Imprensa
Tancredo Neves e Ulysses Guimarães foram grandes políticos. Raposas astutas que, na ditadura, contribuíram, de maneira decisiva, para a retomada da democracia. Na tradição deles, da política com grandeza, o que não quer dizer santidade, restam poucos. Um deputado federal de Pernambuco é um deles, como mostra o excelente livro “Roberto Freire — A Esquerda Sem Dogma”.
O livro, editado pela Barcarolla e pela Fundação Astrojildo Pereira, tem prefácio do poeta Ferreira Gullar e introdução do jornalista Milton Coelho da Graça (organizador da obra).
Roberto Freire é o presidente nacional do PPS, um partido socialista democrático e avesso ao dogmatismo típico das esquerdas. O parlamentar é um defensor da democracia como valor universal. Com a queda do comunismo, não mudou de lado, à direita, mas também não se fez servo dos velhos ranços do esquerdismo.

[caption id="attachment_6353" align="alignright" width="310"] García Márquez e Fidel Castro: amizade estreita levou o escritor a se omitir em relação à ditadura protagonizada pelo líder máximo de Cuba[/caption]
Eric Nepomuceno, um dos jornalistas e tradutores brasileiros mais qualificados, se impôs uma tarefa inglória: em vários artigos, procura demonstrar que o escritor colombiano Gabriel García Márquez era um campeão dos direitos humanos, inclusive em Cuba. Nepomuceno não tem o hábito de mentir, mas possivelmente está contando a história de maneira parcial. No artigo “Fidel Castro foi o ponto cego de Gabriel García Márquez”, publicado no jornal argentino “Clarín” na segunda-feira, 2, o ensaísta Enrique Krauze nuança as relações entre o escritor e o ditador.
Ao contrário do que escreve Nepomuceno, amigo e fã do escritor, Krauze é contundente na crítica, mas usando as próprias palavras de García Márquez. O ensaísta mexicano lembra que García Márquez escreveu que “todos os ditadores... são vítimas”. A partir de 1975, o escritor adotou Fidel Castro como padrinho. “Em três famosos artigos (uma série intitulada ‘Cuba: da cabeça aos pés’), García Márquez escreveu sobre a ‘comunicação quase telepática’ que percebia entre Castro e o povo cubano, e afirmou que ‘esta tem sobrevivido intacta à corrosão insidiosa e feroz das exigências diárias do poder’ e que Castro ‘estabeleceu todo um sistema de defesa contra o culto à personalidade’”. Ora, a própria adoração de García Márquez pelo ditador resulta deste culto... internacional.
Nos artigos, García Márquez chamou Fidel Castro de “repórter genial”, “‘cujos imensos informes orais’ convertiam o povo cubano em ‘um dos mais bem informados do mundo sobre sua própria realidade”. Como se sabe, nenhuma publicação crítica ao governo ditatorial pode circular no país. A pobreza crescente do povo cubano contradiz o “otimismo em gotas” dos discursos e textos tediosos do ditador.
Numa entrevista, o repórter Alan Riding, do “New York Times”, perguntou para García Márquez por que não se mudava para Cuba, um país supostamente maravilhoso. O autor de “Ninguém Escreve ao Coronel” respondeu, candidamente: “Seria muito difícil para mim... adaptar-me a essas condições. Estranharia muitas coisas. Não poderia viver com essa falta de informação”. Ah, os cubanos podem?! Sim, porque a voz de Deus para eles é a de Fidel — o repórter global —, ao menos no entendimento do escritor.
Inquirido sobre as relações com Fidel Castro, um ditador cruel, García Márquez disse que a amizade era, para ele, um “valor supremo”.
Em 1989, quando García Márquez estava morando em Cuba — provisoriamente, é claro —, foram julgados o general Arnaldo Ochoa e os irmãos Tony e Patricio de la Gaurdia. Acusados de narcotráfico e de trair a revolução, Ochoa e Tony foram condenados à morte. (Fidel havia aceitado um pacto com um cartel das drogas, porque Cuba precisava de dólares para aquisições internacionais, mas, quando a CIA descobriu o pacto, o ditador decidiu culpar alguns militares). Ochoa era um herói da guerra em Angola, na África, e poderia liderar uma oposição mais consistente e agregadora de aliados do regime e de dissidentes. “O coronel de la Guardia era um amigo íntimo de García Márquez. Sua filha, Ileana, implorou ao escritor que intercedesse ante Castro para salvar a vida de seu pai. Mas o colombiano não fez nada. Ileana contou que este [García Márquez] inclusive chegou a observar, sem ser visto e junto a Fidel e Raúl Castro, uma parte do julgamento”, escreve Krauze.
Numa feira do livro em Bogotá, Susan Sontag elogiou a obra de García Márquez, mas disse-lhe que “era imperdoável que não tivesse elevado a voz contra as ações do regime cubano”. O escritor frisou que mantinha relações de amizade com Fidel Castro e que isto era incontornável. Mas ressalvou: “Não saberia calcular a quantidade de prisioneiros, dissidentes e conspiradores, a quem ajudei, em absoluto silêncio, para que fossem liberados da prisão ou pudesse emigrar de Cuba nos últimos 20 anos”. Ele admitiu que os encarceramentos eram injustos e, num ato falho, sugeriu que eram muitos os prisioneiros e perseguidos. Mas não quis fazer nenhuma denúncia pública a respeito do sistema, porque as prisões não eram circunstanciais.
"O Capital no Século XXI” (Intrínseca, 768 páginas, tradução de Monica Baumgarten de Bolle), do economista Thomas Piketty, já pode ser pedido nos portais de algumas livrarias, como a Cultura. Bombardeado pelo “Financial Times”, que listou alguns erros, por economistas e jornalistas liberais, o livro se tornou um best seller mundial. Livro denso, produto de várias pesquisas, tanto de Piketty quanto de outros pesquisadores, “O Capital” será deglutido aos poucos. No momento, está sob ataque dos liberais, que o percebem praticamente como uma análise marxista do capitalismo — o que, certamente, não é (o próprio Piketty confessa que não é um grande leitor de Marx e sugere que o filósofo e economista alemão não era atento aos dados. Acusação, aliás, que começa a ser feita ao scholar francês). É provável que o autor vá retomá-lo, corrigindo possíveis erros. Mas só tempo dirá se as ideias são mesmo sólidas. As leituras do momento ainda são preliminares. Só aos poucos, com o cruzamento de várias leituras, é que se poderá fazer uma interpretação mais detida e precisa do amplo e problemático estudo do francês. Ao pretender reformar o capitalismo, e não “mudá-lo” estruturalmente, criando um novo sistema — que é o projeto dos marxistas —, Piketty talvez esteja mais próximo do inglês John Maynard Keynes. O francês defende a redução das desigualdades sociais — para tanto, atribuindo um papel crucial ao Estado, ao sugerir que deve tributar crescentemente os mais ricos — e não a construção de uma sociedade sem classes sociais. Sinopse da obra divulgada pela editora:
“Nenhum livro de economia publicado nos últimos anos foi capaz de provocar o furor internacional causado por ‘O Capital no Século XXI’, do francês Thomas Piketty. “Seu estudo sobre a concentração de riqueza e a evolução da desigualdade ganhou manchetes nos principais jornais do mundo, gerou discussões nas redes sociais e colheu comentários e elogios de diversos ganhadores do Prêmio Nobel. “Fruto de quinze anos de pesquisas incansáveis, o livro se apoia em dados que remontam ao século XVIII, provenientes de mais de vinte países, para chegar a conclusões explosivas. O crescimento econômico e a difusão do conhecimento impediram que fosse concretizado o cenário apocalíptico previsto por Karl Marx no século XIX. “Porém os registros históricos demonstram que o capitalismo tende a criar um círculo vicioso de desigualdade, pois, no longo prazo, a taxa de retorno sobre os ativos é maior que o ritmo do crescimento econômico, o que se traduz numa concentração cada vez maior da riqueza. Uma situação de desigualdade extrema pode levar a um descontentamento geral e até ameaçar os valores democráticos. “Mas Piketty lembra também que a intervenção política já foi capaz de reverter tal quadro no passado e poderá voltar a fazê-lo. Essa obra, que já se tornou uma referência entre os estudos econômicos, contribui para renovar inteiramente nossa compreensão sobre a dinâmica do capitalismo ao colocar sua contradição fundamental na relação entre o crescimento econômico e o rendimento do capital. O capital no século XXI nos obriga a refletir profundamente sobre as questões mais prementes de nosso tempo.”
O “Valor Econômico” publicou reportagem afirmando que Abílio Diniz, ex-presidente do grupo Pão de Açúcar, estaria articulando a aquisição da rede de supermercados Carrefour no Brasil. A cúpula mundial do Carrefour contestou a informação e assegurou que Abílio Diniz não tem 1% das ações do grupo. Na verdade, a direção do Carrefour há algum tempo articula sua saída do Brasil, ainda que, nas entrevistas, diga sempre o contrário. Embora o “Valor” não tenha insistido no assunto, dada a oposição da direção francesa, Abílio Diniz continua tentando assumir o controle do Carrefour no Brasil. Uma fonte do setor disse ao Jornal Opção que Abílio Diniz estaria conversando com fundos de investimentos com o objetivo de reunir ao menos 4 bilhões de reais (ou dólares) para comprar o Carrefour no Brasil. A fonte assegura que a direção nacional quer sair do país, mas sem perdas financeiras.
Minha filha caçula, uma estudante de 21 anos, e sua mãe foram assaltadas por dois jovens, um homem e uma mulher, recentemente, em Goiânia. Armados com faca, ameaçaram matá-las e chegaram a agredi-las com violência. Por fim, levaram o automóvel, até hoje não encontrado, possivelmente foi desmanchado ou já está a caminho do Paraguai ou da Bolívia.
Mãe e filha, traumatizadas pela violência, preferem não discutir o assunto. Porém, reclamam da falta de segurança na capital, sobretudo da falta de policiamento. Sentem que os cidadãos de bem estão abandonados.
Comenta-se que centenas de policiais militares estão desviados de suas funções. Talvez seja a hora de colocá-los nas ruas.

Conexão entre escritores de alta qualidade, uma agente competente, Carmen Balcells, um editor hábil, Carlos Barral, e leitores receptivos foram fundamentais para o sucesso da literatura latino-americana em todo o mundo)
O ex-jogador Fernandão, que morreu no sábado, 7, aos 36 anos, quando o helicóptero em que estava caiu, era um craque dentro e fora de campo. Quando jogador, era um atacante do primeiro time. Um goleador nato, de muita garra. Tinha paixão pelo que fazia. Forte, agressivo, voluntarioso, inteligente. Para ele não havia bola perdida e não fugia das divididas (por isso machucava-se com frequência). Fez fama no time do Goiás, onde era querido por sua personalidade forte e sociável. Depois, jogou no Internacional de Porto Alegre, onde se consagrou e se tornou ídolo. Fora de campo, Fernandão era um cidadão de bem, um homem decente. Nos últimos anos, aposentado dos campos de futebol, atuava como empresário. Era sócio numa empresa. Recentemente, ao encontrá-lo no Restaurante Tribo, no Setor Marista, sugeri que o jornalista Elder Dias escrevesse sua biografia, e ele ficou de pensar a respeito. Ele estava na companhia do sócio, um empresário da Planalto Máquinas Agrícolas. Gentil, atendeu com prontidão uma senhora que pediu que posasse para uma fotografia com o filho. Na verdade, ela fez duas fotos. Fernando permanecia um ídolo dos torcedores. Aliás, fica-se com a impressão que, dado seu talento e seu caráter, era um ídolo não apenas dos torcedores do Goiás, e sim dos principais times de Goiânia, talvez de Goiás.

"A seleção que conquistou em definitivo a Taça Jules Rimet entrou para a história como o melhor time já montado na história dos mundiais”

A sede própria da emissora é uma das mais modernas e amplas do Centro-Oeste. A Record Goiás tem uma das maiores audiências entre as emissoras da rede

Foram condenados pela Justiça do Distrito Federal o repórter Leandro Fortes, o diretor de redação Mino Carta e a revista
Allan Kardec Barreto É notória a escassez de sangue nos hospitais públicos, que sempre apelam às doações voluntárias para manter um volume mínimo em estoque. Contudo, sempre há alguém inteligente de plantão para dificultar a vida de quem se dispõe ao ato. Na terça-feira, 3, por volta das 13h30, fui ao banco de sangue do Hospital das Clínicas, da Universidade Federal de Goiás (UFG), para efetuar uma doação, mas retornei para casa sem consegui-la. A atendente, usando, nos lábios, um batom vermelho hemorragia, candidamente ordenou que eu retornasse às 7 horas da manhã do dia seguinte para receber uma senha, o que me habilitaria, pela ordem, doar minha porção de sangue. Primeiro, quem decidiu pelo procedimento não se preocupou em divulgá-lo. E, depois, esqueceu que a maioria das pessoas trabalha e nem sempre tem tempo para retornar ao local duas ou três vezes no dia para praticar o gesto humanitário. Allan Kardec Barreto é jornalista.

Quando Melaine McLaughlin chega ao centro de treinamento, em Vitória, até os goleiros param para vê-la
Os romancistas Gonçalo M. Tavares (“Matteo Perdeu o Emprego”) e António Lobo Antunes (“Comissão de Lágrimas”, romance, e “Canções Mexicanas”, na categoria contos e crônicas) e os poetas Ana Luísa Guimarães e Gastão Cruz estão entre os sessenta e quatro autores de Portugal indicados para a 12ª edição do Prêmio Portugal Telecom de Literatura. A telefônica, que premia anualmente escritores de língua portuguesa (que dizer, não apenas de Portugal e Brasil), divulga o resultado em novembro. O vencedor de cada categoria leva 16 mi euros. O vencedor do Grande Prêmio ganha 32 mil euros.

O escritor e crítico literário goiano Alaor Barbosa, apaixonado pela obra do escritor mineiro João Guimarães Rosa, autor do romance máximo da literatura brasileira, “Grande Sertão: Veredas” (só “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, é seu par e rival-mor), escreveu a excelente biografia “Sinfonia de Minas Gerais — A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa” (LGE Editora), mas, no lugar de aplaudi-lo, uma filha do autor, a escritora Vilma Guimarães Rosa, decidiu processá-lo, com o objetivo de censurar o livro. Não só, ela o atacou publicamente. Alaor Barbosa decidiu processá-la. Na semana passada, saiu a sentença. Um juiz de Goiás condenou Vilma Guimarães Rosa a indenizar o escritor e biógrafo.
A escritora terá de pagar 30 mil reais a Alaor Barbosa. O biógrafo de Guimarães Rosa alega que foi caluniado, injuriado e difamado pela filha do autor de “Sagarana”.
A sentença deve ser publicada nos jornais em que os crimes foram cometidos.

“Em Auschwitz, observei muitas vezes um fenômeno curioso. A necessidade do lavoro ben fatto — o ‘trabalho feito corretamente’ — é tão forte que induz as pessoas a se desincumbir ‘corretamente’ até mesmo de um trabalho escravo. O pedreiro italiano que me salvou a vida, levando-me comida às escondidas durante seis meses, odiava os alemães, a comida deles, a língua deles, sua guerra; mas, quando o puseram para erguer paredes, ele as construiu firmes e sólidas, não por obediência, mas por dignidade profissional”
A entrevista de Primo Levi a Philip Roth, feita há 27 anos, mostra primeiro um grande entrevistador (o resultado, pois, é tanto uma entrevista quanto um diálogo entre “iguais”), cônscio da obra e da vida do autor italiano, e, depois, um também grande entrevistado. Infelizmente, não há registro, no caderno “Cultura”, de “O Estado de S. Paulo”, de quem a traduziu. Ao digitar o texto, mantive a grafia original de alguns palavras (fiz algumas poucas correções) e os títulos das obras de Primo Levi, felizmente, quase três depois, bem editado no Brasil, tanto como memorialista quanto como prosador.
A Rocco publicou as memórias “É Isto um Homem?”, em 1988, um ano depois da entrevista de Levi a Roth. É um dos mais poderosos relatos de um judeu que sobreviveu em Auschwitz. A Companhia das Letras editou “A Trégua”, em 1997, “Se não Agora, Quando?”, em 1999, e “71 Contos de Primo Levi”, em 2005. A Paz e Terra lançou “Os Afogados e os Sobreviventes”, em 2004. “O Último Natal de Guerra” saiu pela Berlendis & Vertecchia, em 2002. A Relume-Dumará publicou “A Tabela Periódica”, em 2001. Primo Levi nasceu em 1919 e morreu em 1987, no ano da entrevista a Roth. Ele teria se matado, mas a questão é controversa, pois há quem acredite que tenha caído de uma escada.
Primo Levi
Um homem de múltiplas habilidades
Entrevista a Philip Roth, para o “New York Times Book Review”
Naquela sexta-feira de setembro, quando cheguei a Turim — para reatar com Primo Levi uma conversa que havíamos começado certa tarde, em Londres, na primavera anterior — pedi-lhe que me mostrasse a fábrica de tintas onde ele havia trabalhado primeiro, como químico pesquisador e, depois, como gerente, até aposentar-se. Ao todo, a empresa tem cinqüenta funcionários, principalmente químicos que trabalham nos laboratórios e operários qualificados. A fileira de tanques de armazenamento, o prédio do laboratório, o produto final em containers da altura de homens, prontos para embarque, a unidade de reprocessamento que recicla as sobras — tudo isso está compreendido em quatro ou cinco acres, a uma distância de uns dez quilômetros de Turim. As máquinas para secagem de resina e mistura de verniz e as que bombeiam poluentes não fazem um barulho excessivo; e o cheiro acre do pátio — o cheiro, disse-me Levi, que ficou impregnado em suas roupas por dois anos depois que ele saiu — não é absolutamente desagradável; e o tanque cheio de resíduo preto limboso que resulta do processo antipoluente não é particularmente agressivo à vista.
Não se poderia dizer que esta seja a paisagem industrial mais feia do mundo, mas está muito longe, porém, daquelas frases de tintas carregadas que constituem a marca registrada das narrativas autobiográficas de Levi. Por outro lado, embora nada tenha de literário, é um lugar que nitidamente lhe diz muito. Partindo do que poderia ser o barulho, o fedor, o mosaico de bombas, tonéis, tanques e diais, lembrei-me de Faussone , o habilidoso aparelhador que aparece em The Monkey 's Wrench, quando ele diz a Levi — que chama Faussone de “meu alter ego”: “Vou lhe dizer uma coisa, estar por perto de um lugar de trabalho é algo que me agrada”.
Enquanto nos dirigíamos à seção de laboratório onde as matérias-primas são selecionadas antes de entrar em produção, perguntei a Levi se ele conseguia identificar aquele tênue aroma químico que se insinuava pelo corredor. Para mim, tinha um pouco o cheio de um corredor de hospital. Ele levantou só um pouco a cabeça e expôs as narinas ao ar. Com um sorriso, disse-me: “Entendo esse cheiro e posso analisá-lo como um cão”.
Ele me parecia interiormente animado mais à maneira de um azouguezinho selvagem dotado da mais astuta inteligência da floresta. Levi é baixinho e vivo, embora não tenha uma compleição muito delicada, e parece ser ainda tão ágil quanto deve ter sido aos dez anos. Em seu corpo, em seu rosto, vê-se — como não se vê na maioria dos homens — o rosto e o corpo do menino que ele foi. Sua vivacidade é quase palpável, e dentro dele pulsa um entusiasmo que é como uma chama piloto.
Talvez não seja tão surpreendente descobrir-se que os escritores, como o resto da humanidade, dividem-se em duas categorias: os que ouvem a gente e os que não ouvem. Levi ouve, e com o rosto todo, um rosto precisamente moldado que termina num cavanhaque branco que, aos 67 anos, lhe dá ao mesmo tempo um ar de jovialidade do deu Pã e um ar professoral, a cara da curiosidade irreprimível e do respeitado dottore .
Acredito em Faussone, quando ele diz a Primo Levi, no começo de The Monkey's Wrench : “Você é mesmo um moleque, me fazendo contar essas histórias que nunca contei a ninguém, exceto a você”. Não seria de admirar que as pessoas estivessem sempre contando coisas a ele, e que tudo seja fielmente registrado antes mesmo de ser escrito: enquanto ouve, ele fica tão quieto e concentrado como um esquilo listrado espionando algo desconhecido do ato de um paredão.
Num grande prédio de apartamentos, construído alguns anos antes de ele nascer — e ele próprio nasceu aí, pois essa era, antigamente, a casa de seus pais — Levi mora com a mulher, Lucia. Exceto pelos anos que passou em Auschwitz e pelos meses de aventuras imediatas após sua libertação, ele morou aí a vida inteira.
A mãe dele ainda mora com o casal, aliás desde que Primo e Lucia se conheceram e casaram, depois da guerra. Tem 91 anos. E a sogra dele, de 95 anos, mora perto, no apartamento pegado ao de seu filho de 28 anos, que é físico. E a apenas algumas ruas dali mora a filha de 38 anos, que é botânica. Não conheço, pessoalmente, nenhum outro escritor contemporâneo que tenha continuado, durante tantas décadas, tão intimamente ligado, e num contato tão direto e ininterrupto, à família, ao lugar onde nasceu, à sua região, ao mundo de seus ancestrais, e, principalmente, ao universo de trabalho local — o qual, em Turim, pátria da Fiat, é amplamente dominado pela indústria.
De todos os artistas intelectualmente dotados deste século — e a unicidade de Levi reside no fato de ele ser ainda mais um artista-químico do que um químico-escritor — talvez seja ele o mais bem adaptado à totalidade da vida que o cerca. Talvez, no caso de Primo Levi, uma vida de inter-relacionamento comunal, juntamente com sua obra-prima Suvirval in Auschwitz , constitua sua resposta profundamente civilizada e cheia de verve àqueles que fizeram tudo o que podiam para interromper sua ligação persistente e apagá-la, juntamente com os de sua espécie, da face da História.
Em The Periodic Table , num parágrafo que começa pela mais simples das frases para descrever um dos processos mais gratificantes da química, Levi escreve: “A destilação é bela”. O que se segue é também uma destilação, uma redução dos pontos essenciais da conversa viva e abrangente que mantivemos, em inglês, durante um longo fim de semana, em sua maior parte no escritório calmo do apartamento dos Levi, a portas fechadas. O escritório é uma peça ampla, simplesmente mobiliada, com um velho sofá florido e uma poltrona confortável. Na escrivaninha, um processador de palavras, coberto, e atrás dela, dispostos em perfeita ordem em prateleiras, os cadernos de notas de Levi, em cores bem variadas. Em prateleiras dispostas por toda a peça, há livros em italiano, alemão e inglês. Mas o objeto mais evocativo é um esboço, modestamente pendurado na parede, mostrando uma cerca de arame farpado meio destruída em Auschwitz. Já em lugares de maior destaque, nas paredes, há composições cujas formas foram habilmente modificadas pelo próprio Levi, e que ele fez a partir do fio de cobre isolado e revestido com o verniz desenvolvido por ele, pare esse fim, em seu próprio laboratório. Uma dessas composições é uma grande borboleta de arame, e há ainda uma coruja de arame, um escaravelhozinho de arame, e, bem no alto da parede, por trás da escrivaninha, estão duas de suas maiores peças de arame: uma é um pássaro guerreiro armado com uma agulha de tricô; a outra, conforme Levi me explicou quando consegui distinguir o que ela representava, é “um homem limpando o nariz”.
— Um judeu, sugeri.
— É sim, um judeu, claro — disse ele, rindo.
A ENTREVISTA
Roth - Em The Periodic Table , seu livro que fala do “gosto forte e amargo” de sua experiência como químico, você fala de uma colega sua, a Giulia, que explica a sua “mania pelo trabalho” atribuindo-a ao fato de você, na casa dos vinte e poucos anos, ter sido um homem tímido ante as mulheres e não ter tido namorada. Mas ela estava enganada, creio eu. A sua verdadeira mania pelo trabalho vem de algo mais profundo. O trabalho parece ser seu tema obsessivo, até no seu livro sobre sua prisão em Auschwitz.
Arbeit Macht Frei ( O Trabalho Liberta ) — eram as palavras inscritas pelos nazistas sobre o portão de Auschwitz. Mas trabalhar em Auschwitz é uma horrorosa paródia do trabalho, inútil e sem sentido — o trabalho como castigo, conduzindo à morte em agonia. É possível visualizar todo o seu labor literário como algo dedicado a restituir ao trabalho o seu sentido humano, resgatar a palavra Arbeit do cinismo enganador com o qual os seus empregadores de Auschwitz a desfiguraram. Faussone diz a você: “Cada emprego que assumo é com um primeiro amor”. Agrada-lhe falar sobre seu quase tanto quanto lhe agrada trabalhar. Faussone é o Homem Operário que se torna verdadeiramente livre através de seu trabalho.
Levi - Não acho que Giulia estivesse errada ao atribuir minha paixão pelo trabalho ao fato de eu, naquela época, ser muito tímido em relação às moças. Essa timidez, ou inibição, era verdadeira, penosa e carregada, muito mais importante para mim do que a devoção ao trabalho. O trabalho na fábrica de Milão, que descrevi em The Periodic Table , era uma paródia em que eu não confiava. A catástrofe do armistício italiano de 8 de setembro de 1843 já estava no ar, e teria sido uma besteira ignorá-la, mergulhando-se numa atividade cientificamente insignificante.
Nunca tentei analisar seriamente essa minha timidez, mas não há dúvida que as leis raciais de Mussolini desempenharam aí um papel importante. Outros amigos judeus também sofreram com isso, alguns colegas “arianos”, na escola, divertiam-se conosco, diziam que a circuncisão não passava de castração, e nós, pelo menos em nível inconsciente, tendíamos a acreditar nisso, com a ajuda de nossas famílias puritanas. Acho que, naquela época, o trabalho foi, para mim, realmente uma compensação sexual, mais do que uma verdadeira paixão.
Apesar disso, tenho plena consciência de que, depois do campo, o meu trabalho, ou antes, os meus dois tipos de trabalho (a química e a literatura) desempenharam e ainda desempenham um papel essencial em minha vida. Estou convencido de que os seres humanos normais são biologicamente construídos para uma atividade que visa um objetivo, e que o trabalho estéril ou sem sentido (como o Arbeit de Auschwitz) causa o sofrimento e a atrofia. No meu caso, e no caso do meu alter ego Faussone, o trabalho se identifica com a “solução do problema”.
Em Auschwitz, observei muitas vezes um fenômeno curioso. A necessidade do lavoro ben fatto — o “trabalho feito corretamente” — é tão forte que induz as pessoas a se desincumbir “corretamente” até mesmo de um trabalho escravo. O pedreiro italiano que me salvou a vida, levando-me comida às escondidas durante seis meses, odiava os alemães, a comida deles, a língua deles, sua guerra; mas, quando o puseram para erguer paredes, ele as construiu firmes e sólidas, não por obediência, mas por dignidade profissional.
Roth - Survival in Auschwitz termina com um capítulo intitulado “A História de Dez Dias”, onde você descreve, na forma de diário, a maneira como aguentou de 18 a 27 de janeiro de 1945, no meio de um pequeno contingente de pacientes doentes e moribundos, na enfermaria provisória do campo, depois de os nazistas terem fugido para o Oeste, levando uns 20.000 prisioneiros “saudáveis”. O que se conta, ali, soa-me como a história de Robinson Crusoé no inferno, como você, Primo Levi, no papel do Crusoé, arrastando aquilo de que precisava para viver, arrancando-o ao que sobrou de uma ilha cruelmente má. O que me impressionou aí, assim como em todo o livro, foi a extensão em que o pensar contribuiu para a sua sobrevivência, o pensamento de um espírito prático, humano e científico. A sua não me parece uma sobrevivência que tenha sido determinada nem pela força biológica bruta nem por uma sorte incrível, mas sim que se alicerçava, ao contrário, no seu caráter profissional: o homem de precisão, o controlador de experiências que busca o princípio da ordem, e que se defronta com a perversa inversão de tudo aquilo a que ele dá valor. Não há a mínima dúvida de que você era uma parte numerada de uma máquina infernal, mas uma parte numerada com uma mente sistemática que sempre tem de entender. Em Auschwitz, você diz a si mesmo, “eu penso demais” para resistir, “eu sou civilizado demais”. Para mim, porém, o homem civilizado que pensa demais é inseparável do sobrevivente. O cientista e o sobrevivente são o mesmo.
Levi - Exatamente. Você acertou na mosca. Naqueles memoráveis dez dias, eu realmente me senti como Robinson Crusoé, mas com uma diferença importante. Crusoé se pôs a trabalhar para sua sobrevivência individual, enquanto eu e meus dois companheiros franceses queríamos consciente e jubilosamente trabalhar, afinal, por uma causa humana e justa, para salvar as vidas de nossos camaradas doentes.
Quanto à sobrevivência, é uma questão que me tenho colocado muitas vezes, e que muitos me têm colocado. Insisto em que não havia regra geral, exceto entrar no campo com boa saúde e saber alemão. Isso posto, a sorte predominava. Sobrevivi a gente muito esperta e a gente boba, a bravos e a covardes, a gente que “pensava” e a loucos. No meu caso, a sorte desempenhou um papel essencial em pelo menos duas ocasiões: fazendo-me conhecer o pedreiro italiano e fazendo-me ficar doente só uma vez, mas no momento exato.
Mas aquilo que você diz, de eu pensar e observar, eram fatores de sobrevivência, é verdade, embora na minha opinião o que prevalecesse fosse uma grande sorte. Lembro-me de ter passado aquele ano em Auschwitz num estado de espírito excepcional. Não sei se isso dependia de minha formação profissional, ou de uma insuspeitada dose de estamina, ou de um instinto sadio. Jamais deixei de me lembrar do mundo e das pessoas à minha volta, lembrava-me tanto que ainda tenho deles uma imagem incrivelmente detalhada. Eu tinha um desejo intenso de entender, era constantemente invadido por uma curiosidade que, na verdade, pode ser considerada como cínica, mas é a curiosidade do naturalista que se descobre transplantado para um ambiente monstruoso, sim, mas novo, monstruosamente novo.
Roth - Survival in Auschwtiz foi originalmente publicado em inglês como título de If This Is a Man (É isto um Homem), tradução literal de seu título em italiano, Se Questo E um Uomo (e que era o título que os seus primeiros editores americanos deviam ter tido o bom senso de conservar). A descrição e a análise de suas memórias atrozes da “gigantesca experiência biológica e social” dos alemães é regida, de maneira muito precisa, por uma preocupação quantitativa quanto às maneiras pelas quais pode-se transformar ou decompor um homem, como uma substância que se decompõe numa reação química, levando-o a perder suas propriedades características, If This Is a Man soa como as memórias de um teórico da bioquímica moral que tenha ele mesmo sido convincentemente relacionado como o espécime destinado a passar por uma experiência de laboratório do tipo mais sinistro. A criatura aprisionada no laboratório do cientista maluco é, ela própria, a própria epítome do cientista racional.
Em The Monkey 's Wrench — que devia precisamente ter recebido o título de This Is a Man — você diz que a Faussone, sua Scheherazade de macacão, que, “sendo um químico aos olhos do mundo, e sentindo... o sangue do escritor nas veias”, você consequentemente tem “no corpo duas almas, e isso é demais”. Eu diria que há uma alma, vasta e inconsútil; eu diria que não só o sobrevivente e o cientista são inseparáveis, mas que também o são o cientista e o escritor.
Levi - Mas do que uma pergunta, isso é um diagnóstico, que aceito e agradeço. Vivi minha vida no campo o mais racionalmente que pude, e escrevi Is This Is a Man numa luta para explicar aos outros e a mim mesmo os acontecimentos em que estive envolvido, mas sem nenhuma intenção literária definida. Meu modelo (ou, se você preferir, meu estilo) foi o do “relatório semanal” comumente usado em fábricas: tem de ser conciso, preciso e escrito numa linguagem que todo mundo entenda na hierarquia industrial. E, certamente, não escrito no jargão científico. Eu queria me tornar uma coisa, mas a guerra e o campo impediram-me. Tive de limitar-me a ser um técnico.
Concordo com você quanto a existir apenas “uma alma... e inconsútil”, e uma vez mais sinto-me grato a você. A minha afirmação de que “duas almas... é demais” é em parte uma piada, mas metade das insinuações são sérias. Trabalhei numa fábrica por quase trinta anos, e tenho de admitir que não existe incompatibilidade entre ser químico e ser escritor: na verdade, é um reforço mútuo. Mas a vida de fábrica, e em particular a vida de gerente de fábrica, envolve muitas outras questões, fora da química: contratar e despedir operários, discutir com o chefe, clientes e fornecedores; lidar com acidentes; ser chamado ao telefone, mesmo à noite ou numa festa; lidar com a burocracia; e muitas outras tarefas que destroem a alma. Todo esse negócio é brutalmente incompatível com o escrever. Em conseqüência, eu me senti enormemente aliviado quando cheguei à idade de me aposentar, e pude assim renunciar à minha alma número um.
Roth - A sua continuação de If This Is a Man ( The Reawakening , que infelizmente também recebeu outro título dos editores americanos) chamava-se, em italiano, La Tregua , a trégua. O livro trata de sua viagem de volta de Auschwitz para a Itália . Há, nessa jornada tortuosa, uma dimensão realmente legendária, principalmente quanto à história do seu longo período de gestação na União Soviética, enquanto você esperava ser repatriado. O que surpreende, em La Tregua , é que o relato, que poderia ter, compreensivelmente, se caracterizado por um estado de espírito de lamentação e desespero inconsolável, caracteriza-se ao contrário pela exuberância. A sua reconciliação com sua mulher ocorre num mundo que às vezes se afigurava a você como o Caos primordial. Mas você está tremendamente engajado com todos, tão profundamente divertido e instruído que eu me perguntava se, apesar da fome, do frio e dos medos, apesar ate das recordações, você teria realmente algum dia vivido uma época melhor do que aqueles meses que você chama de “um parêntesis de disponibilidade ilimitada, uma dádiva providencial mais irrepetível do destino”.
Você parece ser alguém cujas necessidades mais vitais exigem, acima de tudo, arraigamento — na profissão, na ancestralidade, na região, na língua — e no entanto, ao se descobrir tão sozinho e desenraizado quanto um homem pode estar, você considerou isso uma dádiva.
Levi - Um amigo meu, que é um excelente médico, me disse há muitos anos: “Suas recordações de antes e depois são em branco e preto; já as de Auschwitz e as de sua viagem de volta são em technicolor”. E ele tinha razão. A família, o lar, a fábrica são coisas boas em si mesmas, mas elas me privaram de algo que ainda sinto falta: aventura. O destino resolveu que eu devia encontrar a aventura na terrível desordem de uma Europa varrida pela guerra.
Você está no ramo, logo você sabe como essas coisas acontecem. A Trégua foi escrito quatorze anos depois de If This is a Man : é, portanto, um livro mais “autoconsciente”, mais metódico, mais literário. A linguagem é muito mais profundamente elaborada. Ele fala a verdade, mas uma verdade filtrada. Antes, eu contei cada aventura muitas vezes, a pessoas de níveis culturais muito diferentes (a amigos principalmente, e a alunos do colegial, de ambos os sexos), e, pelo caminho, fui retocando a narrativa de forma a despertar nos meus ouvintes as reações mais favoráveis. Quando If This Is a Man começou a alcançar certo sucesso, e eu comecei a antever algum futuro para a minha obra, pus-me em campo para botar essas aventuras no papel. Meu objetivo era divertir-me ao escrever e divertir meus leitores em perspectiva. Em conseqüência, enfatizei o exótico, o excêntrico, os episódios animados — principalmente quanto aos russos visto em close — e deixei para as primeiras e últimas páginas aquele estado de espírito de “lamentação e desespero inconsolável”, conforme você diz.
Quanto ao arraigamento , é verdade que eu tenho raízes profundas, que tive a sorte de não perdê-las. Minha família foi quase totalmente poupada ao extermínio nazistas, e hoje continuo a viver no mesmíssimo apartamento onde nasci. Essa escrivaninha aqui, onde escrevo, segundo a lenda da família ocupa exatamente o mesmo lugar onde um dia eu vim ao mundo. Quando me descobri “tão desarraizado quanto um homem poderia estar”, é claro, sofri, mas isso foi, depois, largamente compensado pelo meu fascínio pela aventura, pelos encontros humanos, pela doçura da “convalescença” da praga de Auschwitz. Em sua realidade histórica, minha “trégua” russa se transformou numa “dádiva” só muitos anos depois, quando a purifiquei, repensando-a e escrevendo a respeito.
Roth - If Not Now, When? não se parece com qualquer outra coisa sua que eu tenha lido em inglês. Embora nitidamente inspirado em fatos históricos reais, o livro parece um aventura sincera e picaresca de um pequeno bando de partisans judeus de extração russa e polonesa, dando uma canseira nos alemães para mantê-los atrás de suas frentes orientais. Talvez os seus outros livros sejam menos “imaginários” quanto ao tema, mas me calam mais fundo, me parecem mais criativos quanto à técnica. O motivo por trás de If Not Now, When? parece mais estreitamente tendencioso — e, consequentemente, menos liberador para o escritor — do que os impulsos que dão origem às obras autobiográficas.
Fico me perguntando se você concorda com isso — se, ao escrever sobre a bravura dos judeus que combateram, você sentia-se fazendo algo que devia fazer, isto é, você se sentia responsável por reivindicações políticas e sociais que necessariamente não intervém quando o tema é o seu próprio destino marcadamente judeu.
Levi - If Not Now, When? seguiu um rumo imprevisto. As motivações que me levaram a escrevê-lo foram múltiplas. Ei-las, por ordem de importância:
Eu fizera uma espécie de aposta comigo mesmo: vamos ver se, depois de escrever tanta autobiografia explícita ou disfarçada, você é mesmo um escritor capaz de voar, capaz de construir um romance, de dar forma aos personagens, de descrever paisagens que você nunca viu? Tente!
Eu pretendia divertir-me, escrevendo uma trama de Western , ambientada numa paisagem incomum na Itália. Pretendia divertir meus leitores, contando-lhes uma história substancialmente otimista, uma história de esperança, até mesmo ocasionalmente animada, embora projetada num pano de fundo de massacre.
Eu desejava atacar um lugar comum que ainda prevalecia na Itália: o de que o judeu é uma pessoa branda, um estudioso (religioso ou profano), não belicoso, humilhado, que tolerou séculos de perseguição sem jamais lutar contra isso. Parecia-me que eu tinha o dever de prestar homenagem aos judeus que, em condições desesperadas, descobriram-se com coragem e capacidade de resistir.
Acalentei a ambição de ser o primeiro (e talvez o único) italiano, na condição de escritor, a descrever o mundo ídish. Eu pretendia “explorar” minha popularidade em meu país, para impor aos meus leitores um livro centrado na civilização Ashkenazi, em sua história, em sua língua e em sua disposição de espírito, coisas essas virtualmente desconhecidas na Itália, exceto para alguns leitores mais sofisticados de Joseph Roth (o romancista austríaco falecido em 1939), Bellow, Singer, Malamud, Potok e, claro, você.
Pessoalmente, esse livro me satisfaz, principalmente porque me divertiu bastante planejá-lo e escrevê-lo. Pela primeira e única vez na minha vida de escritor, tive a impressão(quase uma alucinação) de que meus personagens estavam vivos, à minha volta, às minhas costas, sugerindo espontaneamente suas próprias ações e diálogos. O ano que passei escrevendo-o foi um ano feliz, e assim sendo, seja qual tenha sido o resultado, para mim, esse foi um livro libertador.
Roth - Afinal, vamos falar da fábrica de tintas. Na sua época, muitos escritores trabalharam como professores, alguns como jornalistas, e a maioria dos escritores com mais de cinqüenta anos arranjaram emprego como soldado deste ou daquele, pelo menos temporariamente. É significativa a lista de escritores que se dedicaram simultaneamente à medicina e à literatura, e de outros que foram ministros ou padres. T. S. Eliot era editor, e todo mundo sabe que Wallace Stevens e Franz Kafka trabalhavam para grandes companhias de seguros. Ao que eu saiba, só dois escritores importantes foram um dia gerentes de fábricas de tinta, você em Turim, na Itália, e Sherwood Anderson em Elvria, no Ohio. Anderson teve de fugir da fábrica, e da família, para se tornar escritor; ao passo que você parece ter-se tornado o escritor que é justamente por ter ficado na fábrica e seguido sua carreira ali. Fico imaginando se você se considera realmente afortunado — e até melhor equipado para escrever — do que aqueles de nós que não passamos pela experiência de uma fábrica de tintas e tudo o que isso implica.
Levi - Conforme já disse, entrei na indústria de tintas por acaso, mas nunca tive muito a ver com a rotina geral da produção de tintas, vernizes e lacas. Nossa firma, logo depois de iniciar suas atividades, especializou-se na produção de esmaltes metálicos, revestimentos isolantes para condutores elétricos de cobre. No auge da minha carreira, eu me incluía entre os 30 ou 40 especialistas do mundo nesse ramo. Os bichos aí da parede são feitos de sucata de arame esmaltado.
Honestamente, eu não sabia nada sobre Sherwood Anderson até você falar nele. Não, jamais me ocorreu abandonar a família e a fábrica para ser escritor em tempo integral, como ele fez. Eu teria medo do salto no escuro e teria perdido todo o direito a uma aposentadoria legal.
No entanto, vou acrescentar à sua lista um terceiro nome de escritor fabricante de tintas, que é o Italo Svevo, um judeu convertido de Trieste, autor de As Confissões de Zeno [publicado pela Nova Fronteira como A Consciência de Zeno ], que viveu de 1861 a 1928. Durante muito tempo, Svevo foi gerente comercial de uma firma de tintas em Trieste. Essa indústria era do sogro dele, e dissolveu-se há alguns anos. Até 1918, Trieste pertenceu à Áustria, e essa companhia ficou famosa porque fornecia à Marinha austríaca uma excelente tinta antiferrugem, que evitava a incrustação de craca nas quilhas dos vasos de guerra. Depois de 1918, Trieste passou a ser italiana, e a tinta foi liberada também as marinhas da Itália e da Inglaterra. Para poder lidar com o pessoal do almirantado, Svevo tomou lições de inglês com James Joyce, que na época lecionava em Trieste. Eles ficavam amigos, e Joyce ajudou Svevo a encontrar editor para seus livros.
O nome comercial da tinta antiferrugem era Moravia. O fato de ser o mesmo nome do famoso romancista italiano (Alberto Moravia) não é mero acaso: tanto o industrial de Trieste quanto o escritor romano tiraram-no de um parente comum pelo lado materno. Perdoe-me por essa fofoquinha meio impertinente. Não, não, conforme já insinuei, eu não me lamento de nada. Não acredito que tenha perdido tempo na fábrica. Minha militanza fabril — meu serviço compulsório e respeitável ali — me manteve em contato com o mundo das coisas reais.
[Fonte: “O Estado de S. Paulo”, caderno “Cultura”, de 3 de janeiro de 1987, nº 342, páginas 10, 11 e 12]