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Conto original de Italo Wolff, no espírito do movimento da renassença do gênero gótico

Conto de Rafaela Ferreira

Acordar às 04 horas da manhã e pegar o primeiro ônibus do dia. Lotado, já de início. Um caminho árduo até chegar na universidade. O relógio marca 08h. Já começou a aula. Ainda na metade do caminho, Maria Luz só consegue chegar depois de 30 minutos. “Poxa, Maria, atrasada de novo? Na próxima não vou te deixar entrar na sala”, diz o professor de histologia. O dia começa assim. Na verdade, todos os dias começam assim.
Sair da periferia rumo a universidade não é um trajeto fácil na vida de Maria Luz Gonçalves. Outro dia, a garota relembrou como, nas primeiras semanas de aula, um colega se espantou ao ouvi-la falar que mora no Papillon Park: “Mas não é em outra cidade esse bairro?! Nossa, se eu morasse tão longe assim, nem nessa faculdade eu tava…”. Mas o que ela poderia fazer se a federal é a única forma dela se graduar? E ela não iria dar o desgosto de abandonar o curso de biologia. Não para sua mãe, que foi a primeira da família a ter um curso superior. Não. Ela ia continuar esse legado.
Na volta para casa, Maria resolveu ir na farmácia comprar um remédio para uma cólica que estava sentindo desde manhã, quando pegou aquele ônibus maldito. Maldito. Maldito homem que não desencostava dela e quando o confrontou recebeu logo um: “Qual é, morena! O ônibus tá lotado, tô passando a mão em você não. Tá doida?”. Sim, doida. Doida de achar que alguém ia pelo menos trocar de lugar com ela. Porém, tudo que recebeu foi olhares tortos de gente já cansada demais um dia de serviço, antes mesmo dele começar.
Outro erro: entrar na farmácia. Maria Luz escolheu parar em uma dessas farmácias grandes e de rede que ficam no centro da cidade. Que erro. “Por que eu não fui na banquinha do Sr. Pedro?!”, pensou. Nada muito grave lhe aconteceu, dessa vez. Porém, os olhares de dúvidas e questionamentos, sobre se ela realmente poderia pagar por aquela simples pílula, eram enormes. De fato, ela não podia. “25 reais em um ibuprofeno? Rico paga por cada coisa! Eu realmente deveria ter ido na banquinha…”
O pensamento é interrompido quando ela vê a condução rumo ao Terminal Cruzeiro passar bem na sua frente, e então, a jovem começa a correr. Ufa! Conseguiu entrar. “Olha! Tem um banco vago!”, pensou. Sentada na janela - e no banco alto, seu favorito - Maria Luz pega seu fone de ouvido e inicia um vídeo que seu amigo (quase namorado) Raul acabou de enviar, juntamente da mensagem: “Minha preta, cuidado na volta pra casa, hein!”.
“Quatro viaturas da Rotam acabam de adentrar as ruas do Bairro da Conceição em uma busca e apreensão depois de uma denúncia de tráfico na região", começou a jornalista. “Merda!”, pensou a jovem, “Mais um dia da visita dos porcos…”. Já em seu destino final, a jovem se questiona se já deve ir para a casa ou esperar dentro do mercadinho que tem ao lado de seu ponto de ônibus, já que a notícia havia lhe assustado. “Não vi nada no caminho para cá e a rua parece normal”, pensou.
Em um onda súbita de saudades, Maluz resolve ir visitar a avó, a mesma que a apelidou dessa forma. Descendo as ruas da selva de pedra, a jovem respira bem fundo o ar da tarde quente da terça-feira, porém, é surpreendida com um som de pneus sendo gastos nos asfalto.
De repente, duas viaturas passam zumbindo ao seu lado. “Ah, aí estão eles”, pensou. Quando Maria Luz fez para dar mais um passo, mais dois carros apareceram, mas nessa leva, um gol preto se encontrava no meio dos camburões. Ela então percebeu que era o tal traficante que anunciaram no vídeo. “Ah, não”, pensou enquanto procurava um lugar para se esconder. Ao terminar seu pensamento, barulhos começaram a ressoar. “Ah, não!”, pensou mais uma vez.
A troca de tiros aconteceu às 16h30. Levou 10 minutos até que os vizinhos vissem seu corpo. 20 até sua avó sair no portão, já que estava com medo do barulho dos carros. 30 até sua mãe ficar sabendo. 45 até Raul mandar “E aí, chegou bem?”. 50 até que os jornais chegassem no local. Nos jornais, menos de três parágrafos de notícias, que se lia: “Jovem morreu após a troca de tiros depois de uma invasão policial”. Porém, uma vida inteira para superar que mais uma jovem negra morreu de forma brutal nas periferias do Brasil. Mais uma. Somos números.

Conto escrito em curso de Imersão em Jornalismo Literário: Escrita Criativa e Narrativas Transformadoras; inspirado na música “Contato Imediato”, de Arnaldo Antunes

A cheia de dezembro de 1948 assustou a população de Corumbá de Goiás na aproximação do Natal

Conheça a história de José Aparecido B. Silva, uma espécie de Leopold Bloom dos tristes trópicos

“Será que alguém, além de mim, me tinha visto entrar naquele banco? Preocupado, quis atravessar a avenida. Precisava me ajudar”

"Não gosto das minhas mãos. Tenho certeza que, se não as vigiasse constantemente, elas me matariam"

"O que faria Casanova, aquele amantão que, dizem, além de comer todo mundo, comeu até a Ponte dos Suspiros de Veneza?" Leia o conto de Cunha de Leiradella

[caption id="attachment_128841" align="alignright" width="620"] Divulgação[/caption]
“Reparação”, romance de Ian McEwan, fica em pé, em igualdade de condições, ao lado de qualquer outro grande livro de autor britânico dos séculos 20 e 21 (ou de qualquer outro). Parece uma obra de Henry James, mas cética e sem concessões aos leitores e, também, às personagens. O autor de 70 anos escreveu outras ficções de alta qualidade. Sua média literária é superior a de outro notável escritor, Martin Amis, e deve ser equiparado a Julian Barnes.
A Companhia das Letras lança mais uma obra de McEwan, “Meu Livro Violeta” (128 páginas), com tradução de Jorio Dauster — excelente tradutor do inglês (Salinger, Philip Roth e Vladimir Nabokov, para citar três autores).
Sinopse da editora: “Dois textos inéditos de um dos maiores ficcionistas da atualidade, reunidos no marco da celebração de seus 70 anos”.
“‘Meu livro violeta’ é uma pequena joia da narrativa curta sobre o crime perfeito. Mestre do suspense e do enredo, Ian McEwan descreve uma traição literária meticulosamente forjada e executada sem escrúpulos. Publicado em janeiro de 2018 na prestigiosa revista ‘New Yorker’, o conto revisita um tema caro ao autor e tratado em livros como ‘Amsterdam’: as ambivalências das relações de amizade entre dois artistas, com doses desmedidas de admiração e inveja.”
“Ao conto que dá título ao livro se segue o libreto ‘Por você’, escrito para a ópera de Michael Berkeley. Profundo conhecedor de música, McEwan apresenta uma cativante história de amor e traição envolvendo quatro personagens: o regente e compositor Charles Frieth, sua esposa, uma admiradora, e o médico da família. Em sua primeira incursão no universo da ópera, McEwan mostra que seu talento como criador de histórias segue sendo insuperável.”

[caption id="attachment_69461" align="alignnone" width="620"] Foto: Divulgação[/caption]
Roberto Mello
Especial para o Jornal Opção
— Richard, Gere, o nome dele é Richard, como o teu, Gere. Ele também gosta dos japoneses, do Japão, contanto que fiquem lá, bem longe, porque acha que, no fundo, são racistas, não foi à toa que se associaram com os nazistas, e o medo que ele diz ter sentido quando viu, pelo cinema americano, a crueldade deles, se eles tivessem vencido a guerra, babau pros negros, ciganos, pardos e mulatos e comunistas e brancos e tudo o mais que não fosse pureza racial. Gere, o Richard entrou numas que podia te incorporar meio assim pela umbanda ou coisa parecida, e aí deu pra puxar os olhinhos, os seus olhinhos infantis como os olhos de um bandido — já dizendo a canção. Aí, o cara me diz que baixou o santo e que ficou incorporado, se bem que pra ele seria mais é encorpado porque suas mãos avultaram e ele de repente sentiu que elas andavam sozinhas nas curvas deliciosas de sua mulher que, pelo jeito, não desconfiava de nada, sem saber que estava trepando com um bandido chegado a mistificações quânticas. É, é isso mesmo, o cara é perfeccionista e gosta de ir fundo nas coisas. Não vê que ele procurou um professor de física daqueles que dizem que São Paulo, a cidade, é mera ilusão, que não existe, e aí perguntou pro teacher se era possível aquilo, transar com sua mulher como se fosse tu, Gere, e não só na ilusão do pensamento, mas na batatolina das coisas naquele entremeio de corpúsculo-onda, mais pra um, mais pra outra, a ponto do Chico Xavier dizer “com esses aí eu não me meto”, nem sei se isso é verdade, foi o que ele, Richard, me contou, depois que foi consultar o médium pra saber se sua mãe estava passando bem lá no além. Que, segundo ele, Richard, e o tal professor, também não existe mais, pelo menos daquele jeito que aprendemos no espiritismo ou no catolicismo, já que a essa altura do campeonato tudo dá no mesmo, que o além é bem aqui, do meu lado, no paralelo, que nem alelo da lua. Bom, mistifiquei, porque eu também não ia perder a chance; tem certeza que tua mulher não percebeu nada, perguntei, e aluí, no sentido goiano, que nem Bernardo Élis no seu Veranico de janeiro, abonado por Aurélio disse: “Falou, papudo — pensou o rezador sem aluir do lugar”, e eu não era nem rezador nem nada, se bem que pensando melhor a reza não é um teletransporte? mas eu só queria usar o verbo aluir que sempre me coçou o quengo, no sentido de arruinar a dialética do Richard, só que esse verbo é danado e quer dizer também sem se mexer, sem sair do lugar, e era como eu me sentia, teletransportado-fixo ali, ouvindo àquelas patranhas da cabeça de um infeliz pobre diabo que, pra fazer algum carinho na mulher, precisa de ti, Gere, fantasminha inoculado em celuloide na cabeça de um vagau jeca tatu cotia não. Mãos grandes e fortes de um gigolô bem prof cobrindo em toda a extensão “omnimodamente”, carteirou o desgraçado, a carne macia de sua mulher. Era um foder por procuração, Gere, mas quem sou eu para condenar o Richard, ou quem quer que seja depois da física quântica?
Roberto Mello é psicanalista

[caption id="attachment_66544" align="alignnone" width="620"] Reprodução/Tumblr[/caption]
Roberto Mello
Especial para o Jornal Opção
— Richard, Gere, o nome dele é Richard, como o teu, Gere. Ele também gosta dos japoneses, do Japão, contanto que fiquem lá, bem longe, porque acha que, no fundo, são racistas, não foi à toa que se associaram com os nazistas, e o medo que ele diz ter sentido quando viu, pelo cinema americano, a crueldade deles, se eles tivessem vencido a guerra, babau pros negros, ciganos, pardos e mulatos e comunistas e brancos e tudo o mais que não fosse pureza racial. Gere, o Richard entrou numas que podia te incorporar meio assim pela umbanda ou coisa parecida, e aí deu pra puxar os olhinhos, os seus olhinhos infantis como os olhos de um bandido, já dizendo a canção. Aí, o cara me diz que baixou o santo e que ficou incorporado; se bem que pra ele seria mais é encorpado porque suas mãos avultaram e ele, de repente, sentiu que elas andavam sozinhas nas curvas deliciosas de sua mulher que, pelo jeito, não desconfiava de nada, sem saber que estava trepando com um bandido chegado a mistificações quânticas. É, é isso mesmo, o cara é perfeccionista e gosta de ir fundo nas coisas. Não vê que ele procurou um professor de física daqueles que dizem que São Paulo, a cidade, é mera ilusão, que não existe, e aí perguntou pro teacher se era possível aquilo, transar com sua mulher como se fosse tu, Gere, e não só na ilusão do pensamento, mas na batatolina das coisas naquele entremeio de corpúsculo-onda, mais pra um, mais pra outra, a ponto do Chico Xavier dizer “com esses aí eu não me meto”, nem sei se isso é verdade, foi o que ele, Richard, me contou, depois que foi consultar o médium pra saber se sua mãe estava passando bem, lá no além. Que, segundo ele, Richard, e o tal professor, também não existe mais, pelo menos daquele jeito que aprendemos no espiritismo ou no catolicismo, já que a essa altura do campeonato tudo dá no mesmo, que o além é bem aqui, do meu lado, no paralelo, que nem alelo da lua. Bom, mistifiquei, porque eu também não ia perder a chance; tem certeza que tua mulher não percebeu nada, perguntei, e aluí, no sentido goiano, que nem Bernardo Élis, no seu “Veranico de janeiro”, abonado por Aurélio, disse: “Falou, papudo — pensou o rezador sem aluir do lugar” e eu não era nem rezador nem nada; se bem que pensando melhor a reza não é um teletransporte? Mas, eu só queria usar o verbo aluir que sempre me coçou o quengo, no sentido de arruinar a dialética do Richard, só que esse verbo é danado e quer dizer também sem se mexer, sem sair do lugar, e era como eu me sentia, teletransportado-fixo ali ouvindo aquelas patranhas da cabeça de um infeliz pobre diabo que pra fazer algum carinho na mulher precisa de ti, Gere, fantasminha inoculado em celuloide na cabeça de um vagau jeca tatu cotia não. Mãos grandes e fortes de um gigolô bem prof cobrindo em toda a extensão “omnimodamente”, carteirou o desgraçado, a carne macia de sua mulher. Era um foder por procuração, Gere, mas quem sou eu para condenar o Richard, ou quem quer que seja depois da física quântica?

[caption id="attachment_63750" align="alignnone" width="620"] Reprodução[/caption]
Loisse Rodrigues
Especial Jornal Opção
Sentou-se sobre as pernas dobradas no que restou da mesa, os olhos fixos na janela da cozinha e o cheiro de terra úmida nas narinas.
A chuva assustou o telhado, sacodiu a estrutura da casa, tentou forçar as janelas. Invadiu quartos, banheiro e sala. Tomou a cozinha e queria engolir todo o resto. Alguns móveis despontavam sob a água em busca de um último fôlego, inertes em sua essência.
Ela também estava submersa em desesperança. Assistiu em silêncio o ápice da tormenta, não se moveu, não esperou socorro. Apenas ficou.
O marido foi aos filhos no campinho de várzea. Campeonato do bairro sob o clima da véspera do brasileirão. Garotos inquietos, chinelas nas mãos, poeira no rosto. A chuva os seguiu até o jogo, borrasca. Em minutos, se enfureceu. Cismado, o pai foi buscá-los há seis dias. Não retornou mais.
Pela janela, viu a terra descer o morro, abundante, e levar muros, paredes, portões, mulheres, homens, cachorros, camas, geladeiras. Assistiu à lama devorar árvores, carros, pontos de ônibus, cadeiras, idosos. Gente fazer armário de bote, se agarrando aos fios de energia, esmurrando o vidro do carro enquanto a água violentava cada fresta e bebia o motor, o painel, as chaves, o câmbio e o volante.
A porta da cozinha rompeu com o estouro da enchente e entrou na casa. Quase não teve reação quando o dilúvio assenhorou da sua cama de casal, arrebentou a pia velha do banheiro e encharcou as roupas secas e limpas no cesto da área de serviço. Apenas fechou os olhos quando sentiu os pés descalços imersos em lama e água, depois os joelhos e a cintura.
Subiu no rack da televisão quase coberto, içou-se para a cunheira da casa e aterrissou sobre a mesa da cozinha. Ali, ficou durante todo o tempo. Ilhada, imunda, faminta, amedrontada.
O som dos barrancos descendo morro abaixo foi, aos poucos, substituído pelo canto melancólico das cigarras, gritos isolados e latidos dos cães. Caiu em si, o marido não voltaria e nem os filhos. Sentiu o soluço nervoso apertando a garganta, forçando a saída como a enchente forçara os limites da sua vida. O berro oculto ecoou do fundo do seu desespero, ardendo a alma por tudo que se fora.
A resposta do mundo era um silêncio doído, pois agora cada um por si e Deus que ouvisse os lamentos de todos. As portas da dor foram escancaradas e tomadas de água, mesmo que não lhe saísse uma lágrima sequer para desafogar.
A mente voltou sozinha até a manhã anterior quando a vizinha bateu à porta, com cara de espanto. Vinha falar da previsão meteorológica dos próximos dias.
“Vou pra casa da tia do meu marido”, contou ela, passando a mão no batente e espetando o dedo em uma farpa. Torceu o nariz. “O prefeito prometeu uns lotes lá do outro lado da cidade, mas até hoje. Já não espero mais nada”. Ela apontou com o queixo para o morro. “Aquilo ali ainda vai enterrar todo mundo. Quando a terra descer vai chegar até aqui”.
Não duvidava da vizinha. Sabia dos riscos. Só não tinha para onde ir. A família do marido era do norte e não os tinham em alta conta. Perdera contato com a dela, no Mato Grosso. A mãe morrera há mais de trinta anos, desaparecida em um rio do interior em dia de chuva, enquanto lavava as roupas dos filhos menores. Os irmãos se mudaram da antiga casa e não deixaram rastro. Aonde iria?
Teve um lapso de saudade das coisas pequenas. Do cheiro do café que o marido fazia antes de vender salgados no terminal, da rachadura no quarto dos meninos que parecia um tronco de árvore retorcido e sempre tinha uma trilha paralela de formigas, do dia que o cachorro da Dona Suzana invadira o quintal com um rato na boca e fugiu quando ela jogou um balde d'água nele. Eram bobagens cotidianas que pareciam muito distantes agora. Tão distantes quanto a sua fé.
O marido já perguntara se poderiam ir à igreja metodista no quarteirão de baixo, na rua da feira. Ela disse que pensava, mas não via alento nestas coisas. Não enxergava divindade ali dentro. Estendia a roupa no varal quando encontrou um passarinho morto no cesto. Foi a sua blasfêmia que matara a criaturinha? Castigo? Não sabia. Duvidava que Deus existindo teria essas mesquinharias típicas dos homens.
Memórias tão distantes estas que não pareciam reais. Tudo girando confusamente dentro da sua cabeça dolorida, a fome deixando-a zonza e aérea. Trechos entrecortados de lembranças difusas, ora tão próximas, ora tão afastadas que pareciam ter um milhão de anos.
O corpo clamou que se deitasse. Ela torceu as mãos sujas de barro. Nunca cedera aos cansaços da vida, ao trabalho da casa, ao estudo na escola pública. Tinha gosto pela leitura, não se intimidava com letras, nem com números. Era sim letrada, mas as oportunidades tinham as costas viradas para ela e sua família. Viviam no aperto das contas, encurralados por cobradores cínicos e barreiras hostis.
Abraçou as pernas frias, o rosto curvado sobre os joelhos. Fome, sede. Que inferno era este que a tornaria mais um número nas estatísticas? Que faria algum figurão político sobrevoar sua casa com olhos distantes e nem se dar conta de que ali havia uma história particular?
Lembrava bem o discurso das casas do outro lado da cidade. Na época das chuvas do ano passado. Incidente menor, mas com estragos. Uma senhora perdeu a casa e o marido com a queda de parte do morro. Veio a rede de televisão. O repórter gritava e acenava que o prefeito não fez caso dos alarmes da Defesa Civil. Cobrou respostas. Cobrou visitas. Cobrou atitude. Aplausos, gritos, assobios. Próximo candidato podia sair dali, com microfone, terno e votos.
O prefeito veio. Engomado, capacete de engenheiro na cabeça, seguido de um bando de carneirinhos frouxos, assessores e secretários de camisas riscadas suarentas. Aquelas caras de entendidos, cumprimentando a todos com polidez e reverência ensaiada.
A mulher que perdeu o marido, os olhos inchados, cabelos desgrenhados, no centro da multidão. O prefeito passou por todos, segurou o rosto da desgraçada e beijou a testa. “Vou fazer o impossível para lhe dar uma vida digna. Uma vida que todo cidadão desta cidade merece”. O povo aplaudiu. Mas como não? O prefeito saiu de casa limpo e coração aberto, se enterrou na lama até os joelhos, beijou a viúva simples e sofrida. Tem direito à cadeira. Reeleição, meus amigos. Não há dúvida. Do contrário, só quem ele apontar o dedo. Que homem, meu Deus, que homem.
Meses depois, a comunidade ajuntava roupas e comida para a mulher beijada pelo prefeito. Largada sem teto, sem marido, sem futuro. Nos bolsos, as promessas da vida digna que nunca vieram. A televisão não voltou, nem o prefeito. Às minguas, ela morou com vários vizinhos. Morreu. Desgostosa de tudo.
Sem marido, sem filhos, sem casa estava ela agora. Maria do Rosário Bento Paiva. Com seus quarenta e dois anos. Aniversariando em seis dias. Nascida em Mato Grosso, filha de Alzira Rosário Bento e Nicanor Bento Ferreira. Negra. Setenta e três quilos. Ensino médio completo e bem feito. Mãe de dois rapazes sadios. Esposa de Antônio Paiva Neto. Doceira e salgadeira da redondeza. Tutano de coragem nas veias.
Agora só.
Nem se identificava mais. Só à escuta de um coaxar mudo dos sapos atraídos pela chuva raivosa. Até eles não deram presença naquele cenário devastado. Sem grilos, sem pássaros noturnos. Os cães se calaram, os gritos também. Silêncio de respeito às mortes em vida dos que acordariam no outro dia com água até os ouvidos e o mundo próprio afogado. Ainda nem pensara nos próprios mortos.
Antônio Paiva Neto. Um mestiço cheio de vida. Taciturno como uma coruja. Seu primeiro morto lembrado. Agonizava em uma alegria melancólica sentado no alpendre, remexendo uma caixa de eletrônico. “Que é isso, Tonho?” Ele sorriu, os dentes tortos e brancos. “Quero guardar as cores do mundo”. Era uma câmera compacta. Daquelas paraguaias, meio chinesas. Uma família de brancos sorridentes posava para a foto da embalagem, numa praia acalorada. Instruções em inglês, espanhol e mandarim. “Não quero foto na praia. Quero foto na serra. Muito verde”. Que fim é esse, Tonho? Não tem mais verde, só o marrom da terra.
Vendia doces e salgados no terminal. A calmaria de sempre, passadas suaves. Recém divorciado da aguardente. Era só café agora. Muito. “Dois discos de carne e um copinho de preto quente como brinde”. Abria o sorriso torto, tímido, as pessoas simpatizavam. O papo engajava. “Vai uma caninha mais tarde, Tonho? No bar do Lauro?”. Ele sorria, dava de ombros e se esquivava cortês. “Vou, assisto a festa, mas só bebo água morna, que é para não estragar a voz”. E entoava um trecho da Beth Carvalho, a melodia saltando para o grave quando não conseguia ir mais alto: “Já me fiz a guerra por não saber/ Que essa terra encerra o meu bem querer / E jamais termina o meu caminhar”. Terminou seu caminhar, Tonho. Debaixo da lama, sabe-se seu Deus onde.
Entre o frio e a fome a mente deu seus saltos. Chegou à figura do mais novo. Ernani Paiva Bento, adolescente embirrado nos seus treze anos. Queria ser alfaiate. “Onde já se viu?”, ria o Tonho, mas sem maldade. “Eu sei o que o alfaiate faz, pai. Quero fazer um terno pra mim igual ao do Messi”. Tinha os dentes tortos do pai, mas sem a mesma mansuetude. Agitado, briguento, tiradas fanfarronas. A mãe chamava à corrigenda, fazia de bronco. “Não aceito, já tenho mais de doze. Sou homem grande”. Jogava bola com sabedoria, teria prêmios de ouro no futuro, dizia o irmão.
O mais velho. Jair. Calmo, dócil, um abobalhado. “Todo mundo pisa nas fuças do Jairo, mãe”, fungava Ernani, cheio de rancores. O irmão sorria, passava a mão pelos cabelos de reggae, se limitava a responder entredentes: “Jah deseja paz ao mundo. Quem sou pra querer o contrário?”. A fase Bob Marley, o som dos três passarinhos pousados à porta, camisas em verde, vermelho e amarelo, filtro dos sonhos no teto, cheiro de erva queimada. “Não quero, não quero, Jairo”, berrava ela alterada. No meio da janta, todo mundo de olhos pregados no futebol, Maria do Rosário com os nervos estridentes. “Já aguentei muito da cana do seu pai. Não aceito filho maconhado”. Não, Jairo. Não o meu Jairo quase abortado no terceiro mês. A falta de grana, o pai pastor correndo com ela de casa aos dezessete anos, Tonho procurando emprego e cartório para oficializar o caos. A decisão de seguir em frente, o garoto nascendo e crescendo em meio aos tapas que levavam da vida. “Se ele continuar assim, se forma advogado”, disse a professora do primário, ar piagetiano, sorriso de ternura para o Jairo. Não, não aceito, Jairo. O único que poderia sair daqui com jeito, levando a família junto. Maria chamava aos dois de meninos, mas o Jairo já tinha seus vinte e cinco sob os ombros.
“Tá me devendo uma faculdade, garoto”, dizia a ele, enquanto ralava cenoura para o bolo. Jairo sorria. Os dentes eram retos iguais aos seus. Juiz nenhum diria não para aquele bagre. “Vou ver um lance no Sisu, minha preta. Prometo que até o meio do ano dou jeito nisso”. Repetia o mesmo engabelo a cada janeiro. Vivia dos bicos de técnico de som na igreja Metodista da rua da feira. Tinha a ousadia de tocar os hinos no ritmo do reggae. Fez de amigos os fiéis de lá, que o queriam de camisa de linho e barba feita. “Um dia, filhos de John Wesley, mas não hoje”, e era de uma educação tão apaziguadora que os irmãos oravam com paciência pela sua conversão.
Jairo, meu Jairo. Seu filtro dos sonhos oscilava preguiçosamente com o vento noturno. Devia ser madrugada. O corpo enrijecido pelas roupas molhadas, o cansaço dobrando-lhe a dureza. Sentiu-se pender, o tabuleiro de bolo vazio como travesseiro, lembrou-se da avó. Imagem distorcida, parecia rir-se dela. “Menina feia, dorme muito. Não sabe cozinhar, lavar. Não casa”. Sentiu o cheiro do cigarro de palha da velha, o estômago revirou com a memória.
A dona Lisandra, com seu azedume habitual, pairando sobre a água da cozinha. “Não dormi, vó, é só para aparar as costas”. O rosto macilento se abriu no que pareceu ser um sorriso. “Levanta essas ancas, menina feia. Vai passar um café para o seu pai”. A voz dentro da sua cabeça, dando ricochetes na massa cinzenta. “Não tem pó, velha diaba. Só lama. Quer café de lama”? Os olhos pesados, a cada piscadela um vislumbre da gengiva nua da avó. Não dormia. Eram as costas doloridas. A respiração apertou-se no peito, sentiu-se dormente, numa daquelas sensações de que o espírito vai se apartar do corpo para velejar nos sonhos. Lisandra baforava sem fumaça. “Cadê o café, menina feia que só dorme? Cadê”?
Perdeu-se no tempo. O café, a avó, as lembranças. Três dias para frente ou mais que isso. Deitada sobre a mesa áspera, ouviu o ronco. Motor potente, os pneus riscando na terra para não se prenderem. Parte do sonho dizia que eram os homens do exército resgatando o povo dos escombros. Ninguém morreu. Só precisavam de um banho demorado. As casas iam se levantando quando os soldados passavam. Glória, glória, gritavam os irmãos enlameados da igreja metodista. Todos com bíblias e frutas nas mãos, pois são da rua da feira. Olha o Tonho Paiva. Não bebe aguardente, mestiço danado. Hoje pode. Estamos vivos e temos casas. Lá vem o prefeito. Beija minha testa, seu rato imundo. Cadê as chaves do meu lote?
Despertou as poucos. A cara do prefeito dançando nos seus olhos. Ergueu o pescoço endurecido, viu pela janela uma camionete prata, plotada com algum símbolo comum. Já vira em algum lugar, mas a mente estava falha àquela hora.
Ouviu as vozes baixas, o som da caminhada pela água. Entraram pela porta da frente. O rapaz com um microfone na mão direita. Não era o futuro candidato? Viu outros, mas não identificou seus rostos. “Jorge, você tem uma visão de águia. Como viu a mulher pela janela?”. A voz aguda de uma moça perplexa. “É Deus, Joana. Quem mais poderia ser”? A voz do Jorge, engordurada por falsa humildade. Estava com o ego explodindo por ser o dono daquele achado.
Chegaram até ela. Sua cabeça caíra novamente sobre o tabuleiro. Que sono infernal.
“Consegue me ouvir, senhora? Ela não deve comer há dias”. As perguntas iam e voltavam no seus ouvidos. Moça, aproveita que está aí e faz um café. Olha aí, dona Lisandra. Estou realmente com muito sono.
Perdida nas horas, as ideias em branco. Alguém lhe chegou às costas, pediu que erguesse a cabeça, com os olhos para as paredes. O enquadramento tinha de enfatizar a desolação. “Esfregue terra nesta cara”, e a pessoa bateu os dois dedos na testa de Maria do Rosário. “Aqui, aqui. A imagem precisa convencer”. Passaram terra, umedeceram seu rosto, lhe deram dois beliscões gentis. Ela gemeu. “Não exagere. Para doer teria de ser assim”, e outro beliscão. Com força, irritação, uma ligeira vingança. Então de seus olhos brotaram água. Ou seria a água que lhe jogam na cara? Uma turma de assistentes passa as mãos pelas paredes checando a umidade. Analisam o tamanho das goteiras e derrubam os móveis que ainda estão de pé. O diretor bateu palmas, hora de gravar. Todos saíram da cena.
Jorge se aproxima com aquela pinta de emotivo, gente do povo, bota o microfone diante dela. O cinegrafista prendeu o fôlego, aquilo renderia uma tomada das melhores. Ela não ouviu as perguntas. Pareciam palavras desconectadas, saltando de um lado para o outro, sem sentido. Havia mais pessoas na sala do que antes.
O prefeito chegou com sua trupe de aprovadores, com expressão comovida, ares de pai. Pegou Maria do Rosário pelos ombros, grudou-lhe um beijo de dez votos na testa, se pôs ao seu lado e descarregou o discurso de entidade protetora dos indefesos. Mais promessas para serem esquecidas até o próximo mandato.
A luz da câmera apagou. A transmissão foi encerrada. Informaram a ela que o prefeito requisitara o seu resgate. Foram embora. À noite dormiria em algum ginásio entupido de almas e esquecido pelos condoídos das primeiras horas. Na lama do descaso e do fim, pegou-se pensando em passar um café para si e suas amarguras.

[caption id="attachment_63143" align="alignnone" width="620"] Reprodução/Tumblr[/caption]
Paulo Lima
Especial para o Jornal Opção
Como dizem os portugueses, visita é sempre uma coisa boa: ou quando chega, ou quando vai embora. A chegada daquele homem de terno impecável, sapato e maleta de couro preto lustroso, não cabia em nenhum dos casos.
Não havia um horário específico para realizar suas visitas rotineiras e obrigatórias, normalmente uma por mês ou bimestre, eventualmente uma a cada quinzena. Naquele dia ensolarado na cidade espanhola de Mérida, comunidade autônoma da Estremadura, ele bateu às quatro horas da tarde à porta de mais um cliente, que arregalou os olhos ao ver o estranho chegar com um sorriso simpático e sincero de quem traz uma boa notícia.
— Boa tarde. Permita que eu me apresente. Sou seu novo alfaiate!
Sua estranha rotina começara muitos anos antes, quando recebeu a incumbência de costurar um terno para um desconhecido. Sua primeira encomenda foi paga regiamente. A quantia, que lhe chegou adiantada em cédulas novas, zerou seis meses de dívidas acumuladas e ainda sobrou para o mês seguinte. “Dom Alejandro não deveria ser tão má pessoa assim.”, pensou.
Ficou demasiado surpreso quando soube do passamento repentino do favorecido, a quem chegou a se afeiçoar durante aquela semana, um dia após finalizar o que julgou ser sua melhor peça já produzida. E horrorizado ao saber que a morte fora deliberada pelo mesmo que a mandou fazer, cujas atividades criminosas eram sobejamente conhecidas na Espanha dos anos 1950.
Precisava interpelar Dom Alejandro sobre o ocorrido, mas teria que ser com jeito, pois não estava falando com qualquer um e tinha um filho para sustentar. Pediu audiência, receoso, mas foi atendido prontamente.
— Sei que o senhor é homem mui ocupado. Agradeço por me receber e me perdoe incomodá-lo com meu pedido de entrevista. É que tudo se sucedeu muito de repente e ainda estou confuso e assustado com os últimos acontecimentos...
— Entendo perfeitamente, Sr. Cortez. É um artista da costura que resolvi prestigiar, homem não plenamente acostumado ao grande mundo dos negócios.
Após breve pausa para uma baforada num charuto caro e cheiroso, seu interlocutor não demonstrava qualquer perturbação, o que o alfaiate julgou ser muito bom.
— Como sabe, não sou homem que gosta de dar explicações sobre o que faço ou deixe de fazer, mas lhe abrirei uma exceção. Serei direto e entenderá por quê.
Desta vez o costureiro permaneceu mudo, mais apavorado e ainda mais curioso do que nunca.
— Meus negócios são muito complexos e o senhor jamais entenderia como funcionam. Às vezes, tenho que tomar medidas extremas e não ouso hesitar. Isso certamente já devem ter-lhe contado. E é justamente aí que o senhor se encaixa.
A conversa começou a ganhar contornos mais temerosos.
— Desculpe. Receio não ter entendido...
— Quando alguém que decido não mais deva pertencer a este mundo, nem sempre sou movido por rancor ou vingança, como imagino que muitos pensam. Até porque existem outras maneiras de punir. Somente a necessidade absoluta me motiva, quando a medida é extrema. Em alguns casos, porém, procuro proceder de forma distinta, por respeito ao finado, à família e seu círculo de amigos. Para que entendam que o fiz porque era meu dever fazê-lo, e que o eleito teve de mim a maior consideração. Nesses casos, faço questão de que sejam velados e enterrados com impecável vestimenta. Se assim chegarão ao mundo de lá, não sei dizer. Mas me conforta patrocinar uma partida do mundo cá com toda a consideração que o momento inspira.
Sr. Cortez permanecia em silêncio. Seu comedimento se refletia até no piscar de olhos, lento e espaçado como sua respiração.
— Objetivamente, esta é a minha proposta: doravante, quero que seja meu alfaiate exclusivo. Atenderá a clientela que eu te mandar e nenhuma outra mais, por preço algum. Basta dizer sim e terá compromissos suficientes para se aposentar com abastança em poucos anos. Lembrando que o sigilo faz parte do contrato, que por isso mesmo é verbal. Tem a minha palavra e espero que ela lhe baste!
A forma direta com que Dom Alejandro lhe dirigiu a proposta o fez recostar-se na poltrona, como se seu corpo fosse jogado para trás por uma lufada repentina. Estava em visível estado de choque. Do outro lado da mesa, no entanto, seu colocutor permanecia impassível, com a atenção mais voltada para o isqueiro e o charuto. Tentando ganhar tempo, falou o que primeiro lhe veio à cabeça.
— Sinto-me honrado por haver apreciado meu trabalho, a ponto de me apresentar tão generosa oferta. Nem sei direito o que dizer...
— O sim é uma resposta — emendou o homem forte à sua frente.
— Mas, Dom Alejandro, essas pessoas...
— Não está em suas mãos! Terão o mesmo fim, passando ou não pelo seu corte primoroso. Cabe ao senhor dar o seu melhor para proporcionar-lhes um momento final de dignidade.
Não havia tempo a perder e os riscos eram muitos caso optasse por dizer não. Refletindo sobre aquelas palavras, o Sr. Cortez Javier Henrique aceitou o novo ofício, ciente de que seria o único alfaiate da província, talvez do país e do mundo, a ter um emprego tão incomum. Antes disso, Dom Alejandro aleijou qualquer tentativa de relutância por parte dele ao lhe prometer por cada trabalho um valor duas vezes maior do que havia pagado pelo primeiro serviço.
Aos poucos, o mestre-alfaiate buscou convencer-se de que, a despeito da estranheza da nova ocupação, havia nela certa honradez e alegria, além de grande responsabilidade. Procurava demonstrar isso a cada visita. Afinal, para o próximo da lista, mesmo diante do inevitável, pairava o atenuante de pertencer a um seleto grupo de pessoas que não seriam encontradas esquartejadas, com o corpo jogado em qualquer esquina e a boca cheia de formigas. Aos especiais era reservado um ritual diferenciado: uma única bala, no coração, em sinal de que havia sentimento no ato que culminaria no desfecho de sua existência.
Não era a rapidez que o diferenciava dos seus pares. Era a sensibilidade e o entendimento da profissão que abraçara desde pequeno por pura paixão. Muito além de transformar tecidos em roupas, aquele homem parecia entender a linguagem secreta do corpo humano, analisando-lhe os contornos e os movimentos, traduzindo seus desejos na forma num terno impecável, belo e único.
Focado, em não mais que uma semana dedicava todas as suas energias no que considerava sua prioridade absoluta. Tirava as medidas do cliente, riscando os moldes em seguida antes de cortar o tecido seguindo rigorosamente o traçado. Peças alinhavadas, bastava uma prova no corpo para efetuar ajustes e... Pronto! Concluía mais uma obra de arte, que reunia a personalidade do dono e o apurado senso estético do escultor.
Dom Alejandro tinha fama de afetuoso para com os seus amigos e principalmente a família. Talvez por isso mesmo era do tipo que odiava traição. Acompanhava de perto a vida dos que lhe rodeavam e gostava de recompensar a peso de ouro a lealdade. A mão ficava inversamente pesada diante da infidelidade. Acabou se afeiçoando ao seu costureiro exclusivo, como a um parente mais próximo que não lhe questionava as ordens e que, além de obedecê-lo, o fazia sem queixas, sempre com criações da mais alta qualidade. Ao tomar conhecimento de que o Sr. Cortez tinha um filho único já adolescente, procurou saber de que maneira poderia ajudá-lo.
Por motivos óbvios, era desejo do empregador que o jovem seguisse os passos do seu velho. Já este, por motivos mais óbvios ainda, lhe desejava outra coisa da vida. Nas poucas vezes que tiveram contato, desconversou, dizendo-lhe que também era seu maior desejo, mas o rapaz não levava o menor jeito para a coisa. Insistia em ser engenheiro e, portanto, achava melhor não frustrar os planos do garoto. Dom Alejandro silenciou e mudou de assunto.
A verdade, no entanto, era bem outra. Seu protegido desde cedo demonstrou não apenas interesse pelo ofício do pai, como um talento natural, além de raro. A convivência contribuiu para que nele se desenvolvesse o dom aliado à técnica apurada do genitor. Mas, diante das perspectivas de emprego no país e ciente da atemorizante possibilidade de herdar uma atividade singular como a dele, investiu seus ganhos na formação do futuro engenheiro. A contragosto, o pequeno Pablo obedecia ao pai, como lhe cumpria fazer.
Bem remunerado, pagou as melhores escolas até chegar a tão esperada data em que o mandaria para a universidade. Foi justamente naquele dia, às 10 da manhã, que cinco batidas breves na porta, acompanhada de um envelope sob a fresta, mais uma vez lhe trazia novo pedido. Era sempre um momento singular, pois temia que um nome conhecido e amigo lhe chegasse, pois que a ele cabia ser o anunciador informal e secreto de uma morte certa. Ao abrir a encomenda, empalideceu e perdeu a respiração. As letras, impressas em máquina datilográfica com tintas escuras e firmes sobre um papel alvíssimo, não deixavam margem para dúvidas:
Pablo Javier Henrique.
Calle Augusta, Barrio Córdoba.
12 horas.
Duas horas depois, seu filho chega mais alegre do que nunca. Apesar de não estar a caminho do curso dos sonhos, a mudança para a capital lhe abriria muitas oportunidades que uma cidade menor jamais ofereceria. Jovens gostam de desafios e ele era um deles. De tão animado, não percebeu a figura empalidecida e estacada na poltrona, olhar distante, com expressão moribunda. Nem parecia estar ali.
— Olá, meu pai! Que cara é essa? O trem só sai ao final da tarde. Deixe essa cara de tristeza pra depois! Vamos almoçar juntos pela última vez e não quero choro. Não era o que o senhor tanto queria?
Voltando a si, como quem retorna do mundo dos mortos, levantou-se subitamente do móvel de curvim marrom, numa reação quase mecânica.
— Claro, claro... Tem toda razão!
Não querendo encarar o próprio filho e a realidade por trás daqueles últimos momentos, foi para a mesa posta que ele nem viu que a empregada preparara. Enquanto o jovem soltava a língua, falando sem parar de planos e expectativas, ele ouvia em absoluto silêncio tentando não deixar transparecer o que se passava intimamente. Precisava manter a calma, a compostura. O que sempre fez, aliás. Com muito custo, terminou a refeição dizendo em voz baixa:
— Tudo vai dar certo, Pablito. Tudo vai dar certo...
Passados quinze dias, cinco a mais do que o tempo máximo que gastava para compor um novo traje, martelava-lhe o espírito a premência de dar a resposta de sempre: jogar um envelope por sobre a mureta de uma casa discreta a duas quadras da sua, sem nenhuma escrita por fora e, dentro, apenas uma amostra do tecido utilizado. No próprio invólucro lhe chegariam as notas de cem pesetas sempre novas como pagamento. Mas desta vez não o fizera. Optou por mandar o filho para Madri, mantendo o plano original.
Teria que ir se explicar pessoalmente ao seu empregador, o que não significava muita coisa. Poderia nem ser recebido. E, mesmo sendo, sua atitude seria interpretada como traição e ele bem sabia o significado prático dessa palavra. Com o passar dos dias, passou a temer pelo filho longe. Os braços de Dom Alejandro eram longos e poderiam alcançá-lo em qualquer lugar do país. Um pensamento que não o deixava dormir.
Naquela manhã, ignorando uma vez mais o desjejum, abatido e já delirante, começou a pensar em voz alta. “Tenho certeza de que ele está me testando... Só pode ser! Sim, claro, Deus fez o mesmo com Abraão, pedindo a vida de Isaque. Bom, entre Deus e Dom Alejandro existe uma diferença enorme, mas... Ambos têm poder para abusar, quer dizer, que Deus me perdoe, não quero dizer com isso que ela seja abusado, é que...”.
Seus delírios foram interrompidos por cinco toques estalados sobre a madeira na entrada da casa. Como num ritual, outro envelope é passado por baixo, com a discrição característica. Ele corre, se agacha, rasga de uma vez a borda lateral. Respira fundo. Retira o papel branco, onde se lê a sequencia de frases com a secura de sempre:
Carlos Suarez Ibaña.
Calle Rulfo di Aquino, Barrio Aguero.
17 horas.
Primeiro o nome, depois o endereço, por fim a hora da visita que haveria de fazer pontualmente, sem protelação. Não precisava perguntar qual data. Era sempre para o mesmo dia. Não havia necessidade de confirmação, porque era sabido que o dedicado ordenança não o exigiria.
Alívio! “Devia mesmo ser um teste!”, concluiu.
Nunca se dedicara tanto a uma peça como àquela. Da tomada das medidas ao corte, preparo e ultimação do conjunto, com esmero e rigor descarregou toda sua experiência nas pensas e bolsos, enquartando frentes, ilhargas e mangas. Caprichou nos acabamentos internos, acolchoando entretelas, lapelas e baixo de gola. Queria a perfeição, pois aquela poderia ser literalmente a última peça. Talvez para ambos: ele e o cliente. Como de costume, fazia tudo sozinho, inclusive o papel de passador. Quando finalizou, sentiu-se tremendamente feliz.
...
Passaram-se dois anos desde que recebera a última carta do filho, postada na agência dos correios da Universidade de Madri, bem próximo do tempo em que findaria o curso. Relia todos os dias, tamanha a saudade. Já não ansiava pelo diploma, mas por qualquer notícia do ser mais amado. Estaria ele bem? E, principalmente, vivo?
De todas as frases da longa carta, duas ficaram gravadas na memória: “Ainda farei com que tenha orgulho de mim”. Por quê? Ele já tinha tanto... Não precisava se preocupar com aquilo: seu filho agora já deveria ser um engenheiro! “Estou a caminho da realização de um antigo sonho, meu e seu.”. Que sonho seria? Por que nunca lhe contou? Um pai merece ouvir esse tipo de coisa, e os filhos têm o dever de compartilhar com quem os gerou o que vai no coração.
Lembrou-se então da mãe que Pablo não teve. Quando nasceu, ela ainda pode vê-lo pela última vez nos braços, antes de partir definitivamente. Não resistira ao parto. Ficou por sua conta fazer o papel de ambos e se culpava por não ter encontrado alguém com quem dividir a missão. Uma genitora teria sido importante na educação do seu Pablito, mas o ainda moçoilo Cortez Javier Henrique não conseguiu dividir seu amor com outra que não fosse sua preciosa Maria. Desde o momento da despedida, sonhava revê-la, onde quer que estivesse. O menino cresceu ouvindo isso.
Nova batida à porta. Estranho. “Carteiros não costumam chegar a essa hora.”, lembrou-se ele da única pessoa que lhe visitava, e ainda assim raramente, após a sesta.
Ao abrir, arregalou os olhos como quem vê um estranho. Seria ele mesmo? Claro que sim: era sua cópia fiel. Como o tempo passou! E ainda tinha o indisfarçável sorriso simpático e sincero de quem traz uma boa notícia, característico da família. Coração ansioso, gritou estendendo-lhe os braços:
— Filho! Meu filho!
De tão emocionado, o costureiro aposentado não percebeu que, com seu abraço forte, o já homem feito, deixara cair uma maleta de couro preto lustroso.
— Serei breve, meu pai. Permita que eu me apresente. Sou seu novo alfaiate!
Paulo Lima é redator publicitário desde 1988, caminhando para 26 anos de atividades ininterruptas. Contista por natureza, vocação ou sina, escreve desde mini contos a contos maiores. Nesse balaio, inclui algumas crônicas.

[caption id="attachment_53212" align="alignnone" width="620"] Reprodução[/caption]
Carol Rodrigues
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Naquele dia era tarde. Ainda mentia a idade no bar ainda o rg esculpido em xerox de um número recortado e colado com pinça. Ainda pedia pro pai deixa eu ir de ônibus eu juro que não falo com ninguém. Ainda matava alguma aula da escola ou do balé ou do inglês pra soprar uma bolha no dia. Mas ela sentia era tarde.
Pros pais ia dormir na Elisa Martinelli. Mas na mochila entre o pijama e o uniforme esbeiçava um vestido balonê. E o caminho foi dobrado e um taxi pro bailinho sem pais no prédio do André Castilho. Duas semanas atrás, quando ele abriu uma fresta no cabelo cuia abalizando com mousse uma franja Mcdonalds, ela passou do sutiã esportivo ao meia taça. Foi de ônibus ao shopping com a prima escolher. Um PP roxo com renda e pedrinhas de strass.
O bailinho sete às nove era já a música lenta. Eram meninos e meninas alinhados em times frontais. Mas a Patrícia de Paiva foi mais rápida e tinha combinado com o André Gutierrez, melhor amigo do André Castilho, que era com ele, o Castilho, que ela iria dançar a Patrícia. E a menina de peitos forjados no strass caiu com o Zé Geraldo muito magro muito alto de aparelho há tanto tempo e os dentes, malcriados, não queriam se juntar. No fim do Bon Jovi entrou Shakira alô alô graças a deus cada um por si as meninas tremendo os quadris. Os meninos mordendo os beiços. Tem cerveja ali apontou o dedo magro e curvado tão longo o Zé Geraldo. Uma lata aberta e na roda alguém acendeu um Goudang. O cheiro de cravo e canela amolecia os corpinhos pendidos pra cá e pra lá metrônomo lento. Um trago tentado a língua no lábio docinho vontade de beijar, alguém disse. Salada mista, mas já. Sim, agora, meus pais voltam as nove, alertou o André Castilho que tragava a fumaça retinha pra frente furando as nuvens que saíam das outras bocas.
Sucederam peras e uvas até que alguém pediu maçã e outro alguém trocou o CD. A trilha do Matrix combinava mais. Até que a salada veio e foi pra quem, foi pra menina, e foi de quem, foi dele o André Castilho. A franja incólume abrindo o rosto pra vida e chegando no dela meio fechado, ainda, pela franjinha reta que arrependeu de cortar. Mas foi a língua buscando língua e o dente sem saber como agir e o beiço variando os trabalhos entre a horizontal e a vertical. A diagonal também. E alguém trocou o CD pra dança da cordinha, e a Patrícia já tirava seu cinto caramelo e segurava uma ponta (a Júlia Pereira esticava o braço pela outra). As franjas inverteram papéis e as mãos limparam excessos. E foram inteiros passar pela cordinha.
E depois que passou o negão e a lourinha a Patrícia de Paiva comandou o som e a dança cada vez mais aeróbica os meninos suando as meninas segurando o cabelo no alto dando muito trabalho ao braço livre. Até que um pai chegou, logo a mãe, o porteiro reclamou, passou das nove, a luz foi acesa e uma carona pra casa da Elisa. O balonê redobrado o pijama colocado e o blush removido com sabão.
A Elisa perguntou foi de língua foi bom ele passou a mão ele disse que gosta de você. E a menina dobrando o sutiã roxo na mochila respondeu que isso eu nunca vou saber. E deitou na caminha da Elisa com a Elisa e a Elisa apagou a luz. E debaixo do lençol vamos brincar. Acho que hoje não. E a Elisa queria brincar se não você não dorme mais aqui. E cada uma abaixou a calça de flanela até a metade da coxa e a calcinha também e cada uma descansou a mão gelada na coisa quente da outra. E roçaram e apertaram e dormiram assim, a calça arriada.
Dia seguinte na escola a Marília Bitencourt veio contar o André Castilho e a Pati Paiva namorando olha lá. E apontou a unha roída ao centro da quadra e atrapalhando um começo de partida uma menina muito alta se curvava pra beijar o menino de franja em arco.
E como não podia trocar o CD do silêncio pra mistura do Brasil com o Egito a menina sem peitos correu ao banheiro sem correr. E sentada entre a porta e a privada decidiu querer a morte dos altos. E dos ricos. E dos atletas.
Tirou da mochila a canetinha. Riscou na porta um P de Pati ou de Puta e passou a quina da mão borrando, não era isso. Riscou um A de André de Avestruz e também não era isso. Riscou por fim aproveitando o P e o A borrados um PAu no Cu do Capitalismo e podia ser.
Em casa o sutiã as pedras tão bestas de strass. Uma por uma ao ralo e a renda arrancada queimada no balde metálico. O vestido balonê o mesmo fim. Não tendo mais o que culpar e o que fazer abriu um livro.
O conto "Os dentes não sabiam como agir" integra o livro de estreia da escritora carioca Carol Rodrigues, "Sem Vista para O Mar", vencedor do Jabuti 2015, na categoria Contos e Crônicas.

[caption id="attachment_49234" align="alignnone" width="620"] Filme "De Volta para o Futuro" | Reprodução[/caption]
Adalberto de Queiroz
Especial para o Jornal Opção
Um dia, quando todos tivermos voltado ao pó, alguém há de contar a história desta primeira quinzena do século XXI. Em um arquivo digital qualquer encontrarás, jovem do futuro, o nome de um poeta. Sim, aqueles degredados da República de Platão, ainda sobrevivíamos; e só o fazíamos por teimosia, na primeira parte do século. E com que dificuldade sobreviviam os bardos... espécie em extinção.
Abaixo do Equador, contar-te-á o palimpsesto digital, sim, havia poetas e, no Brasil Central, havia-os às dezenas, centenas por metro quadrado. Nem por isso, o mundo era mais humano – como sonhavam as vãs utopias. Talvez, jovem do futuro, vivas numa distopia, sujeito às leituras dirigidas dos comandantes da tua época. Não sei. Talvez, não sejas capaz de dar um passo sem que te sigam, via de controles plantados em teu corpo ou em tua mente como os cães começavam a viver em nosso tempo.
Um dia talvez alguém consiga lembrar-se de cor de um poema antigo e te dizer – pois que os poemas não têm mais lugar no mundo extraordinariamente maravilhoso do maravilhoso futuro que te veste...
“CHEIO DE VIDA agora, compacto, visível,/Eu, 40 anos de idade quando a América completa 83!/A Ti, de um século adiante ou de muitos séculos depois de agora/A Ti, não nascido agora, Procuro-Te!”
Queria poder ter assinado essa mensagem em uma garrafa cibernética para Ti, jovem do futuro incerto, não a tendo escrito, eu a reescrevo, tirado à pena do poeta norte-americano Walt Whitman.
É que talvez o planeta, cansado, tenha se esvaído. É que sem forças, meus ossos não serão o do “Santo de Lumbres” que intactos se mostram a nós neste século XXI, pois que a terra não comeu o corpo do confessor humilde como não come a alma dos que se rendem ao Sagrado...
Eis-me, pois, jovem do futuro incerto, vendo-nos hoje em uma situação de degradação moral, numa civilização que já foi considerada como aposta – “país do futuro” – tendo decaído sem subir aos píncaros da glória civilizacional. Eis-me em meio a maior savana do planeta vendo-a ser destruída pelo fogo irresponsável de 500 anos atrás... Ainda existem árvores por aí, mancebo?
Enxergo desde a janela um céu azul de agosto, vejo o vento brincar com a folhada das árvores – dois enormes tumburis, com suas orelhas-de-macaco caindo para garantir sobrevivência. É quando tento ver o teu rosto: humano, cheio de esperança e de vigor.
Toma posse de tua alma, jovem, viva a poesia e saiba que um bando de sonhadores num país nomeado à sombra de uma árvore (o pau-Brasil) lutou para que não se dissipasse o desejo e o pecado dos filhos de Eva não deteriorasse a única e a mais sublime das ideias sublimes – o Saber só tem sentido se pensado sob a certeza da imortalidade da alma. A alma dos poetas vibra com o saber do velho russo de tantos e tão sofridos romances: “Nenhum homem nem nenhuma nação podem existir sem uma ideia sublime. E no mundo existe uma única ideia sublime – nomeadamente, a ideia da imortalidade da alma do homem –, pois todas as outras ideias 'sublimes' de vida, que dão vida ao homem, são meras derivações desta única ideia." (F. Dostoiévski). A Ti, futuro, procuro-Te, incessantemente.
Adalberto de Queiroz é poeta-empresário, autor de “Cadernos de Sizenando” – poemas e crônicas.