Opção cultural

Encontramos 4832 resultados
O jogo de descobrir quem são os autores

Este é o espírito da obra, seu veio nutriente preenchido por histórias pessoais e por escritores de várias tendências

Uma denúncia contra a hipocrisia religiosa

James Joyce narra as impressões da infância, da adolescência e da juventude de um garoto que deseja profundamente ser um artista. O protagonista do livro é o jovem Stephen Dedalus, que perderá a fé no Deus criador, terrível e onipotente e ganhará na liberdade o direito de perder-se por sua conta e risco

Traficantes de letras usam drone para lançarem livros dentro de escola, mas alunos não entendem nada

Alguém sugeriu despejar tequila enrustida, colocar fogo naquela coleção medonha ali mesmo e aproveitar o calor da ignorância para derreter alguns marshmallows

Resignação

Paulo Lima cul8 Na época das Grandes Navegações, quando das primeiras viagens de Portugal ao Brasil, desde a invasão até a exploração regular que durou cerca de três séculos, as condições de transporte em nada lembravam um passeio bucólico pelos bosques paulistas do Ibirapuera ou pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Você leu direito: eu falei invasão, não descoberta. Até parece que não havia ninguém na futura colônia (índios não eram gente?), sem contar que o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón aportara na costa norte do Brasil três meses antes da chegada de Cabral, fora os vestígios de africanos que aqui estiveram centenas de anos antes ainda. Continuemos. A nau do Pedrão, por exemplo, viajava a vertiginosos nove quilômetros horários, no máximo. Durante cerca de um mês, superar o enjoo do mar sem Dramim, o mau cheiro da embarcação repleta de homens fedendo a macaco morto a tapa, a vontade de desistir e pegar o caminho de volta logo a partir do segundo dia, a saudade da terrinha, não era tarefa para os fracos. Nada de camas ou colchões. Os cor­pos ficavam ao chão, se revezando para descansar, uns dormitando, ou­tros de pé no batente. Havia aqueles que dormiam ao relento, no convés. Uma caravela tinha no máximo mais dois pavimentos inferiores, onde o ar e a luz chegavam através das fendas entre os ripados de madeira, que também deixavam passar água. Os porões estavam sempre abafados, quentes, úmidos e fétidos. É óbvio que não havia banheiro nos navios. Mas não faltava criatividade para resolver esse pequeno problema que afetava somente algumas dezenas de homens que dividiam um espaço que deveria ser ocupado por no máximo uns vinte. Qualquer semelhança com os aposentos das penitenciárias brasileiras da atualidade é mera coincidência. Dependendo do tipo e do ano da em­barcação, como ocorre hoje nos carros e seus opcionais produzidos pelas nobres montadoras, sempre dava-se jeito. Para fazer suas necessidades mais sujas, os marujos recorriam a pequenos assentos pendurados sobre a amurada dos navios, se debruçando no costado com as calças arriadas e o traseiro voltado para o mar. O resto ficava por conta da força da cólica, da contração abdominal espontaneamente provocada ou da lei da gravidade. Talvez ambos os três. Outra alternativa: usava-se uma longa corda cuja ponta estava sempre alguns metros dentro d’água, se lavando e desinfetando de água e sal marinhos em tempo integral. Teria a agressão ambiental ao Atlântico começado ali? Em tempo: a corda era compartilhada por todos, sem exceção. Até os capitães faziam uso do mesmo recurso... Vale o registro: alguns mais ditosos caíam enquanto buscavam alívio e nunca mais retornavam para relatar a aventura. Outros ainda optavam por encher recipientes diversos, despejando o conteúdo no oceano ou deixando-o em qualquer canto. Por fim, havia os vergonhosos ou preguiçosos que largavam sua produção intestinal no porão mesmo. Ninguém se lavava, pois tinham que racionar água e o banho era considerado nocivo à saúde. De resto, era comum no balançar das ondas em alto mar os marujos vomitarem como quem joga uma tarrafa, sujando uns aos outros. Oficialmente, constava que a embarcação levava carne vermelha defumada, peixe seco ou salgado, favas, lentilhas, cebolas, vinagre, banha, azeite, azeitonas, farinha de trigo, laranjas, biscoitos, açúcar, mel, uvas-passas, ameixas, conservas e queijos. Como não havia lenha e fogo, peixes e carnes eram consumidos crus. Oficialmente. Na verdade, a dieta era basicamente composta de biscoitos de água e sal cozidos duas vezes para durar mais tempo. O restante da lista era só uma complementação esporádica, privilegiada e temporária. Cada qual recebia diariamente cerca de quatrocentos gramas do delicioso biscoito para sua farta refeição. A ração era distribuída três vezes ao dia, nunca excedendo uma porção de biscoitos, meia medida de vinho e uma de água. Depois de algumas semanas, o vinho se transformava em vinagre e a água em um criadouro de larvas. Em viagens longas, os biscoitos já estavam todos roídos por outros tripulantes não convidados: ratos e baratas. Aliás, caçar os muitos ratos presentes também era uma estratégia honrosa para driblar a fome. Alimento fresco? Sim, às vezes seguiam a bordo alguns animais vi­vos, como galinhas, porcos, carneiros e cabras, brindando os embarcados com muito esterco e urina. Estamos falando de uma viagem perfeita. Diante de imprevistos, como tempestades, danos físicos nas embarcações ― quer dizer, imperícia ― do timoneiro, a machaiada sofria com a falta de alimento e mais desconforto. Os utensílios eram compartilhados entre os tripulantes. Lavar as colheres, as gamelas e os pratos usados? Nem pensar. Consumia muita água, produto precioso para tamanhos luxos. Mas nem tudo era de todo ruim. O consumo de ratos, animalzinho virtuoso que sintetiza a vitamina C a partir dos alimentos que consome, diminuía sensivelmente os infortúnios vividos pelos mareantes. Sem saber, acabavam evitando o aparecimento ou agravamento do escorbuto, então chamado de “mal das gengivas” ou “mal de Luanda”. Uma enfermidade daquelas bem desgracentas que causava inchaço das gengivas e perda dos dentes, dilatações e dores nas pernas, levando o desinfeliz a uma morte lenta e dolorosa. Infestação de piolhos era tão comum como hoje são os vírus de computador. Cabeça raspada, a solução. Nem as princesas reais escapavam da desdita. Sem a proteção da cabeleira, a cachola esquentava muito sob o sol dos trópicos, mas... Fazer o quê? A bordo a rigidez na disciplina era comparada à dos quartéis, pois tinha de tudo: marinheiros experientes e grumetes (aprendizes), tripulantes, carpinteiros, artesãos, calafates (especialistas em tapar fendas ou buracos) e tanoeiros (responsáveis pelo conserto de tonéis e barris), soldados e religiosos, degredados e criminosos, além de canhões e peças de artilharia. Manter a ordem exigia pulso firme. Alguns desses homens eram extremamente necessários a uma viagem desse tipo. Mas evitavam levar médicos, porque os humanos presentes eram descartáveis. Crianças e adolescentes entre 9 e 15 anos de idade eram recrutados ou alistados pelos próprios pais, que embolsavam o soldo dos meninos, coisa que hoje ainda ocorre em algumas culturas e profissões, mesmo depois de instituída a tal civilização. A molecada servia como grumetes, fazendo as piores tarefas como lavar o convés, limpar o bosteiro, costurar velas. Serviam também à sanha dos mais afoitos, pois mulheres eram proibidas durante as expedições de descobrimento. Frequentemente alguns adultos, mais enfraquecidos pelo rigor da jornada, eram arrastados para onde sua virgindade pudesse ser surrupiada. Suicídios eram comuns e aceitos pela Marinha Portuguesa como efeitos colaterais ou acidentes de percurso. Vale lembrar que, depois que se tornaram rotineiras nos séculos 15 e 16, a presença de mulheres nas viagens à Índia e ao Brasil foi finalmente permitida. As escolhidas: órfãs e ex-prostitutas, enviadas para casar com colonos portugueses. E para a diversão durante as viagens, claro. Por recomendação dos padres, o lazer era proibido. Apesar disso, os precavidos capitães sempre faziam vistas grossas para alguma jogatina, como cartas e dados, para aliviar a tensão interna. Aqueles navegadores carregavam na alma medos reais e imaginários. Muitos juravam de pé junto que o oceano era povoado por monstros e dragões, buracos sem fundo e tantas outras coisas que no século 21 nem as criancinhas são capazes de fantasiar. Fora isso, havia a certeza de que, ao seguir em mar aberto, as tempestades e chuvas intensas poderiam pôr fim à fragilidade das embarcações. Por tudo isso, alucinações e depressão eram uma constante. Contei essa história, com muito mais riqueza de detalhes, durante uma hora inteira ― a terceira da viagem São Paulo-Miami ― às minhas duas filhas adolescentes que me comprimiam no assento do meio do voo noturno e mais barato que a companhia aérea dispunha. Era nossa primeira excursão rumo à Disney. Não é fácil se posicionar em meio a um ataque de nervos de duas jovenzinhas acostumadas ao conforto das modernidades, indignadas com o desconforto da classe econômica e dos serviços precários da aviação brasileira. Mas valeu o esforço e a consulta ao Google, ainda que não pudesse comprovar a veracidade das informações postadas na controversa fonte Wikipédia. A narrativa surtiu efeito. As cinco últimas horas foram de sossego, marcado por profundo silêncio e resignação. Paulo Lima é escritor e publicitário.

Livros da infância: modos de usar

Vi nascimentos e conheci a injustiça da morte. Descobri o amor, suas alegrias e dores, e também vivenciei a amizade, com suas traições à espreita. Entendendo pouco ou nada de tudo aquilo, buscava refúgio nos livros, que traduziam o que eu experimentava e supriam minhas deficiências

Goiânia ganha ópera: “Carmen”, de Bizet

Basileu França reconstrói a beleza inspirada em novela de Mérimée e impulsiona, do teatro para a cidade, as grandes produções

Gabriel García Márquez, o intérprete da América Latina, ganha biografia exaustiva

Gerald Martin realizou centenas de entrevistas, em 17 anos de pesquisa, para mergulhar na trajetória de Gabriel García Márquez e revelar os labirintos da vida do autor de “Cem Anos de Solidão”

[caption id="attachment_4963" align="alignright" width="620"]Gabriel García Márquez: um dos mais aclamados escritores da história. Ganhador do Nobel de Literatura, seus livros venderam mais de 50 milhões de cópias em todo o mundo | Foto: Edgard Garrido/Reuters Gabriel García Márquez: um dos mais aclamados escritores da história. Ganhador do Nobel de Literatura, seus livros venderam mais de 50 milhões de cópias em todo o mundo | Foto: Edgard Garrido/Reuters[/caption]

Salatiel Soares Correia Especial para o Jornal Opção

O incidente aconteceu num cinema na Cidade do México, em 1976. Lá estava prevista para ocorrer a première do filme “Os Sobreviventes dos Andes”, do qual um importante escritor da América Latina era o autor do roteiro. De repente, um velho amigo desse escritor que estava presente abriu os braços para ele e fez uma calorosa saudação: “irmão”!

A resposta ao cumprimento não poderia ser mais inesperada. O cumprimentado, praticante de boxe amador, deferiu um potente soco no olho direito de quem o cumprimentou e disse: “Isso é pelo que disse a Patrícia”. Alguns afirmam que o nocauteador proferiu a seguinte frase: “Isso é pelo que fez à Patrícia”. Pouco importa o motivo, o estrago já estava feito. A potência do soco foi tamanha que o nocauteado caiu, bateu a cabeça no chão e ficou de fato tonto. Os dois protagonistas da lamentável contenda nunca mais se encontrariam. Nunca mais se falariam.

A verdade nunca, de fato, saberemos qual foi. O fato é que aquele so­co encerrou uma amizade de 10 anos entre dois dos mais importantes escritores da América Latina: o pe­ruano Mario Vargas Llosa e o co­lombiano Gabriel García Márquez.

Passados quase 40 anos do episódio, as especulações a respeito do fato persistem até hoje. Ciúme da mulher, inveja pelo sucesso que o colombiano vinha obtendo como escritor. O recente falecimento de Gabriel García Márquez levou com o ele o segredo para o túmulo. Ma­rio Vargas Llosa, ao ser recentemente indagado a respeito do episódio, foi de uma elegância que reflete o res­peito que possui pela obra de seu en­tão opositor. “É um pacto [a razão do atrito] entre García Már­quez e eu. Ele respeitou isso até sua mor­te e vou fazer o mesmo [...] va­mos deixar a nossos biógrafos, se me­recemos isso, investigar o assunto.”

Gabriel Garcia Márquez se foi deste mundo, mas sua obra certamente vencerá as areias do tempo. O episódio relatado se encontra na obra de seu biógrafo inglês. Só mesmo a paciência de um inglês, evidenciada em 17 anos de pesquisa, foi capaz de mergulhar nas entranhas da vida do autor de “Cem Anos de Solidão” e revelar os labirintos de sua vida. Este inglês se chama Gerald Martin. Falemos um pouco dele para, em seguida, mergulharmos no esplendor de sua obra.

Professor emérito de línguas modernas na Universidade de Pittsburgh é ele, também, pesquisador sênior de Estudos do Caribe na London Metropolitan University. Mais conceituado biógrafo de Gabriel García Márquez, Gerald Martin é um profundo conhecedor da América Latina. Para produzir seus escritos, viajou pelos lugares onde viveu o autor de “O Amor nos Tempos do Cólera”. Conheceu seus hábitos, as histórias contadas por gente próxima do escritor, pesquisou documentos para, enfim, pacientemente, compor as 814 páginas do mais importante mergulho que já se fez na vida de um dos maiores escritores do século 20.

Fonte da imaginação

O fluxo da vida se passa como num filme cujas imagens vão se desencadeando e explicando o âmago de nossa existência. Se existe uma etapa na vida de Gabo que irrigou sua obra literária esta se passou ao lado daquele que seria a maior influência em seus escritos: os avós. O coronel Nicolás Márquez e a avó Tranquilina Igurán foram os verdadeiros pais do menino Gabito.

Criado distante dos irmãos e da influência paterna e materna, o autor de “Crônica de uma Morte Anunciada” passou a infância em Aracataca; e os pais, noutra cidade da Colômbia (o pai de García Márquez era farmacêutico e viveu nas cidades colombianas de Sucre, Cartagena e Barranquilla). Gabo e o avô eram, na verdade, os únicos homens numa casa repleta de mulheres, por onde transitavam a avó, tias, empregadas.

Certamente, a companhia feminina e a dependência delas exerceram influências decisivas na vida do futuro escritor. Nessa ambiência é que se destacava a figura masculina do avô Nicolás. Quem já conhece a história de vida desse grande autor colombiano, não terá dúvidas de que toda consciência política de Gabito foi moldada no imaginário do escritor, sob a influência do coronel Nicolás Márquez, este foi um ativo participante da Guerra Civil colombiana. Quanto a isso, conta-nos seu biógrafo que “seria ele [Gabriel] quem herdaria as memórias do velho coronel, sua filosofia de vida e sua moralidade política, além da visão de mundo; o coronel viveria através dele. Foi o avô quem lhe contou sobre a Guerra dos mil dias sobre os próprios feitos e os de seus amigos, todos liberais heroicos; foi o coronel quem explicou a presença das plantações de bananas, da United Fruit Company, com suas casas, lojas, quadras de tênis e piscina da companhia e os horrores da greve de 1928. Batalhas, cicatrizes e lutas. Violência e morte”.

United Fruit, a luta entre conservadores e liberais, a greve de 1928, as revoluções de um continente fadado a revoluções. Todos os in­gre­dientes estavam ali para tomar forma e tornarem-se, anos mais tar­de, um dos mais celebrados romances que levariam Gabriel García Már­quez ao patamar ao qual se en­controu durante toda sua vida e, cer­tamente, transcenderá a sua morte. O romance de que falo é o cé­lebre “Cem Anos de Solidão”, o mais importante livro escrito em língua hispânica depois de “Dom Quixote”.

Outra fonte dos personagens encontrados nos romances do futuro escritor foi coletada nas cidades que a família García Márquez viveu. Nesse sentido, relata-nos seu biógrafo: “Ali [em Sucre, uma das cidades que os pais de Gabo viveram] ou em outras cidades vizinhas, Gabito conheceria muitos de seus personagens mais conhecidos, entre eles, a inocente Erêndira, de ‘A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada’, e a prostituta que ele chamaria de Maria Alejandrina Cervantes em ‘Crônica de uma Morte Anunciada’”.

A história de amor entre os pais foi outra fonte inspiradora que a mente criativa de Gabriel García Márquez imortalizaria naquele considerado, por muitos (incluo-me nesta opinião), como um dos mais belos romances de amor produzido pela literatura universal. Falo de “O Amor nos Tempos do Cólera”. Em vida, o neto do coronel Nicolás sempre afirmou que esse belíssimo romance — e não “Cem Anos de Solidão” — de fato será seu passaporte para a imortalidade.

[caption id="attachment_4965" align="alignright" width="300"]Por ciúme de sua mulher, Vargas Llosa nocauteou García Márquez. Nunca mais se falaram | Foto: David Levenson Por ciúme de sua mulher, Vargas Llosa nocauteou García Márquez. Nunca mais se falaram | Foto: David Levenson[/caption]

O gosto pelo cinema foi outra influência que o garoto Gabito aprendeu a apreciar convivendo com o avô na sua primeira infância. Era costume do coronel Nicolás levar o neto para assistir os filmes que passavam na pequena Aracataca. Seu biógrafo assim descreve os primeiros contatos do menino Gabito com o cinema: “Ele [o avô] costumava me levar para ver todo tipo de filme, ele me fazia contar-lhe a história, para ver se eu tinha prestado atenção. Assim, não somente preservei com muita clareza os filmes na minha mente, mas também me preocupava em saber como poderia narrá-los, porque sabia que meu avô me faria contar a história, passo a passo, a fim de ver se eu tinha compreendido”.

O amor pela sétima arte se propagou no viver do futuro escritor. Anos mais tarde, passando um tempo em Roma, tornou-se, o jovem Gabriel, um frequentador dos famosos estúdios da Cinecittà. Creio ser do conhecimento de todos qual foi o destino do dinheiro ganho por Gabriel García Márquez quando do prêmio Nobel: fundar uma escola de cinema em Cuba. Além disso, certamente, a influência paterna foi decisiva para a profissão que um de seus dois filhos — Rodrigo — viria a abraçar, nos Estados Unidos: a de diretor de cinema.

Assim, as cenas do filme da infância do autor de “Crônica de uma Morte Anunciada” passam como tudo na vida passa, só permaneceram vivas na sua alma as lembranças de uma cidade solitária, repleta de personagens solitários que o mundo conheceria anos mais tarde como sendo a Macondo de “Cem Anos de Solidão”. O gênio do escritor daria universalidade à terra dos avós e mostraria ao mundo que, na América Latina, pratica-se uma literatura de alta qualidade. Certamente, o sucesso absoluto de “Cem Anos de Solidão” consagrou, anos mais tarde, a brilhante carreira literária de seu autor. Isso todo mundo sabe. O que pouca gente sabe é o que ele passou para chegar lá. “Todo mundo é meu a­mi­go desde ‘Cem anos de So­li­dão’, mas ninguém sabe o que me custou chegar até aqui. Ninguém sabe que fiquei reduzido a comer lixo em Paris”, disse ele a seu biógrafo, explicando-se, em seguida, a respeito da espantosa afirmação: “Uma vez, estava numa festa, na casa de alguns amigos que me ajudaram um pouco. Depois da festa, a dona da casa me pediu que colocasse o lixo na rua para ela. Eu estava com tanta fome que peguei tudo que pude do lixo e comi, ali e depois”. Pois é. A maioria de nós gosta de quem chega ao cume da montanha. O que pouca gente avalia é o que se passou na vida para chegar lá.

Jornalismo e literatura

Vejamos mais uma cena do filme da vida do neto do coronel Nicolás Márquez: a de estudante de direito em Bogotá. O jovem Gabriel foi estudar direito não por vocação, mas para satisfazer a vontade dos pais: “Não, ele não era um bom aluno”. Assim relatou a Gerald Martin, um de seus professores na faculdade. O professor estava certo. Decididamente, o direito não morava no sangue do futuro escritor. Sua verdadeira vocação estava em outra seara: o jornalismo.

A respeito do talento literário de Gabo, um dos mais respeitados colunistas do prestigiado jornal colombiano “El Espectador”, Zalamea Borda, profetizou algo que o futuro mostraria ser uma verdade: “Em Gabriel García Márquez, estamos vendo o nascimento de um extraordinário escritor”. Ciente de sua vocação, Gabriel García Már­quez não pensou duas vezes na decisão que tomaria a respeito de sua vida: paulatinamente, foi abandonando o curso de direito sem nunca o ter concluído. Seguiu para Cartagena consciente do que gostaria de fazer na vida: um aprendiz, segundo ele mesmo dizia, daquela que, para ele, era “a melhor profissão do mundo”.

Levava consigo a experiência de ter sido testemunha dos famosos pro­testos e desordens que ocorreram no centro de Bogotá, protestos ocasionados pelo assassinato do candidato a presidente Jorge Eliécer Gaitán. Também, levava consigo uma vida de boemias vivenciadas nos prostíbulos da capital colombiana e, lógico: uma considerável bagagem de leituras de autores que, certamente, anos mais tarde, influenciaram o gênio literário a elaborar um estilo próprio de narrar suas histórias, que ficou conhecido pelo mundo afora como Realismo Mágico.

Gabriel García Márquez foi um jornalista de excepcionais qualidades. Sua incansável maneira de apurar os fatos, abordando ângulos inovadores da notícia, logo, fez a diferença para que se tornasse o que veio a ser para a imprensa de seu país: um nome de respeito. Quem conhece seus escritos sabe o quanto foi importante na formação do futuro escritor ter sido, antes, um jornalista. Veja-se pelo próprio título de suas obras. “Cem Anos de Solidão”, “Crônica de uma Morte Anunciada”, “O Amor nos Tempos do Cólera”, “Notícias de um Sequestro”, “Ninguém Escreve ao Coronel”, “O General em seu Labirinto”, “A Incrível e Triste História da Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada”, “A Má Hora: o Veneno da Madrugada”. Reparem bem: todos os títulos de livros mais se parecem com chamamento de manchetes de jornais. Em quase todas as suas obras literárias, faz-se notar a presença do jornalista. Certamente, fazer literatura-arte como se fosse reportagens muito contribuiu para cativar o enorme público leitor de seus escritos: “Minha escrita é sempre uma espécie de literatura jornalística”, reconhecia o próprio Gabo.

Como jornalista, o neto do coronel Nicolás Márquez foi enviado para ser correspondente na Europa. Sua estada na França, embora repleta de privações financeiras, possibilitou-lhe descobrir o mundo, até então, desconhecido, anterior à queda do muro de Berlim: o da cortina de ferro. Na Europa, pôde solidificar suas convicções políticas que abraçou durante toda sua vida: à esquerda sem excessos.

Gabo pôde avaliar, numa Alemanha divida pela ideologia, as contradições existentes entre o capitalismo e o socialismo. Quanto a isso, nada mais proveitoso do que avaliar in loco os contrastes de uma Berlim dividida pela Guerra Fria. “Berlim ocidental é uma enorme agência de propaganda capitalista”, disse ele ao conhecer a cidade. Trafegando por Berlim oriental, veio a comprovação de uma cidade, ao mesmo tempo, sombria e desencantada, onde a competição entre o ocidente e o oriente se tornava visível e clara num mesmo espaço geográfico. A conclusão do neto do coronel Nicolás não poderia ser mais apropriada para aquele mundo que, a ele, apresentava-se: “Berlim era um espaço humano aterrorizado, imprevisível e indecifrável, onde nada era o que parecia, onde tudo era manipulado, um lugar em que todos estavam envolvidos em fraudes diárias e ninguém tinha a consciência limpa”.

Na União Soviética, Gabriel García Márquez não só se impressionou com o tamanho de seu território, mas, sobretudo, com o paradoxo de uma sociedade que era capaz de construir e lançar o Sputnik (foguete) na órbita da terra, mas era incapaz de dotar seu povo de padrões razoáveis de vida, expressos por bens de consumo.

Outro fato curioso que não passou despercebido aos olhos do jornalista escritor se refere à inexistência de algo muito presente na América Latina e praticamente inexistente na União Soviética da Guerra Fria: o ódio aos Estados Unidos. A rivalidade se dava muito mais no campo das invenções do que propriamente no tocante ao sentimento de rejeição, como se manifestou no nosso continente contra o ianque invasor ou pelo imperialismo tanto propagado pela esquerda radical latino-americana.

A visão do autor de “O Outono do Patriarca” a respeito da União Soviética que conheceu foi “favorável e solidária”. Prova disso foi a maneira como apoiou Cuba e Fidel na década de 1970. Entretanto, embora simpático à causa socialista, o senso crítico de Gabo não deixou de apontar as fragilidades do regime.

Viver na Europa deu universalidade às futuras obras que o escritor iria produzir. Pari passu, a essa universalidade estava sendo sedimentada a influência de grandes autores, como refino de sua prodigiosa imaginação. O caminho estava, assim, sendo construído para que as lentes do neto do coronel Nicolás voltassem como, anos depois, voltaram-se: para a pequena Aracataca e seus solitários habitantes que o mundo, tempos mais tarde, conheceria como a Macondo de “Cem Anos de Solidão”. Gabo seria capaz de dar universalidade àquele torrão de mundo eternamente condenado à solidão. Uma solidão que se confunde com a própria história da América Latina.

Imaginação prodigiosa

Gabriel García Márquez costumava simplificar as coisas quando fazia referência às suas prestigiosas obras. “Tudo que fiz foi recontar o que vivi”, costumava dizer. Não é bem assim. Sem respirar os ares do mundo e sem o enfrentamento de grandes autores, não se constrói grandes escritores. Sem essas duas qualidades, a escrita cai na vala comum dos escritores de província que nunca conseguem dar universalidade ao que é meramente regional. Escri­to­res regionais não conseguem construir o necessário elo de suas províncias com os ares do mundo. Decidi­damente, este não foi o caso de Gabo, pois ele leu e recebeu influência de autores do primeiro time da literatura mundial. O tcheco Franz Kafka foi um deles.

Cultural_1885.qxd

Os escritos contidos na “Meta­mor­fose”, de Kafka, em que um ho­mem se transforma numa barata, mostraram a Gabo que era possível narrar coisas surreais em literatura. O autor de “Cartas ao Pai” influenciou decisivamente na confiança que o neto do coronel Nicolás Márquez passou a ter em si mesmo. E percebe-se essa influência em romances como “Cem Anos de Solidão”. A ação de seus personagens, como é o caso da previsão do cigano Melquíades, que profere que, caso casamentos consanguíneos se repetissem na árvore genealógica da família Buendía, a criança originada desse incesto nasceria com alguma deformidade, não poderia ser mais kafkiana: a criança, tal qual o homem que se metamorfoseou em barata, nasceu com um rabo de porco. A repetição do casamento consanguíneo condenou ao desaparecimento todas futuras gerações dos Buendía “porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra”.

Tanto Kafka como o colombiano Gabriel García Márquez sofreram com o autoritarismo da figura paterna. A figura opressora de seus progenitores muito influenciou nos “demônios” que ambos os escritores carregaram para a vida e, como escritores de si mesmos, transportaram para seus escritos tal peso. Aliás não apenas Kafka e Gabo padeceram desse mal. O peruano Vargas Llosa também tratou de exorcizar a figura paterna na sua literatura.

O americano William Faulkner foi outro autor de fundamental importância na formação literária do neto do coronel Nicolás. Gabo nutria pelo autor de “O Som e a Fúria” não só uma relação professoral (chamava Faulkner de “mestre”), mas, sobretudo, nutria absoluto respeito pelo seu talento literário. “É um escritor muito bom.” Bom demais para o prêmio Nobel que o autor de “Palmeiras Selva­gens” não ganhou em 1949, em­bo­ra tenha ele recebido o prêmio em 1950. Quando, finalmente, Fau­lkner foi laureado com o No­bel, Gabo não deixou de apontar o deslize ocorrido em 1949. Para ele, o prêmio estava atrasado porque Faulkner era “o maior escritor do mundo contemporâneo e um dos maiores de todos os tempos”. Com o prêmio ganho, te­ria ele de aceitar “o privilégio desconfortável de se tornar moda”.

Assim como Faulkner criou o condado imaginário de Yokna­patawpha, Gabriel, talvez inspirado no mestre, teve a ideia de fazer sua pequena Aracataca se transformar na imaginária Macondo. Não restam dúvidas de que a literatura de Faulkner teve influência decisiva na formação do grande escritor, que viria a tornar-se Gabriel García Márquez. O autor de “O Som e a Fúria” alimentou a alma literária de alguém que tinha um destino certo: tornar-se, como o mestre, um dos maiores escritores do século 20.

Ernest Hemingway foi outro autor pelo qual Gabo nutriu enorme admiração. Hemingway, jornalista como Gabo, teve influência direta em algo que o autor de “O Velho e Mar” sabia fazer como poucos: escrever. Conhecer a obra de Hemingway fez de Gabo o que ele mesmo refere a respeito dessa influência: “Aprendi a ser escritor”.

Muitos estudiosos de suas obras atribuem à inglesa Virginia Woolf um papel menos relevante do que o recebido por Gabo dos três autores acima citados. Outros, entretanto, comungam da ideia de que o grande escritor argentino Jorge Luis Borges tenha influenciado demasiadamente na literatura de Gabo, ao ponto de “‘Cem Anos de Solidão’, quando aparecesse, seria um livro distintamente borgiano”.

Sem intencionar esgotar o leque de grandes autores que influenciaram direta ou indiretamente nos escritos de Gabriel García Már­quez, penso estarmos aptos para dizer que não é nada fácil chegar ao cume da montanha como chegou Gabo depois da publicação de “Cem Anos de Solidão” e o que disso resultou: ganhar o prêmio Nobel e transformar-se numa celebridade mundial. Este é o cume da montanha. Todo mundo vê o cume, mas não enxerga a escalada de subida dessa montanha. Na trajetória de subida, o neto do coronel Nicolás teve muitas privações financeiras na Colômbia e fora dela, muita leitura de grandes escritores, muitas viagens pelo mundo afora. Basta disser que, após os 18 meses que Gabriel García Márquez hibernou no México para escrever sua obra-prima, faltou dinheiro até para enviar os originais pelo correio para um editor na Argentina. Depois do sucesso, todo mundo quis ser amigo de Gabo e, como ele mesmo disse, porém “poucos sabem o que é que eu passei para chegar lá”.

Amizade com Fidel

Gabriel García Márquez poderia muito bem adotar uma atitude típica de outros autores que, como ele, foram laureados com o prêmio Nobel de literatura: a acomodação. Já era um escritor mundialmente consagrado, com uma respeitável produção literária e uma obra-prima incluída entre os cânones da literatura universal. Mas não foi isso que veio a acontecer.

Não se passaram mais que três anos e veio outra obra-prima que representou a metamorfose do talento literário de Gabo. Falo de “O Amor nos Tempos do Cólera”. Vejamos o que nos diz Gerald Martin a respeito do sucesso dessa obra: “O livro impressionou leitores e críticos, porque representava um novo García Márquez, um escritor que havia se metamorfoseado, de algum modo, numa espécie de romancista do século 19 para os tempos modernos, um homem que escrevia sobre o poder e sobre o amor, e o poder do amor”.

[caption id="attachment_4966" align="alignright" width="620"]A amizade com Fidel Castro amordaçou o poder da crítica. García Márquez foi chamado de lacaio do ditador cubano | Foto:  El Tiempo A amizade com Fidel Castro amordaçou o poder da crítica. García Márquez foi chamado de lacaio do ditador cubano | Foto: El Tiempo[/caption]

O trio amoroso que protagoniza o romance, composto de Floren­tino Ariza e seu amor de juventude Firmina Daza, que acaba se casando com o médico Juvenal Urbino, mostra o quanto o poder do amor pode ser represado e florescer em tempos tão adversos como foram aqueles presentes numa Colômbia impregnada pela epidemia do cólera. O reencontro amoroso entre Firmina Daza e Florentino Ariza já na velhice, após a morte do marido dela, é, sem dúvida, um dos pontos altos de uma literatura da mais alta qualidade.

Gerald Martin revela, em seus escritos, que “‘O Amor nos Tempos do Cólera’ pode ser interpretado como um reencontro com seu pai [de Gabriel] e com o passado da Colômbia, mas também como uma investigação do conflito entre o casamento e as aventuras sexuais; é, acima de tudo, um livro sobre o subúrbio de Manga, onde seus pais viveram”.

O prestígio de escritor mundialmente reconhecido concedeu a Gabriel García Márquez considerável peso em outro campo que não o da literatura: na política. Nessa área, seu perfil ideologicamente mais à esquerda, aliado a sua sincera simpatia por Cuba, foram ingredientes suficientes para aproximá-lo de uma figura que sempre suscitou polêmicas no mundo intelectual: Fidel Castro.

Gabo foi um amigo muito próximo do líder da Revolução Cubana. Pessoalmente, sou daqueles que pensam que o intelectual, quando se torna íntimo de governantes, acaba ficando privado da maior arma que dispõe para exercer seu nobre ofício: a liberdade de criticar.

Aconteceu isso com Gabo. Sua amizade com poderosos refletiu, muitas vezes, num incômodo silêncio. Vargas Llosa, seu ex-amigo e ideologicamente identificado com os liberais, não deixou por menos: “Lacaio de Fidel Castro” e “oportunista político”.

Certamente, oportunista político Gabriel García Márquez não demonstrou ser, pois se existe alguém que se dispôs a investir muito de seu dinheiro em Cuba, este alguém foi Gabo. Entretanto muito do seu silêncio em relação às polêmicas (até os erros cometidos pelo regime) evidencia aquilo que anteriormente mencionamos: a proximidade com o poder amordaça o poder da crítica, tão necessário aos intelectuais que privam pela sua liberdade de expressão.

[caption id="attachment_4970" align="alignright" width="300"]Gerald Martin, autor do mais importante estudo sobre a vida e a obra de Gabriel García Márquez | Foto: Mario Guzm‘n Gerald Martin, autor do mais importante estudo sobre a vida e a obra de Gabriel García Márquez | Foto: Mario Guzm‘n[/caption]
O novo Cervantes

A última cena do filme da vida do autor de “Ninguém Escreve ao Coronel” acabou de ser rodada. Gabriel García Márquez deixou órfãos não só sua família, mas, também, milhões de admiradores que tem pelo mundo afora. Na sua vida privada, teve uma família harmoniosa e uma esposa que o acompanhou por cerca de 60 anos. Mercedes foi uma “companheira cheia de qualidades”, que sempre primou pela perspicácia, discrição e apoio incondicional ao marido. O mesmo se pode dizer dos seus filhos. Com os quais, declarou ele, certa vez, à revista “Paris Match” ter “excelentes relações. Eles [os dois filhos] são o que querem ser e aquilo que eu queria que eles fossem”.

Ao contrário de Miguel de Cer­vantes, que, em vida, não foi reconhecido, Gabriel García Márquez conheceu a glória em vida. Prova de sua importância foi a enorme repercussão que teve sua morte pelo mundo afora. Não tenho dúvidas de que neste e no outro mundo o neto do coronel Nicolás Márquez será sempre eterno.

Para saber mais sobre García Márquez

Para uma leitura perspicaz da prosa e do próprio García Márquez, recomenda-se o ensaio “Gabriel García Már­quez — À Sombra do Pa­triarca”, inserto no livro “Os Redentores — Ideias e Poder na América Latina” (Benvirá, 606 páginas, tradução de Magda Lopes, Cecília Gouvêa Dou­rado e Gabriel Federicci), do jornalista, ensaísta e historiador mexicano Enrique Krauze, parceiro de Octavio Paz na criação da revista “Vuelta” e professor convidado de Oxford. Leia breve comentário sobre o livro no link: http://bit.ly/1gOJb6S. Sobre o conflito com Mario Vargas Llosa pode-se ler no link: http://bit.ly/1h8O0Ta.

Salatiel Soares Correia é crítico literário e mestre em Planejamento Energético pela Unicamp.

Philip Roth e a seiva do fanatismo

Em “Indignação”, o escritor norte-americano Philip Roth mostra como nossas escolhas mais insignificantes podem ter consequências devastadoras

[caption id="attachment_4940" align="alignright" width="620"]Philip Roth, escritor americano, cria um universo ficcional para tratar de dois assuntos polêmicos: a Guerra da Coreia e a tensão sexual entre jovens e adultos | Foto: Richard Drew/AP Philip Roth, escritor americano, cria um universo ficcional para tratar de dois assuntos polêmicos: a Guerra da Coreia e a tensão sexual entre jovens e adultos | Foto: Richard Drew/AP[/caption]

J.C. Guimarães Especial para o Jornal Opção

Matemático e fundador do X-Center, em Viena, John Casti es­tuda eventos extremos. Em livro traduzido no Brasil, “O Co­lapso de Tudo, o cientista enumera sete princípios da complexidade, entre eles o chamado Efeito Borboleta: “A ideia básica é que os sistemas complexos são patologicamente sensíveis a mudanças minúsculas em seu estado inicial”. Tais mudanças, apesar de insignificantes, evoluem exponencialmente e produzem consequências devastadoras, na extremidade. Um exemplo aleatório, inacreditável e verdadeiro, segundo Casti: George W. Bush se reelegeu presidente dos Estados Unidos, em 2004, porque uma funcionária do processo eleitoral americano, Theresa Le Port, aumentou o tamanho da tipografia na cédula eleitoral.

Imagino que esta seja uma maneira nada convencional de começar a estudar um romance; no caso, “Indignação”, do americano Philip Roth, traduzido por Jório Dauster. A antropologia demonstrou que as relações sociais, com seus códigos, ritos e valores, constituem verdadeiros sistemas, e as últimas palavras do protagonista Marcus Messner justificam a analogia em questão, ao referir-se à “forma terrível e incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais”. O resultado a que se refere é a própria morte numa guerra, e as escolhas banais um conjunto de pequenos atos, o primeiro dos quais a fuga de casa para escapar da perseguição paterna, estimulada por premonições. Mais tarde, a masturbação fortuita com que a única namorada satisfez a ereção súbita do herói, dentro de um hospital, gesto decisivo para aquele trágico desfecho. “Por um rápido toque de mão de Olívia, minha recompensa seria a Coreia”, diz, já morto, rememorando os fatos de sua vida. Que nexo previamente oculto pode haver entre tudo isto e aquilo?

Desvendar o que está por trás de tais absurdos — similares aos absurdos da vida real — foi a tarefa que se propôs Philip Roth com “Indignação”, história organizada em quatro núcleos dramáticos: a família, constituída de pai e mãe; a universidade, representada pelo diretor de alunos Howes D. Caudwell e pelo presidente Albin Lentz; as confrarias da instituição, sobressaindo os colegas Sonny Cottler, o endiabrado Bertram Flusser e Elvyn Ayers Jr.; por último o amor, Olívia Hutton. A guerra é a sombra que paira do primeiro ao último parágrafo; sombra que é o simulacro da morte, empestando de sangue a vida de Messner desde a adolescência até o campo de batalha. Grande ironia, o eviscerador de galinhas terminará fatiado por uma baioneta aos 19 anos de idade, cumprindo as premonições do pai.

Marcus Messner é filho de açougueiros judeus, único rebento de um pai atemorizado pela ideia de perdê-lo em função de algum descuido, “a menor coisinha”. O contexto histórico justifica sua paranoia: o drama se passa entre 1951 e 1952, nos Estados Unidos, durante a guerra contra os comunistas no extremo oriente, e o passado da família em conflitos dessa natureza é negativo. Compreen­sível, o temor paterno vira obsessão, e é com o objetivo de livrar-se desse tormento doméstico que o rapaz entra para a universidade: “Estava ansioso para me tornar adulto e independente, exatamente aquilo que vinha causando terror em meu pai”.

Messner estuda o primeiro ano na Robert Treat, localizada em Newark, onde mora, e assim seria até se formar, caso o pai não começasse a persegui-lo. Isso o leva a transferir-se para a provinciana Winesburg, na área rural de Ohio, primeiro daqueles passos fatais. A nova universidade é provinciana, tradicionalista e profundamente influenciada pelo moralismo puritano dos seus dirigentes, em contraste com as convicções liberais do novo aluno. O rapaz se depara com os valores predominantes da direção e também das confrarias de estudantes, que tentam cooptá-lo: “Quase toda a vida social dos cerca de mil e duzentos alunos da universidade se passava atrás das pesadas portas com ferragens negras das fraternidades”. Apesar do assédio, Mes­s­ner mantém-se equidistante, com um único objetivo em mente: estudar. É tão aplicado nos estudos — que lhe serviriam ainda para es­capar da convocação militar, ou, quando menos, assegurar-lhe uma patente — que logo desentende-se com Bertram Flusser, companheiro de quarto que não lhe dá sossego. Consequentemente, muda-se para outro quarto, onde trava relações com o silencioso Elvym Eyers Jr., cujo único interesse é o próprio carro, um possante modelo La salle, da GM.

Cultural_1885.qxd

Enquanto isso Messner se envolve com Olívia Hutton, primeira e única experiência erótica de sua curta existência: “Jamais me sentira tão vulnerável ao repartido dos cabelos de qualquer pessoa”. Como ele próprio, Olívia é uma estudante solitária e inteligente, muito acima da média. Certo dia saem juntos no carro de Elvym, quando então a garota lhe faz sexo oral, deixando-o extasiado e entregue à paixão. Logo ele descobrirá que a garota é depressiva e tentara o suicídio, cortando o pulso. Trocam correspondências, e Messner decide revelar o que lhe aconteceu a Elvym, que, insensível, chama Olívia de prostituta. Este aproveita a ocasião e diz que ela houvera praticado o mesmo gesto em Sonny Cottler, de traços principescos e líder de uma das fraternidades locais. Desentendem-se e Messner decide trocar de quarto pela segunda vez: entra em cena o diretor de alunos Howes D. Caudwel, iniciando uma perseguição não menos implacável que a do pai. Discutem abertamente e Caudwel descobre as tendências ateias e materialistas de Messner, que apenas piora sua situação junto ao diretor, tradicionalista empedernido.

Enquanto discutem o rapaz passa mal e, em seguida, é internado num hospital para tratar uma apendicite. Internado, recebe a visita de Olívia, oportunidade em que ela lhe faz carícias sexuais: por infelicidade o casal é surpreendido pela enfermeira no momento exato do clímax. Dá-se, assim, o terceiro passo para cumprir aquele trágico destino (como adivinhar o futuro?). Também sua mãe vem visitá-lo e conhece Olívia. Perspicaz, desaprova veementemente tal relacionamento; ela tem sobre a família do velho Messner — de quem pretende ser separar — as mesmas reservas do filho racional, agora tentado pelos sentimentos, dando-lhe o conselho memorável: “Não seja como eles. Você tem que ser maior que seus sentimentos. Não sou eu que exige isso de você; é a vida que exige. Se não, você vai ser levado de roldão pelos seus sentimentos. Eles vão te levar até o mar e você não será mais visto. Os sentimentos podem ser o maior problema na vida”.

O filho promete, mas não cumpre, ir adiante com a namorada, e quando volta para a universidade não consegue mais reencontrá-la. Os fatos vão se concatenando e Caudwel novamente convida o rapaz para ir ao seu gabinete, com a desculpa de convidá-lo para o time de beisebol da universidade. Lá chegando, o afoito Messner precipita-se e pergunta ao diretor sobre o paradeiro de Olívia, sendo informado que ela fora internada numa clínica psiquiátrica, e mais: está grávida. A suspeita recai sobre ele, uma vez que o diretor ficou sabendo o que houve no hospital, entre o casal.

O último passo em falso de Messner, que poderia ser descoberto por Caudwel, foi ter aceitado o conselho de Sonny Cottler — de quem sempre desconfiara — para subornar um certo Marty Ziegler com o objetivo de prestar o serviço religioso em seu lugar, já que não suporta a obrigatoriedade de assistir à doutrinação religiosa, de acordo com o programa universitário. Na sequência, ocorre um fato capital, de ressonâncias políticas: a rebelião de estudantes conhecido depois como Grande Ataque às Calcinhas Brancas, quando uma simples brincadeira na neve evolui para uma catarse coletiva de fortes conotações sexuais. A repercussão é nacional e escandalosamente inaceitável para a instituição e seus fundamentos retrógrados. Iniciam-se os interrogatórios e uma série de alunos terminam expulsos, entre os quais o infeliz Marcus Messner. Ao ser expulso é convocado pelo exército. Convocado, morre na guerra da qual tentou, desesperadamente, escapar.

As últimas páginas sumariam a carnificina no campo de batalha, e só então tomamos conhecimento de que estávamos ouvindo a narrativa de um cadáver: “Memória em cima de memória — nada mais do que memória.”

“Indignação” é a lembrança de um morto, aliás como a do nosso melancólico Brás Cubas. Curiosa­mente, Roth leu o romance de Machado de Assis e depois esqueceu o nome do autor brasileiro, conforme declarou em entrevista concedida à revista “Época”.

“Você sabe que li um único autor brasileiro? É a imagem que tenho do Brasil. Não me recordo do nome dele, mas é um romance irônico, de narrativa descontínua, sobre um homem morto que conta suas paixões e confusões em primeira pessoa. Adorei.”

Esquecer Machado de Assis é, de nossa pers­pectiva, um tanto inacreditável, principalmente por sensibilidades extraordinárias quanto a do escritor americano. Ele tampouco es­cla­rece quando é que o leu (seu romance foi pu­blicado em 2008), em todo o caso a analogia é evidente, sem que se possa falar com se­gu­rança em influência direta ou indireta. Roth nasceu em 1933 e tornou-se um dos mais premiados autores dos Estados Unidos, tendo amealhado o Pulitzer, por “Pastoral Ame­ri­ca­na”, e o Príncipe das Astúrias, por sua contri­bui­ção à literatura. Malcolm Bradbury (“O Ro­mance Americano Moderno”) o situa no grupo dos “judaico-norte-americanos”, do qual fazem parte Saul Bellow, Norman Mailer e Bernard Malamud. O humanismo era o ob­je­tivo comum desta vertente, além do desejo de “ligar a história do indivíduo com o processo mais amplo da sociedade, porém tais indivíduos tinham de ser vistos também como alienados, vitimizados, deslocados, materialmente satisfeitos mas espiritualmente danificados, conformistas mas sem lei, racionais mas anárquicos”.

Podemos enxergar algumas dessas características em Marcus Messner, seguramente vitimizado, deslocado e racional a ponto de não tolerar a influência religiosa na instituição laica, na qual pretende se ver livre do pai. “Indignação” trata de dois assuntos polêmicos, bastante conhecidos da geração de meados do século 20, nos Estados Unidos: a Guerra da Coreia e o moralismo sexual prevalecente nas regiões mais provincianas do país. O auge desse conflito de valores culturais entre gerações explodiria anos mais tarde, durante a luta pelos direitos civis no contexto político da Grande Sociedade, de Lyndon Johnson. Para tratar daqueles assuntos, com a propriedade de uma testemunha, é que Roth cria o universo inteiramente novo e surpreendente de “Indignação”. É impossível prever a sorte desse livro na extensa e representativa produção de Roth, em todo caso ele tem a força das obras capitais.

Do autor eu li também “O Animal Agonizante”, romance mais intimista e, a meu ver, menos fascinante, que narra a aventura amorosa de um velho com uma garota sensualíssima. Permite estabelecer uma tendência do autor, observada por Bradbury, ao registrar a ligação da história individual com “o processo mais amplo da sociedade”. De fato, ele gosta de colocar seus personagens em choque contra os valores institucionalizados. Outra vez deparamos com o tema da liberdade sexual, e outra vez nos vemos dentro de uma narrativa parcialmente histórica, colidindo duas ideologias por intermédio da ação individual. O individualismo de Messner é eloquente, e ignoro se por isso Roth — autor de pelo menos 30 obras literárias — pode ser definido como escritor emersoniano. Mas “Indigna­ção” possui elementos que reafirmam aquele ethos individualista, proclamado pelo sábio de Concord. Baseio essa opinião no conflito do personagem contra a moral prevalecente e num importante ensaio transcendentalista, “Autoconfiança”, em minha opinião o mais memorável dos escritos que conheço de Ralph Waldo Emerson.

No longo e tenso diálogo ocorrido no primeiro encontro com o diretor Caudwell — quando o conselho da mãe cede ao impulso e ele manda o diretor “se foder!” (“Os sentimentos podem ser o maior problema na vida”, dizia ela) —, nesse encontro Messner evoca Bertrand Russel para fundamentar sua recusa em aceitar as regras impostas pela instituição, dizendo que pretende viver em conformidade com o ideário contido no ensaio “Por que Não Sou um Cristão”, do filósofo inglês. As altercações do diretor se voltam todas para a preferência religiosa, o relacionamento social e o convívio familiar de Messner, permitindo acompanhar como a moral puritana se infiltra na intimidade dos estudantes, pretendendo dominá-los completamente. Trata-se do diálogo mais absurdo do mundo, no qual o diretor de alunos faz perguntas invasivas que poderiam ser feitas a si mesmo, diante do espelho, para cair em contradição. É um capítulo de alto humorismo, de onde aliás se extrai o título “Indignation”, inspirado no hino nacional chinês, que Messner recordará ao entrar na sala do intragável diretor de alunos:

“Erguei-vos, vós que recusais a serdes escravos! Com nossa própria carne e sangue Constituiremos uma nova Grande Muralha! O povo chinês encontrou o seu dia de perigo. A indignação enche o coração de todos os nossos compatriotas, Erguei-vos! Erguei-vos! Erguei-vos!”

Caudwell não admite as “dificuldades de socialização” e “isolamento” de seu aluno, seguro o bastante para afirmar a própria independência: “Não tenho interesse pela vida nas fraternidades”. Então, apesar da declarada influência de Russel, a idiossincrasia de Messner reverbera a do próprio Emerson, quando este proclama que “quem deseja ser um homem tem de ser um dissidente”. Mais do que uma invenção emersoniana, estaríamos na verdade diante de uma característica cultural que parece transcender gerações de americanos. Messner é a perfeita encarnação do dissidente: não liga para “fraternidades” — latu sensu, partidos, clubes, grupos, associações, igrejas — e só se interessa pelo conhecimento: “meu único interesse são os estudos”, declara provocativamente o jovem que “não tem medo de ficar sozinho”. É algo instintivo, inato, e não pelo qual tenha sido educado. As palavras abaixo poderiam seguramente fazer parte do credo de Marcus Messner: “Por toda parte a sociedade está em conspiração contra a virilidade de cada um de seus membros. A sociedade é uma companhia por ações, na qual os sócios concordam, para melhor assegurar o pão de cada acionista, em renunciar à liberdade e à cultura de quem dela desfruta. A virtude de maior demanda é a conformidade. A autoconfiança é causa de aversão. À sociedade não aprazem realidades e criadores, mas nomes e costumes”.

Emerson era gnóstico e Messner, apesar do sangue judeu, ateu convicto. Mesmo assim foi capaz de sugerir irresistivelmente a manifestação do mal em dois colegas: Sony Cotller, magistralmente descrito como figura luciferiana (“o anjo da morte”), e Merty Ziegler, bem próximo de Judas ao aceitar o suborno de Messner para substituí-lo nos serviços religiosos da Winesburg, ao custo de um dólar e cinquenta centavos: “Esse Zigler era um erro, eu tinha certeza — o erro final”.

A causa primeira e insignificante daquele destino desproporcional foi o medo paterno incorporado pelo herói, destinado por associação a representar o terror de gerações sucessivas de jovens norte-americanos. O pai é um sujeito simples e trabalhador, tendo ensinado a Messner um ofício sangrento. Mas a relação de amor entre os dois termina em ódio, em função da paranoia que toma conta do velho açougueiro kosher. Transforma-se assim no símbolo de uma autoridade renegada que Messner, todavia, volta a reencontrar encarnado no velho e poderoso Caudwell, em Winesburg. A guerra particular de Messner é contra a autoridade e tudo o que ela significa de repressão aos instintos vitais do homem. As únicas referências positivas na vida do estudante são as duas figuras femininas do romance: a mãe — “era tudo, menos frágil e submissa” — e a namorada, Olívia, com quem perde a virgindade, por ele tratada como verdadeira heroína.

Roth integra uma possível tradição romanesca que inclui Gabriel García Márquez, Machado de Assis e Gustave Flaubert: a tradição que exalta a mulher como figura de fibra superior e mais heroica do que o homem, descrito como materialista, frágil e mesquinho.

Estou de acordo com isso. Porém, tenho opiniões sobre Olívia que talvez não sejam facilmente partilhadas pelos demais leitores de Roth, sobretudo mulheres. A mais importante: ela simboliza, em primeira ordem, o desejo masculino insatisfeito no mundo real, onde é recriminado. Qual desejo? Ser compreendido por elas em sua ânsia insaciável por sexo (que parece ser um dos temas prediletos de Roth). Ela declara a Messner, após a primeira experiência com ele: “Eu-queria-te-dar-o-que-você-queria. Será que é muito difícil entender essas palavras?” A pergunta sobre a dificuldade de entender é principalmente dirigida ao leitor (ou melhor, leitora), e acho difícil imaginá-la como especulação de mulher. Nesse sentido, Olívia tampouco seria criação de uma romancista: só poderia ser concebida por quem entende a angústia masculina — um homem; nesse caso o escritor Phillip Roth, criador de sensualistas tão incorrigíveis quanto David Lurie, de J.M. Coetzee (“Desonra”) e Antônio Fernandes, de Sérgio Sant’Anna (“O Livro de Praga”).

Mas a sondagem da psicologia feminina não fica a dever: o que as excita, ao menos de um ponto de vista masculino, é o poder — o carrão de Elvyn Ayers Jr., dentro do qual Messner e Olívia iniciam sua aventura amorosa — e, pelo menos em 1950, os limites, proibições e tabus que impediam as moças de reestabelecer os vínculos familiares perdidos. Ou seja, nada a ver com as tentações da carne, como acontece com os homens: o que as motiva em primeira ordem, nos relacionamentos, é a segurança e a estabilidade pessoal e da prole. Porém Olívia é exuberante demais e comporta outra interpretação fundamental, ao lado de seu amante: a de vítima do modelo educacional e da moral repressiva capitaneados por Caudwell, que atinge a medula da sociedade, isto é, a família. Afinal: “Seu pai é um cirurgião de Cleveland e ilustre ex-aluno da Winesburg, por isso a recebemos a pedido do doutor Hutton. Não deu certo nem para o doutor Hutton nem para a universidade, e muito menos para Olívia”.

Trata-se de uma confissão inconsciente de Cau­dwell quanto ao fracasso do modelo educacional implantado. No mesmo capítulo, o que dirá Messner? Que “eu próprio havia sido tragado pela insipidez não apenas dos costumes de Winesburg, mas da retidão que tiranizava minha vida, a retidão sufocante que, eu estava pronto a concluir, levara Olívia à loucura”.

O destino da namorada, como será o seu e de vários jovens, é produto desta retidão in­con­sequente. Outro efeito colateral, e desta vez coletivo, dessa educação repressiva, é im­placavelmente diagnosticado: a catarse desenfreada dos estudantes que culmina no Grande Ataque às Calcinhas Brancas, no epílogo: “Vez por outra, uma voz masculina profunda, articulando o pensamento de todos aqueles que não eram mais capazes de obedecer ao sistema prevalecente de disciplina moral, urrava abertamente: Queremos as garotas!”. A conformidade perturbadora dos estudantes termina explodindo de maneira irracional, culminando naquelas consequências desproporcionais, aludidas desde o começo. Messner, devido ao ato libidinoso, ao desacato da autoridade e à fraude, é expulso de roldão, junto com os colegas insubordinados. Sua racionalidade não prevaleceu sobre os impulsos, dando inteira razão às advertências da mãe.

O panorama final de “Indignação” reflete a nulidade das associações humanas, sem chegar ao extremismo niilista, com a combinação explosiva das religiões institucionalizadas. Para Roth, cuja única crença possível parece ser no individualismo, não é daí que emergem os indivíduos moralmente sãos. O prêmio de Messner, por se rebelar contra as regras da religião e seguir a própria consciência, foi a morte prematura: outra vez o fanatismo religioso derramara o sangue dos inocentes.

J.C. Guimarães é ensaísta e historiador.

via Revista Bula

Já me preparo para a morte

Para quem está focado em se preparar para a morte já não importa juntar riqueza. Mas é preciso plantar algo a cada dia

O realismo trágico de “Os Demônios”, de Dostoiévski

Partindo da história do assassinato de um estudante, Dostoiévski faz estudo profundo do pensamento político, social, filosófico e religioso de seu tempo. Como um profeta, o autor visualiza os desvios que o socialismo real viria a apresentar até o seu esfacelamento

Nódoas: o torturador ele só em sua noite

Valdivino Braz cul11d

Noite adentro, a tosse intermitente e ele a se arrebentar em golfadas de sangue; uma dor feito estilete a trespassar-lhe os pulmões agonizantes, e umas pontadas repentinas a confranger-lhe o débil coração, arrancando-lhe, tal fossem nacos de carne, os entrecortados gemidos. Rangem as molas soltas do colchão, infestado de percevejos, toda vez que ele, ao tossir, se agita no leito. Fora, uiva o vento, ao modo de um cão agoniado, perdido na treva. Relâmpagos incendeiam os vidros da janela, clareando as áreas obscuras do quarto frio e fétido, parcialmente iluminado pela luz mortiça dum antiquado abajur.

Ratos enormes movimentam-se pelo recinto, emitindo guinchos cantantes, à semelhança de carretilha ao correr duma corda. Um deles, por mais afoito e incisivo, a roer com exaspero a tira de couro que serve de emenda a uma perna quebrada da cama, ali aos pés do moribundo. Entrecruzam-se os roedores, desassossegados, e o enfermo contempla-os com pavor e funesto pressentimento de que ali estão para devorá-lo, a qualquer momento. O pavor aumenta a cada vez que ele, numa sofrida vigília, surpreende os olhos miúdos e brilhantes a fitá-lo com sinistra insistência. Com supremo esforço, tenta soerguer-se no leito nauseabundo, afugentar o inimigo, mas o violento acesso de tosse de novo o acomete, e ele torna a estirar-se, arfante, esgotado, em seus trapos de nojo, infectados pelos bacilos de Koch.

O velho relógio-despertador, sobre o corroído criado-mudo, registra os artifícios do tempo: o cansado tique-taque, aos ouvidos de quem ali jaz e agoniza, soa como o implacável e fatal limite de sua própria resistência, frágil fôlego, dificultosa respiração. Ele sentindo-se cada vez mais próximo do fim, sobremodo quando a espiral no labirinto do relógio, em disritmia com a mecânica das engrenagens, bambeia e se descompassa, desabala-se como que estrabulega: clocloclecleclec!, em sonido de lata velha, que o sobressalta tanto mais, pois então é o seu podre coração atabalhoado por taquicardia, ao que ele se compara com o estafado relógio, sem tirar nem pôr, até mesmo — ele imagina — o giro empenado das rodas denteadas do tempo, e douradas, como do espelho o fundo fosco, que à luz do dia se entremostra ali nos úmidos e mofos da parede, carcomida pelas goteiras.

A água devorando a cal do reboco, em que pese exagerar-se a comparação, semelha uma cadela a roer o osso. E o tempo, ao moribundo ensanguentado no leito, é um cão danado a abocanhar-lhe a vida sempre que se dá o salto frouxo da mola serpentina do relógio, com olhos de rubi, da cor do sangue que ele escarra nos panos impuros em que se deita; o branco do tecido há muito maculado por repulsivos humores de um corpo em decomposição, não bastassem ali aqueles coalhos sanguinolentos e assustadores. Já o enfermo por demais debilitado, como quando se debilitam as pulsações cardíacas, a sístole-diástole oscilando num sobe-e-desce crepuscular, ao emitir-se dos bips luminosos no cardiógrafo de um hospital. Ele agora com um pé na cova e o outro ainda numa nebulosa da vida, a um passo da eternidade, from here to eternity, daqui até lá, ele só e mais ninguém — sempre solitário e tímido ao extremo com o sexo oposto, curtiu uma queda por Deborah Kherr, estrela de um filme de época, década de 50, ao qual ele gostara de assistir: um drama numa base militar, anos 40, conflitos e amantes ilícitos, com uma famosa cena de beijo, sugestivamente — entenda-se — banhado pela espuma do mar.

O tempo, agora, como se co­bras­se do moribundo um ajuste de con­tas por sua sórdida vida pregressa, por seus atos truculentos, por seus crimes hediondos, pela tor­tura e morte, com requintes de sa­dismo, de presos políticos, por conta do livre-pensar e pensar de for­ma diferente. Era ele um produto e instrumento do arbítrio; era um deles, desses que resvalam para o rodapé da evolução humana, na escala natural dos símios, e desistem de ser homens, senão que re­gri­dem ao estágio dos girinos, ou ain­da ao reino unicelular das amebas.

Esgotam-se, inexoráveis, impiedosos, os minutos que ainda lhe restam, e, para seu maior pavor, mais e mais se atreve a determinação dos ratos. Acelera-se a agonia ao desarranjo das horas que lhe vão esgarçando o fio de vida, para arrebentá-lo de súbito. Acossado pelos terríveis acessos de tosse e pelas fundas ferroadas no peito; cercado pelos ratos e já por conta do implacável avanço das lanças negras no relógio da morte, ele está só consigo mesmo, como jamais esteve ao longo de sua malversada vida; falto, ele, de sentimento humanista, de valores que regem o lado bom da humanidade, tomando-se por bom o oposto ao que faz sofrer, como se toma por mal o que não é por bem do outro, indo-se o bem que se quer por inerência do individual ao coletivo, e em nada recorrente ao dualismo maniqueísta do século III — entre Deus e o Diabo —, primado de um viés reducionista e retrógrado, e posto que em nada absoluto o que é relativo. Dizê-lo assim — relativizar —, todavia e certamente não justifica, em sã consciência, o torturador em questão; tanto menos quanto querer, por meio de vesgo argumento, justificar o que é mau e causa dor, contrário ao que é bom e é de foro íntimo não infligir sofrimento a outrem; já não fosse que a vida por si mesma é um sofrimento, amiúde dolorosa, amiúde alegre, mas nem sempre.

Nessa hora de sustos e punhais do tempo no peito, sombras emergem do passado e vêm assombrar ainda mais o espírito atribulado pela ideia do fim. Visões fantasmagóricas avultam-se na penumbra do quarto, dedos em riste apontam para o gemebundo tuberculoso, vozes acusadoras ressoam-lhe nos tímpanos, atordoam-lhe o cérebro, e vão num crescendo alucinante, somando-se às dores do mal que o apodrece e devora. Bolas de sangue explodem e coagulam no ensebado lençol, dimensionando-lhe o pavor do agora, tanto mais por saber-se abandonado, sozinho com os seus fantasmas e a sua morte. Sequer um cão vagabundo, o mais rabugento, o mais pustulento, o mais repulsivo que fosse, nessa hora crucial, nessa noite tenebrosa, que ele sabe derradeiras. Ah, merecesse ao menos um afeto ou afago compadecido! Mas, não. Apenas os ratos, previsíveis no seu intento, e os espectros da noite em torno de sua agonia final.

O vento vergasta, furiosamente, a janela, querendo entrar, e línguas de fo­go lambem a vidraça a todo mo­mento. Guincham os ratos, histéricos com o manifesto das forças naturais, e, atraídos pelo cheiro do san­gue, começam a subir no leito infecto, tantos, que o miserável homem ali se sente como um deles, um rato abjeto ao desprezo da família humana, apartado do calor solidário que, ao fim, e apesar de tudo, movimenta as rodas do mundo. Atacam-no, afinal, os sinistros. Cravam-lhe os dentes, mordem, mordem e dilaceram a carne. Ele grita, e tosse, golfando os pavorosos coágulos. Tenta levantar-se e não consegue, dezenas de mãos o impedem, subjugam-no, como garras de ferro. Em vão ele se debate. Rostos antigos bailam diante de seus olhos turvos, olhos furiosos o fitam, dedos o apontam, vozes o acusam. Ele grita, e tosse, e vomita sangue e se estertora e se entrega, vencido, à sanha dos dentes pontiagudos. Talvez jamais tenha pensado nisto, mas tem a vida seus próprios ditames e caprichos, tem suas represálias à revelia de quaisquer outros mecanismos, por vontades do homem. Ao giro das rodas do mundo, tem a vida suas sábias e higiênicas providências.

Roído pelos ratos famintos, vai-se o enfermo pelo ermo de seu inferno. Sentenciado por seus atos de culpa, ele ainda respira entre os claros finais de lucidez e a febre do delírio; mas é tarde, muito tarde, e tempo não há mais para nada. Negros (co)lapsos de tempo são a grafite finita no lápis da vida, acabou-se a escrita. Ali os panos encardidos de sua cama, com eles o asqueroso lençol, sudário aos fluidos humorais. O suor, a linfa, a urina, o sangue, as nódoas de toda a sua podridão. Putrefato o banquete dos ratos, posto que o corpo ali se furta ao repasto dos abutres, mas não lhe escapam, de resto, as sobras aos benditos vermes da Criação, que se arrastam, embolados e nojentos, pela terra de todos e de ninguém. A terra dos homens. O berço e o caixão. A terra abençoada em que jaz a humana pequenez da pretensa e presumida grandeza humana. A mísera suposição de ser o que de fato não é; e presumida porque iludida e ensimesmada, convencida de si mesma. A terra e nela o homem em seu devido lugar. Pó ao pó, a arrogância do saber de reizinhos atarracados, pançudos, e o poder de gigantes empertigados, uns e outros reclusos na empáfia de suas poses, supostamente sábios e poderosos em suas bobas ilusões de ser e vida efêmera.

O trovão estronda e a tudo estremece. Leclecleclec... — o relógio para de pulsar. E assim o torturador ele só em sua noite, sem a sua turma e longe da putíssima — leia-se digníssima — senhora sua mãe, coitada, não tem culpa — salvo que involuntária — de tê-lo parido, de ter posto no mundo esse tipo de homem, um estrupício, uma aberração como essa, em figura de gente. E Deus criou o homem, está escrito. E o homem arvorou-se em imagem e semelhança de Deus. Durma-se com essa. Pelo amor de Deus!

Com água do dilúvio, a terra se purifica de algumas impurezas. O dia amanhece limpo e calmo, claro e cristalino, como se a justiça, afinal, saísse a passeio pelo mundo, se bem que a justiça sempre leva no bolso a conveniência de alguma impunidade, a conivência sob o surrado manto da injustiça.

Aos poucos, ao esquentar-se do sol, as coisas se consolidam em seus contornos, e o admirável mundo novo segundo Huxley retoma sua rotina. Também as víboras saem para o cotidiano e tomam seu matinal banho de sol. E agora a sombra do urubu se recorta e faz sua ronda no ilusório azul do céu. Enquanto isso, espessos volumes, calhamaços em papel-ofício, mil vezes carimbados e rubricados, mais e mais se recolhem aos aposentos da morosa Justiça. Justiça para quem? Às traças os processos arquivados, prescritos os crimes contra os civis, anistiados os culpados, inclusive a parte podre da sociedade civil, e toda a impunidade aos generais. E não se fala mais nisso. Não se repisa esse assunto. Não se alimente, pois, o ranço do ressentimento, nem o desejo de revanche. Os generais são inocentes. Agiram e mataram no cumprimento do dever. Reféns do refrão da obediência. Para todos os efeitos, e de uma vez por todas, revogam-se as disposições em contrário. Para que reprisar os tristes fatos, reabrir cicatrizes? Afinal, cinismo à parte, não doeu tanto assim, doeu? Então para que falar-se em nódoas da história? Os uniformes dos generais estão limpos, lavados e bem-passados. Polidas, livres do zinabre do tempo, brilham as medalhas no peito dos heróis da Pátria. E não lhes venham com ironias baratas, querendo conspurcar-lhes o verde-oliva das fardas, denegri-los por conta delas, a eles, conspícuos bastiões da soberania nacional. Os generais não são assassinos. As estátuas nas praças da República são regularmente limpas de suas impurezas, removido pelas chuvas o cocô dos pombos, embora resista, renitente, a nódoa comprometedora da pátina esverdeada, cor de biles, de vômito.

Valdivino Braz é jornalista e escritor, autor do premiado romance “O Gado de Deus”.

Faltou pouco para que eu me desapaixonasse por você

“Deixa que minha mão errante adentre atrás, na frente, em cima, embaixo, entre”

Um ajuste de contas com a utopia

“O Homem que Amava os Cachorros”, de Leonardo Padura, é ao mesmo tempo, romance histórico, thriller policial e um minucioso informe da derrota e do horror. Um afresco instigante sobre as contradições das utopias libertárias que moveram o século 20