J.C. Guimarães
Especial para o Jornal Opção

cul2Martiniano Almeida Rossi, 61 anos: não inventarei um personagem. É este aí mesmo. Militante político, publicitário e engenheiro (gostaria nessa ordem, provavelmente), foi um dos fundadores do nosso partido. Foi também um líder de caráter, idealista e coerente.

Faleceu num sábado, 29 de agosto. Um dia antes me ligara: era o último de sua vida — como poderia saber? —, mas estava interessado numa coisa de somenos importância, diante da enormidade do passo seguinte. Queria saber se eu topava pleitear uma vaga na direção municipal. Com a voz estrangulada pela rouquidão, quase não entendi o que falava. Propora indicar o meu nome para a chapa vencedora; se dispôs a defendê-lo como postulante do grupo. Aceitei sua ilusão e respondi-lhe com firmeza, como se travássemos um despreocupado diálogo entre Esculápio e Ganime­des. Foi a última vez que nos falamos.

Antes que morresse nos encontramos algumas vezes, em sequência. A quarta vez foi há duas semanas, em sua casa, nas proximidades da Praça Cívica. O motivo, ordinário, era o partido: o partido era o elo que nos unia e nos separava. Marcus Messner, o egoísta, não tinha mais o gosto religioso das confrarias, como seu amigo de outros tempos, que se tornava, gradativamente, uma relíquia histórica. Messner achava insuportável a ideia de viver e morrer em função do grupo, como se o mundo permanecesse dividido entre comunistas e capitalistas: talvez o quiséssemos; talvez fosse insuportável perder o chão, mas a vida não liga. A história é a maior potência da história. Desenraiza-nos, atropela nossas paixões. É invencível.

Entre debiques e fumaradas, Mar­tiniano se divertia com reuniões muito mais do que eu — como aliás se divertiu, naquele dia, no início da tarde. Na roda en­contrávamos eu, ele, uma professora do primário, um casal de funcionários públicos, uma em­pre­gada doméstica e um jornaleiro gordo e bonachão, que descia de Nerópolis: Daniel, a erva daninha.

Quase nunca dava certo de nos encontrar: éramos poucos e pouca a motivação. Suspeitei, por isso, que a urgência do seu caso foi mais interessante do que o pretexto original: pela primeira vez havia um acordo mútuo, entre nós. Com muito custo nos encontrávamos durante o ano e, agora, num único mês conseguimos articular duas reuniões em sequência: foram o terceiro e o segundo encontros. Se morresse um de nós a cada mês, em breve passaríamos de uma centena. Tentamos trazer outros elementos e a conversa estendeu-se até a uma importante entidade de trabalhadores rurais. Vislumbramos uma terceira reunião com um número dobrado de participantes. Só que não houve a terceira reunião, nem houve mais planos. As adesões não se confirmaram. Fracas­samos pela enésima vez, admiravelmente quixotescos.

Na noite seguinte retornei so­zi­nho à casa de Martiniano, a seu pedido, pois ele queria avaliar o quadro. Recolhemo-nos na área dos fundos, de parelha com a cozinha. A empregada trou­xe à mesa pães de queijo assados na hora e um saquinho de soja torrada. Martiniano a­briu uma Bohemia e tomamos juntos.

Bem baixinho, ouvi uma valsa de Strauss vindo de seu escritório (por alguma motivo eu me lembrei das músicas incidentais, nos filmes). Não era na verdade uma valsa de Strauss, mas eu não sabia que música era aquela e acreditei que ele poderia gostar de Strauss. Tinha seus refinamentos burgueses, apesar da filiação comunista. Sua casa era enorme e ele possuía um Fritz Dobbert, jazendo solenemente num dos cômodos espaçosos. Uma litografia de Siron, quadros de Antônio Poteiro e de outros artistas de renome enfeitavam as paredes da sala de visitas.

Martiniano vivia bem, da forma que se merece, e eu não poderia censurar aquele amigo dos pobres por ter conquistado alguma dignidade. Na estante destacavam-se, ao primeiro golpe de vista, as grossas lombadas vermelhas das biografias de Che, Stálin e Mao, vidas pelas quais nunca me interessei. Enquanto degustávamos os aperitivos, olhei para ele e sugeri:
“Vamos esquecer a formação do grupo. Já há muitos partidos no partido, não acha?”

Preparei-me para ser duramente altercado, pois ele envolvera-se na causa a ponto de ainda mandar tomar no cu, como fazia todas as vezes em que se sentia contrariado. Era bom sinal que me mandasse tomar no cu, coisa que eu não tinha coragem de mandá-lo fazer. Era bem mais velho do que eu e, apesar de ser liberal e curtidor, uma espécie de respeito se me impunha e eu não conseguia tratá-lo com tanta intimidade.

Apesar da doença Martiniano teimava em viver com certa normalidade seus últimos dias, e por isso portava-se como um imaculado. Tentando enganar-se, acho, ele agia como se tudo estivesse sob controle, embora porcaria nenhuma estivesse mais sobre controle. Ainda me ligava com a frequência habitual, passava e-mails, jogava paciência em seu computador, bebia cerveja e interessava-se pelos destinos do grêmio. E continuava fumando um cigarro atrás do outro, mais ansioso do que nunca. Eram expressões de seu interesse pela vida. Como repreendê-lo pela anestésica carteira diária de Carlton?

Se tinha medo, não é o que desejava transparecer, irônico ainda, risonho ainda. Um lapso e a certeza: vai se recuperar, por que não? Com tal interesse pela vida, eu poderia jurar que daria a volta por cima e faríamos muitas outras reuniões — quem sabe ainda viraríamos o mundo de pernas pro ar, como ele sonhava! Erámos sete personagens típicos, que lembravam o germe das revoluções inacabadas. Que me lembravam “A Jangada”, de Gericault… De qualquer modo achei sinceramente que seria possível: a vida não é um amontoado de absurdos? Tudo pode mesmo acontecer, se você acredita, se você se empenha.

Para minha surpresa, ante a ideia de abortar nossos movimentos, Martiniano apenas olhou para mim e deu um sorriso de aceitação. Isso não fazia parte do script.

Tive a impressão de que o sorriso dele flutuara fora do tem­po. Pensamentos terríveis minavam a atenção de Martinia­no, enquanto ele sorvia a cerveja e tragava um cigarro, que o tragava. A intervalos tossia e pigarreava, massageando a garganta enfermiça. O pijama de seda deixava seu aspecto ainda mais lívido e convalescente: quase morto. Não respondeu nada durante alguns minutos, sentado, quieto. Limitou-se a contemplar o que já não cabia em pensamentos. Dado instante, fe­cha­ra os olhos e roçara a testa, a­fo­gando-se para dentro de si. Eu es­tava vendo derreter uma estátuas de cera, como aquelas dos mu­seus. Novo trago. Olhei de novo; novo e discreto sorriso, eloquente de doer (um amigo por perto pode servir de boia no pânico, eu recordaria nas próximas horas).

Deixar tudo de lado já não soava uma perda tão importante assim. Dali a pouco eu me despedi com a trivialidade de sempre, sem saber, ignorante, que nunca mais apertaria a sua mão. O último contato e a última palavra entre amigos podem ser de uma banalidade impressionante. Assim aconteceu entre eu e ele.

Na segunda-feira, 31, ao chegar ao trabalho, meu diretor me surpreende ao dizer que Martiniano “morreu”. Incrédulo, fui ao jornal do dia, olhei e lá estava ele, Martiniano, estampado sob a nota ruim e inequívoca, despertando-me para a realidade, mais irreal do que o sonho. Era mesmo ele: o homem de chapéu de feltro e barba destruída pela quimioterapia — um líder perdido para a doença. Mas, alegre, continuava sorrindo para nós, como se fosse imune. A alegria que é a maior recusa, o maior protesto. Vá lá o corpo — mas o que são feitos dos sentimentos de uma pessoa, quando ela morre? Caberá mesmo numa cova o coração de um homem?

Leio o conteúdo inacreditável, conheço sua agonia e descubro que tinha sido sepultado no dia anterior. Enquanto morria eu traçava planos de futuro, sem nunca imaginar como foi duro o seu final de semana. Hemorragia, parada cardíaca e óbito.

Conhecia Martiniano há três anos. Apesar da diferença de idade que nos separava, quis de mim um amigo, desses de sair para o boteco. Fiquei devendo a ele uma rodada, que para sempre teceu um vínculo de afeto entre nós. Nunca lhe perguntei se acreditava na vida após a morte (não sofria a doença da gravidade, como eu). Se ela existe, saberá agora que não resisti de fazer esse conto, com feitio de crônica, em sua homenagem. As palavras me atormentaram e tive de me livrar delas, para sobreviver sem omissão. Na­quela mesma segunda-feira, à noite, eu conferi no celular as chamadas recebidas e lá estava, pela última vez, o seu nome: “Martiniano 28/08/09 15:22”.

Fiquei olhando seu nome, o dia e a hora cravada. Deti-me por um momento, perplexo com esses dados, aparentemente insignificantes. Eu estava agora diante do último criptograma, diante já do mistério insondável e surpreendente que nos assusta feito crianças.

J.C. Guimarães é escritor e crítico literário.