas de leite” e “Meu quintal” apresentam os elementos típicos do universo infantil, com atmosferas específicas de experiências pelas quais as crianças passam, seja o simples ato de beber leite ou de brincar no quintal de casa