Conexão entre escritores de alta qualidade, uma agente competente, Carmen Balcells, um editor hábil, Carlos Barral, e leitores receptivos foram fundamentais para o sucesso da literatura latino-americana em todo o mundo)

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Livro mostra que o boom gestado na Espanha criou um mercado para a literatura latino-americano, mas não se pode falar em uma estética comum entre os vários autores, que eram, na verdade, muito diferentes em termos literários

Artificial ou não, o boom da literatura latino-americana foi decisivo para a di­vulgação, aceitação e afirmação de escritores como o colombiano Gabriel García Márquez, o peruano Mario Vargas Llosa, o chileno José Donoso, entre outros, nos principais mercados livreiros do mundo, como Europa e Estados Unidos. O boom, articulado a partir de Barcelona, na Espanha, tornou os autores mais conhecidos em seus próprios países (Vargas Llosa disse que descobriu a literatura latino-americana em Paris) e na América Latina. “Cem Anos de Solidão”, de García Márquez, “Conversa no Catedral”, de Vargas Llosa, e “O Obsceno Pássaro da Noite” (há uma tradução precisa pela Editora Benvirá), de José Donoso, teriam feito sucesso a médio ou longo prazo, porém, com o boom, alcançaram repercussão global, e mais rapidamente. Mais tarde, em decorrência do sucesso produzido sobretudo na Eu­ropa, García Márquez e Vargas Llosa ganharam o Prêmio Nobel de Literatura. Os livros vulgarizados pelo boom ganharam análises competentes, em vários países, mas sua história agora ganha uma obra exaustiva, “Aquellos Años del Boom” (RBA, prêmio Gaziel de Bio­grafías y Me­morias), de Xavi Ayén, repórter do jornal “La Vanguardia”, de Barcelona. A pesquisa, feita durante dez anos, incluiu entrevistas detalhadas com vários escritores, como Gabo e o notável cubano Guillermo Cabrera Infante.

O boom da literatura latino-americana é uma produção coletiva de Barcelona — de 1967. “García Márquez, Vargas Llosa e um grupo de amigos situaram a língua espanhola na primeira divisão mundial”, diz Sergi Doria, numa resenha para o jornal “ABC”, de Madri. “O cânone deixava de ser ocidental, quer dizer, norte-americano ou europeu. O boom insuflou na América Latina uma autoestima enorme, quase comparável a ganhar um campeonato de futebol”, diz Xavi Ayén. A principal herança do boom latino-americano, na opinião de Xavi Ayén, foi a criação de “um mercado global para a literatura em espanhol” (não apenas para os escritores latino-americanos, portanto). O pesquisador faz questão de ressaltar que não havia uma estética comum aos escritores do boom. Embora influenciados por Faulkner, García Márquez e Vargas Llosa (também filho da prosa enxuta de Flaubert) são muito diferentes.

O livro conta que os escritores chegaram a Barcelona “por terra, mar e ar”. Vargas Llosa havia chegado em 1958, num barco italiano. García Márquez chegou num automóvel alugado, em 1967. Em 1969, proveniente de Mallorca, foi a vez de José Donoso. No mesmo ano, oriundo da França, Sergio Pitol mu­dou-se para Barcelona, instalando-se no bairro chinês. Ele chegou de trem.

“No final dos anos 1960, Barcelona superou Buenos Aires como capital editorial do livro em espanhol”, escreve Sergi Doria. O ímã dos escritores era a agente literária Carmen Balcells, mas havia também Carlos Barral, editor de prestígio no meio literário e intelectual. Além deles, a indústria editorial e gráfica da cidade era poderosa, “encabeçada por Planeta, Plaza e Janés. Editoras nascentes, como Ana­grama e Tusquets, somavam-se às modernizadas Lumen e Seix Barral”, anota Xavi Ayén.

Xavi Ayén: o boom acabou devido às disputas literárias e pessoais entre alguns escritores, como Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez
Xavi Ayén: o boom acabou devido às disputas literárias e pessoais entre alguns escritores, como Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez

Disciplinados e abstêmios

García Márquez e Vargas Llosa moravam “em residências quase contíguas, no bairro de Sarrià. Também residiam em Barcelona José Donoso, Jorge Edwards, Bryce Eche­nique, Óscar Col­lazos, Mau­ricio Wacquez, Cris­tina Peri Rossi”. Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Octavio Paz, Plinio Apuleyo Mendoza, Jorge Luis Borges, Pablo Neruda e Álvaro Mutis eram alguns dos visitantes ilustres.

Vestido num “macacão azul proletário”, García Márquez ia à papelaria Bambi para comprar papel (Xavi Ayén localizou o dono da loja, Jorge Echevarría). O “rei” do boom estava escrevendo “O Outono do Patriarca”, seu romance que é, em termos formais, um filho da prosa de William Faulkner. Nas proximidades, Vargas Llosa aplicava-se na redação do romance “Pan­taleão e as Visitadoras”. Como não conseguia se concentrar em seu apartamento, alugou outro para escrever sua prosa flaubertiana. O autor do livro conta que Julio Cortázar saía da França, numa furgoneta, para comprar roupas adequadas à sua estatura — era um gigante — na rede espanhola El Corte Inglés. Eles formavam um grupo de amigos, que se promoviam, “escreviam nas mesmas revistas e planejavam livros coletivos de relatos”. García Márquez e Vargas Llosa planejaram escrever juntos um romance sobre a guerra entre o Peru e a Colômbia.

A história de que Carlos Barral deixou escapar “Cem Anos de Solidão” não é verdadeira, afirma Xavi Ayén. Es­palharam a história de que o editor não o havia lido antes da publicação e comentaram também que o romance havia sido entregue em duas partes. “É uma lenda urbana” que o próprio editor propagava, com anuência de García Márquez. Os dois riam da história. O mito foi desfeito pelo escritor numa conversa com Xavi Ayén.

O jornalista teve acesso aos arquivos de uma das principais propulsoras do boom, Carmen Balcells, a “Mamá Grande”. A pesquisa de Xavi Ayén aponta que a superagente “combina força de vontade e trabalho duro com uma ambição descomunal, estratosférica”. A catalã, hoje com 83 anos, é apontada como “ávida de poder” (ela acaba de criar uma superagência, com o americano Andrew “Chacal” Wylie). Ela, que sempre tinha dinheiro em sua casa, às vezes funcionava como uma espécie de “banco” para os escritores. Parece ser uma caricatura, registra o autor do livro, mas isto não a desagrada e até a fascina. É tida como “a melhor negociadora” de livros e interesses dos escritores “do mundo”. Porém, por baixo de sua ferocidade e ambição, “há ideais nobres”, contemporiza o pesquisador.

Barcelona, como Paris, é uma festa — uma cidade boêmia. Europeus de todos os pontos convergiam e ainda convergem para a bela e movimentada cidade, que exala vivacidade e energia. Mas os escritores do boom não eram necessariamente boêmios, contesta Xavi Ayén. No lugar de uísque e cerveja, Vargas Llosa bebia leite e “só pisou uma vez na discoteca Bocaccio”. García Márquez também não era adepto de bebedeiras. Preferia frequentar a cafeteria Sándor. Dei­xava sua paixão, um BMW azul metalizado, na porta. Como Vargas Llosa, não era notívago. Na verdade, apesar da imagem romântica que tentam criar para escritores famosos, os autores do boom eram altamente disciplinados, revela a pesquisa.

Carmen Balcells e Carlos Barral, a superagente literária e o célebre editor da Seix Barral, foram decisivos para o sucesso do boom da literatura latino-americana. Mas o “segredo” desta era mesmo a alta qualidade dos autores
Carmen Balcells e Carlos Barral, a superagente literária e o célebre editor da Seix Barral, foram decisivos para o sucesso do boom da literatura latino-americana. Mas o “segredo” desta era mesmo a alta qualidade dos autores

Xavi Ayén diz que, ao contrário do que se costuma publicar, o boom (o sucesso editorial e comercial) foi exclusivo de poucos autores, como García Márquez e Vargas Llosa. Outros escritores, em­bora amplamente divulgados, fracassaram comercialmente. José Donoso, o excelente escritor chileno, “nunca teve as vendas milionárias de García Már­quez, Vargas Llosa e Cor­tázar”, escreve Sergi Doria. O autor do livro anota que José Do­noso, casado com uma mulher, tinha problemas com sua identidade sexual. “Seu ambiente familiar era muito disfuncional. Como dizia Ana María Moix, meio de brincadeira”, José Donoso “escreveu um livro sobre o boom para assegurar-se de que” não seria excluído. Fico com a impressão de que há um preconceito, ainda que leve, em relação à sexualidade do autor chileno. O fato de ser bissexual (ou, como diz o jornalista, gay) prejudicou sua literatura em quê? Não fica claro, ao menos na resenha. A literatura de José Donoso, embora poderosa, só é menos lida do que a dos imperadores do boom. Na sequência do primeiro boom, segundo Jordi Gràcia, citado pelo “ABC”, ganharam certo alento Manuel Scorza (que o jornalista Claudio Abramo divulgava com frequência no Brasil), Néstor Sánchez, Manuel Puig e Severo Sarduy. Noutras palavras, Sergi Doria apresenta o quarteto como do segundo time — ao qual não pertence, provavelmente, Severo Sarduy, talvez apenas menos lido e estudado. O cubano certamente é do primeiro time, como escritor e crítico.

Fim do boom

Se a literatura latino-americana firmou-se como uma das melhores do mundo, em parte decorrente do boom, por que este acabou, ao menos como uma espécie de “movimento”? Porque, no entendimento de Xavi Ayén, deixaram de compartilhar projetos, a Revolução Cubana deixou de ser vista como um acontecimento lírico (aos poucos, o regime de Fidel Castro saltou de autoritário para totalitário) e os dois carros-chefes do boom, García Márquez e Var­gas Llosa, se desentenderam.

García Márquez e Vargas Llosa eram muito amigos. Tanto que, certa vez, uma mulher, ao encontrar o peruano, disse: “É Márquez Llosa!” Em 1976, no México, na pré-estreia do filme “Sobre­vi­ventes dos Andes”, Vargas Llosa nocauteou García Márquez e disse: “Isto é pelo que fez a Patrícia em Barcelona”. Espécie de don juan, o peruano estava meio separado de sua mulher, Patrícia, que aconselhou-se com o amigo colombiano. Jorge Edwards contou ao autor do livro que Gabo “acompanhou Patrícia ao aeroporto… e Patrícia perdeu o avião. Vargas Llosa suspeitava que ele queria levá-la a um hotel”. Vargas Llosa manteve o casamento. Ao contrário do que se especulou, Gabo e a mulher do autor de “Tia Julia e o Escrevinhador” não tiveram qualquer relacionamento sexual ou amoroso.

Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez: o primeiro fez mais sucesso no início, era mais bonito e sofisticado e era mais apaixonado pela Revolução Cubana. Depois, brigaram porque o segundo teria cantado a mulher do primeiro
Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez: o primeiro fez mais sucesso no início, era mais bonito e sofisticado e era mais apaixonado pela Revolução Cubana. Depois, brigaram porque o segundo teria cantado a mulher do primeiro

Apesar do conflito envolvendo questões pessoais, os dois escritores não se davam mais bem desde algum tempo. Eles disputavam o “posto” de maior escritor latino-americano. Sentiam inveja um do outro. “Vargas Llosa era então mais conhecido, era bonito, relacionava-se bem com as pessoas e era intelectualmente sofisticado. García Márquez representava a novidade, era uma grande descoberta, mas sua personalidade era a de alguém tímido, vítima de nervosismo, sempre na defensiva”, afirma o autor do livro. O grupo do boom, em parte devido à inimizade de seus próceres — eles deixaram de se falar, de discutir projetos comuns — acabou porque não havia mais convivência em Bar­celona. Os autores se isolaram, se tornaram estrelas.

Mais tarde, a Revolução Cubana afastou ainda mais os dois escritores. Xavi Ayén revela que “Vargas Llosa era mais ativo a favor da Re­volução Cubana que Gabo e contra o franquismo”. O peruano “rom­peu” as relações “com o regime castrista devido à prisão e ao exílio do poeta Heberto Padilla, em 1971”. Vargas Llosa desencantou-se com o comunismo cubano, aproximando-se, cada vez mais, do pensamento liberal, não deixando de ser humanista. García Már­quez, pelo contrário, tornou-se amigo íntimo de Fidel Castro. Consta que o ditador cubano até palpitava sobre suas histórias, sugerindo cortes e acréscimos. Garcia Már­quez relatou, certa vez, que o ditador não era um entusiasta de sua literatura, por achá-la por demais fantasiosa. Fidel, um realista como Karl Marx, certamente prefere autores que, de alguma forma, são mais “biógrafos da realidade” — como Balzac.

O jornalista narra a história do nascimento do livro “Relato de um Náufrago”, de García Márquez. A editora Beatriz de Moura pediu um favor ao escritor: um livro para publicar em seu novo selo, Tusquets, e “o colombiano lhe cedeu textos divulgados em ‘El Es­pectador’, no qual havia publicado”, no estilo folhetim, “Relato de um Náufrago”. Trata-se da obra, aparentemente despretensiosa, mais vendida da editora.

O livro de Xavi Ayén conta que García Márquez cedeu os direitos autorais para o náufrago, Velasco, que inspirou o livro. Em 1982, quando o autor de “Ninguém Escreve ao Coronel” ganhou o Nobel de Literatura, Velasco questionou a versão cinematográfica de “Relato de um Náufrago e deu-se mal: os direitos autorais voltaram às mãos de Gar­cía Márquez.

Xavi Ayén disse ao “La Vanguarida” que “Aqueles Anos do Boom” (sem previsão de lançamento no Brasil) é um relato jornalístico. “Não quis fazer um manual universitário.” Por isso conta também anedotas sobre o autores do boom. Vargas Llosa jogava bola, no Camp Nou, com o compatriota Hugo Cholo Sotil. Carlos Fuentes lembrava de cada perfume das mulheres com as quais dançava. García Márquez certa vez foi “confundido com um mecânico quando levou seu luxuoso BMW azul a um posto de gasolina”.